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A manifestação antirracista em Portugal, neste sábado, foi um “feito inédito”

Cerca de dez mil pessoas gritaram basta à discriminação racial nas ruas de Lisboa. É o número que avançam as organizações antirracistas por trás da manifestação deste sábado, 6, à BANTUMEN.

Por sua vez, os dados da polícia avançam a presença de cerca de cinco mil pessoas.

Com o lema “Vidas Negras Importam”, os protestos ocorreram à margem da morte de George Floyd, no dia 25 de maio, nos Estados Unidos, e porque em Portugal “também há intolerância”.

Discurso de Conceição Queiroz, jornalista

Em Lisboa, de forma pacífica, ao longo de mais de duas horas e meia, os manifestantes percorreram os cinco quilómetros que separam a zona da Alameda, junto à Fonte Luminosa, até à Praça do Comércio, na Baixa.

“O caso da Cláudia Simões ainda está por deslindar”

Mamadou Ba
Manifestação contra o Racismo em Lisboa
Manifestação contra o Racismo em Lisboa | Fotografia: Anna Carolina / BANTUMEN

A BANTUMEN esteve presente na linha da frente desta manifestação que, na luta antirracista, é uma estreia a nível de números, em Portugal, e falou com várias personalidades negras que deram o seu ponto de vista sobre a importância da iniciativa.

Mamadou Ba, ex-assessor do Bloco de Esquerda e dirigente do SOS Racismo, revelou que esta manifestação é um feito inédito em Portugal e indicou que a mesma surgiu através de uma concertação entre várias organizações que estavam a preparar diferentes iniciativas. “Já havia uma manifestação programada com o lema “Resgatar o Futuro, Não o Lucro” e havia algumas organizações que queriam ter uma coluna antirracista nesta manifestação. Isto foi debatido com esses parceiros, entretanto, com o caso do George Floyd nos EUA, entendemos que, tendo em conta o nível de mobilização em torno da questão racial, não podíamos desperdiçar esta oportunidade para tornar esta mobilização um ato da sociedade civil. Ao longo deste processo, há várias pessoas que têm seguido as iniciativas internacionais, então tentámos concertar esforços com todas as organizações para que esta manifestação tivesse um cariz completamente antirracista. Nós tivemos cerca de dez mil pessoas nesta manifestação, numa altura em que a mobilização pública é limitada, por causa do contexto da pandemia. É um sucesso. Além de que, ter sido encabeçada do início ao fim por pessoas racializadas é um feito inédito em Portugal.”

Manifestação contra o Racismo em Lisboa
Manifestação contra o Racismo em Lisboa | Fotografia: Anna Carolina / BANTUMEN

No início deste ano, Portugal viu regressar para a ordem do dia o problema da violência policial, quando uma mulher negra de meia-idade, Cláudia Simões, foi violentamente agredida durante uma altercação de um agente da Polícia de Segurança Pública, Carlos Canha.

O Ministério Público considerou que existem indícios suficientes da agressão de Carlos Canha a Cláudia Simões, tendo este sido constituído arguido pelos crimes de ofensas à integridade física qualificada. O processo judicial está em segredo de justiça. Mamadou Ba sublinha a morosidade da Justiça portuguesa e as dificuldades impostas pelo próprio Ministério Público.

“O caso da Cláudia Simões ainda está por deslindar. É um caso que nos está a criar muitas preocupações. A primeira é que, segundo as últimas informações, o Ministério Público tem dificultado o próprio processo de inquérito, tentando deixar de fora elementos probatórios essenciais para que o agente, Carlos Canha, seja condenado. O segundo facto é que, nós sabemos que a Justiça em Portugal é lenta e é cara. E, no caso da Cláudia Simões, corremos o risco do caso cair no esquecimento e ir marinando nos arquivos do sistema judicial. Não é aceitável, por exemplo, que digam que não há imagens das câmeras de vigilância, porque não havendo estas imagens, uma parte importante da violência exercida contra a Cláudia Simões não vai ser averiguada”, explicou o líder do SOS Racismo.

Discurso de Joacine Katar Moreira, deputada

“É o racismo institucional que normaliza o comportamento violento sobre pessoas negras”

Joacine Katar Moreira

Joacine Katar Moreira, ex-deputada do Livre e agora deputada não inscrita, está por trás do projeto de resolução aprovado esta sexta-feira, 5, (como outros semelhantes dos PS e do BE) que recomenda ao Governo a criação de uma campanha nacional antirracista veiculada pelos media e divulgada nas escolas, forças de segurança e instituições públicas, em colaboração com movimentos e associações antirracistas.

Manifestação contra o Racismo em Lisboa
Manifestação contra o Racismo em Lisboa | Fotografia: Anna Carolina / BANTUMEN

Katar Moreira também esteve presente na manifestação em Lisboa e sublinha que este combate é travado há anos por várias associações e ativistas.

“Nós andamos todos os dias com uma ansiedade que diz “respeito à luta antirracista”. Numa época igual a esta, após tantas lutas, após o associativismo antirracista e após uma melhoria na legislação, hoje em dia ainda estamos a encontrar um ambiente institucional, político e social altamente permeável a ideias racistas, xenófobas e discriminatórias e isto é exatamente a confirmação do que as associações e ativistas estão a afirmar há anos. Nós vivemos num país que é historicamente e institucionalmente racista, em que, além do racismo quotidiano interpessoal, nós ainda temos o racismo institucional, e é o racismo institucional que normaliza o comportamento violento sobre pessoas negras ou de minorias étnico-raciais. É a normalização do racismo, dos imigrantes, homens e mulheres negras é que nós necessitamos todos os dias e a todas as horas combater. Seja ontem, hoje ou amanhã, necessitamos de estar alertas e precisamos ser intolerantes contra qualquer comportamento individual ou institucional que seja um atentado à nossa dignidade.

“Estamos a ver uma ascensão da consciência política dos jovens negros aqui em Portugal”

Yussef

Yussef, do movimento Consciência Negra, indicou para o microfone da BANTUMEN que este é um decorrer de várias lutas e o seguimento de duas outras manifestações negras em Lisboa. “Houve concentrações na década de ’90, no início dos anos 2000 mil também mas, neste momento, estamos a ver uma ascensão da consciência política dos jovens negros aqui em Portugal.

Há uma elite negra que se criou e que se distancia. Diz umas coisas nas redes sociais, canta umas coisas, mas em termos práticos não os vejo

Conceição Queiroz

Conceição Queiroz, jornalista da TVI e uma voz ativa contra o racismo, foi uma das várias pessoas a proferir um discurso durante a manifestação. Tivemos a oportunidade de falar com a jornalista que teceu duras criticas a comunidade artística negra, que apelidou de elite, e que na prática não é coerente com o que exibe nas redes sociais.

Manifestação Contra o Racismo
Manifestação contra o Racismo em Lisboa | Fotografia: Bruno Miguel

“A minha luta é pela união dentro da comunidade africana, acima de tudo. Nós temos que arrumar a nossa casa primeiro, só depois é que nos vão respeitar. Acho que há uma elite negra que se criou e que se distancia, diz umas coisas nas redes sociais, canta uma coisas, mas em termos práticos não os vejo. Então, não sei o que eles querem ou pensam que são. É um mau princípio. Quem tem menos oportunidades precisa de nós. Quem se conseguiu projetar, dentro da comunidade tem a obrigação de lutar e puxar pelos outros. Essa é a minha luta e não tem sido fácil. Organizo eventos para juntar a comunidade e nos aproximarmos e essas pessoas não aparecem. Vou aos bairros e os miúdos dizem-me ‘mana Conceição, estamos à espera daquele artista que queríamos tanto conhecer e que prometeu’ e nada. Eles nunca vão lá. E no dia em que me disseram ‘Conceição, os miúdos querem conhecer-te’ eu fui lá. Tenho uma vida corrida, mas fiz tudo para lá ir. Isto faz muita diferença, é um estímulo para os miúdos mais novos. Às vezes, basta uma coisinha de nada e tu mudas a vida de uma criança, a vida de um adolescente. Isto é um trabalho. Temos de criar grupos de trabalho e resgatar esta juventude. Eles não podem continuar a cometer delitos e a encher cadeias porque eles precisam de nós. Os pais saem de casa às quatro da manhã, têm três e quatro empregos, trabalham durante o dia para poderem dar o jantar aos filhos. O que é que vamos cobrar a estes pais? Mais? Não. Eles já fazem muito. Os miúdos precisam de nós. Eles têm de ser orientados. É gente inteligente, com muito talento e com muito valor. E custa-me imenso quando as pessoas não têm uma oportunidade. Vamos lutar, vamos nos formar para que, no dia em que a oportunidade chegar, possas estar preparado”, disse a jornalista com vigor, sublinhando a necessidade de se criar união. “É nossa obrigação darmos tudo. Lutar e trabalhar dez a 15 vezes mais, mesmo que tenhas metade do reconhecimento. O desafio grande é esse, é unirmos-nos e, a partir daí, a nossa legitimidade é grande. A prova disso é isto [fazendo referência à manifestação]. Isto prova que somos muito mais fortes unidos. A partir de hoje, as pessoas vão pensar 50 mil vezes antes de nos insultarem, antes de nos espezinharem. Esta morte do Floyd mudou o mundo. Vão ter de nos aceitar a bem ou a mal.”

Discurso de Nuna (@itsnunaa), atriz e escritora

Vários nomes do mundo artístico fizeram-se também sentir presentes na manifestação, como GSon dos Wet Bed Gang, os rappers Tekilla, Bob Da Rage Sense e Clay Fenómeno, o ator Paulo Pascoal e o DJ e empreendedor Dandy Lisbon. Abaixo podemos ler algumas das suas considerações sobre a problemática do racismo institucional em Portugal.

Isto não é um problema norte-americano, é um problema global. Vivemos num sistema capitalista e esse sistema tem de ser derrubado. É uma importância enorme isto estar a acontecer em Portugal, porque é um dos ditos países que colonizou o mundo, portanto é obrigação do sistema norte-americano como do português dar prioridade a estas lutas e que oiçam as minorias de uma vez por todas.

Bob Da Rage Sense

Há pessoas a morrer todos os dias por causa do preconceito. Independentemente do que aconteceu na América, nós aqui também tínhamos de nos manifestar e posicionar.

GSon

É o racismo institucional que acaba por quebrar o processo gradual de crescimento do negro ou a integração do negro em Portugal. Fazer uma revoluçãozinha da net, fazer uns posts porque toda a gente faz e depois, na prática, não é sinónimo disso, tem um sinónimo zero.

Tekilla

Isto vai buscar a todas as violências sistemáticas e estruturais, que nós, como pessoas negras, sofremos no decorrer de vários séculos. Agora é o momento de começar um novo curso histórico.

Paulo Pascoal

Estou super feliz. Nunca pensei ver tanta comunidade branca. Nunca pensei ver tanta união. É o momento de dizer já chega.

Dandy Lisbon

Se as pessoas começarem a perceber que temos de nos unir mais, é assim que vamos criar grandes mudanças. Estamos aqui negros e brancos em igual número. É uma grande vitória. O que temos de tirar daqui é o facto de sairmos de casa para nos unirmos. Muitas injustiças acontecem aqui, negros não ocupam lugares de destaque, as oportunidades não são as mesmas, por isso temos de fazer alguma coisa todos os dias. Temos de nos unir, nem que seja para apoiar o próximo que está a criar um negócio que queremos que suba e fazer com que consigamos criar essa tal de igualdade. Não podemos esperar que a criem, temos de ser nós a lutar por ela.

Clay Fenómeno

Ao longo da Avenida Almirante Reis, que liga o Areeiro ao Martim Moniz, das varandas muitas pessoas também acenavam e batiam palmas à passagem da manifestação.

Manifestação contra o Racismo em Lisboa
Manifestação contra o Racismo em Lisboa | Fotografia: Anna Carolina / BANTUMEN

À frente, vários agentes da PSP ‘abriam’ caminho aos manifestantes e, apesar de um dos motes da concentração ser a violência policial, em momento algum houve gestos menos próprios contra a polícia ou palavras de desagrado.

Para Valentina, de 17 anos, esta foi a sua ‘estreia’ em manifestações contra o racismo e decidiu sair à rua porque há pessoas que não nasceram “privilegiadas” como ela. “Em Portugal claramente há racismo”, salientou, defendendo que para si “todos merecem os mesmos direitos. Merecem estudar igual a nós, são julgados pela cor e não devia ser assim”, notou.

À passagem pela sede do BE, quase a chegar ao Martim Moniz, os manifestantes saudaram a coordenadora bloquista, Catarina Martins, com palmas e gritos de “o povo unido jamais será vencido”. Da varanda do edifício, Catarina Martins acenou e bateu palmas.

Manifestação contra o Racismo em Lisboa
Manifestação contra o Racismo em Lisboa | Fotografia: Anna Carolina / BANTUMEN

Entre outros dirigentes do BE, a deputada Beatriz Gomes Dias esteve também na manifestação porque a luta contra o racismo não é uma questão partidária, “mas uma questão de cidadania, de direitos das pessoas”.

Várias cidades portuguesas juntaram-se à campanha de solidariedade mundial contra o racismo, associando-se à luta pela dignidade humana na sequência da morte, a 25 de maio, do afro-americano George Floyd, sob custódia da polícia dos Estados Unidos.

As iniciativas estavam agendadas para Lisboa, Porto, Braga, Coimbra e Viseu no quadro da ação mundial “Black Lives Mater”.

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