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Afro trap, a nova receita com base de hip hop temperada de africanidade

A pergunta “de onde és?” sempre me infringiu um certo tremor na voz por nunca saber a resposta adequada. Com o tempo, aprendi a satisfazer a curiosidade do inquiridor conforme a sua própria origem: se for europeu digo que sou portuguesa (considerando onde nasci e cresci); se for africano digo que sou um misto entre Benguela (do lado materno) e da Praia (do lado paterno). Mas são duas hipóteses que nem a mim satisfazem. Faço parte da diáspora africana que recebeu no seu refugado o gourmet da vida. Podia chamar-lhe a cachupa acompanhada de salada de rúcula, o funge de carne seca em cama de beterraba ou o cozido à portuguesa com cobertura de kisaca. Claro que nenhuma destas receitas existem (espero eu), mas servem para ilustrar nas vossas mentes as misturas que condimentaram a minha geração (dos nascidos entre 1980 e 1990, imigrantes ou filhos de imigrantes) a nível cultural.

É nesta sequência de cozinha gourmet que quero introduzir-vos a novos conceitos musicais que nascem do talento de músicos africanos ou de descendência africana, que vivem além dos limites geográficos do continente berço. Afro trap e afro bashment, dois estilos que começam a dominar a cena suburbana europeia – podia chamar-lhe simplesmente urbana, mas é nos subúrbios onde se concentra a diversidade africana que dá vida a estas novas experiências auditivas.

Não é fácil traçar as origens destes novos estilos – há quem prefira chamar-lhes movimentos -, mas o afro trap começou a ganhar destaque em França, há cerca de dois anos com MHD, nome artístico de Mohamed Sylla. Contudo, antes disso, foram nomes como Magic System que começaram a trilhar os caminhos do pop moderno francês, dando-lhe uma base de sonoridades provenientes do oeste africano, letras enriquecidas com palavras em dialecto da Costa do Marfim e acompanhadas com passos de zouglou, um estilo de dança do mesmo país e que se tornou popular entre os jovens.

Dentro do hip hop, o mercado já saturado de trap – para não falar na quase impossível concorrência norte-americana – dá poucas oportunidades aos newcomers e MHD cedo percebeu isso. Para se destacar, era preciso reinventar e onde melhor se inspirar do que nas suas próprias origens?

Os velhos da velha-guarda – passem a redundância – não gostam de os chamar de rappers, mas eu vou ousar. Mohamed é um rapper com origens na Guiné-Conackry e Senegal, crescido num dos ditos bairros problemáticos de Paris, o 19.º arrondissement, que congrega uma imensa e diversa comunidade africana. Na sua música incorporou o flow e uns toques do coupé décalé, e estava feita a receita de sucesso. Em 2016, no YouTube, a sua compilação de músicas e vídeos com o nome “Afro Trap” fez tanto sucesso que só a parte sete, “La Puissance“, tem mais de 128 milhões de visualizações. Com oito videoclipes, todas as imagens desta compilação foram rodadas no bairro e entre amigos.

O estilo pegou. Rappers mainstream começaram a ficar atentos àquilo que podia ser o despertar de um novo estilo, como foi o caso de Booba, que lançou “DKR“, uma homenagem às suas origens senegalesas que na introdução usa o som da majestosa Kora do maliano Toumani Diabaté, e de Gradur com “Dans Ma Vie“.

“Foram precisos mais de vinte anos para que o rap francês percebesse a amplitude deste viveiro de inspirações, talentos e a capacidade que esta mistura universal de géneros poderia ter. Não esquecendo que o tema África já era recorrente nos textos de muitos rappers, esta mistura foi mantida à distância do público durante muito tempo”, disseca a publicação Booska, numa entrevista ao veterano Mokobé e ao produtor DSK On The Beat.

No Reino Unido, este movimento também começa a ganhar alguma expressão, mas baptizada de afro-bashment, termo popularizado por uma playlist com o mesmo nome, no Spotify. As sonoridades são claramente outras, considerando que as origens que compõem o cenário da diáspora em terras da rainha Isabel II são obviamente diferentes das presentes em França, com a Jamaica e a Nigéria a encabeçarem a lista.

Numa primeira abordagem ao afro-bashment, percebemos de imediato o casamento entre o grime (que só por si já é um resultado das misturas entre o hip hop, ragga, reggae, jungle e drum and bass) e as batidas africanas ou afro-caribenhas. A reter temos nomes como Kojo Funds, Afro B, Abra Cadabra ou J Hus.

Por terras lusófonas, este ainda é um terreno por desbravar, mas já se começam a fazer sentir algumas presenças, como é o caso de Apollo G. O seu afro trap, além da batida emprestada do afro-house, mistura algumas palavras em crioulo, num hino às suas origens cabo-verdianas. A boa vibe de “Si Ki Sta”, lançado em  Novembro e cujo vídeo foi gravado no bairro do Monte Abraão, na Linha de Sintra, entre amigos, cheira a crioulo, a grime, a afro-house e a um je ne sais quoi lusófono.

Se estes ritmos vieram para ficar, ainda é demasiado cedo para se avaliar e, tal como disse à Noisey Austin Darbo, locutor de rádio da BBC 1Xtra e editor sénior do Spotify por trás da criação da playlist Afro-Bashment: “os géneros musicais intrínsecos à comunidade negra estão em constante evolução, tal como o gosto dos jovens ouvintes”, portanto, haverá sempre uma base de inspiração, entre o hip hop e o rnb, que vai sofrendo adaptações conforme as modas e as origens de cada artista.

Os da velha-guarda vão ser sempre relutantes a abraçar estes novos estilos derivados do hip hop, mas a verdade é que o movimento não é uma linha estática. Conforme os tempos, as vontades e a globalização, é natural que o género sofra uma metamorfose, goste-se ou não.

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