Aoaní trocou o jornalismo pelo teatro para contar outras verdades

31 de Agosto de 2025
Aoaní entrevista
Aoaní, fotografia ©BANTUMEN

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No teatro, tal como no jornalismo, é tudo uma questão de palavra. Quem o diz é Aoaní, atriz, jornalista e autora santomense que, depois de mais de uma década a dar voz a histórias reais, decidiu assumir o palco como lugar de escuta, corpo e presença. Nascida em Lobata, São Tomé e Príncipe, a artista tem construído uma trajetória que atravessa continentes, disciplinas e linguagens. Da criação do jornal O Mágico, ainda em criança, à estreia da peça Limites, Aoaní junta experiência, rigor e intuição num percurso profundamente comprometido com as suas raízes e com o tempo presente.

Licenciada em jornalismo no Brasil, com mestrado em teatro em Portugal, e atualmente doutoranda em Estudos Fílmicos na Universidade de Coimbra, Aoaní trocou a redação pelo palco aos 33 anos. “Sempre quis ser atriz”, confessa, mas o caminho mais “seguro” levou-a primeiro ao jornalismo, onde trabalhou em comunicação e assessoria durante quase oito anos. Foi em Angola, ao serviço do Novo Jornal, que consolidou essa fase da sua vida, chegando a editora interina de cultura e chefe de redação. Mas a paixão pela representação sempre esteve latente, à espera de um tempo certo que, como ela mesma percebeu, nunca viria por si só.

“Depois de ter a minha filha, percebi que não ia haver um momento ideal. Então resolvi arriscar”, conta. A viragem deu-se com o apoio da família e com o acúmulo de vivências que hoje alimentam a sua abordagem ao palco: “como jornalista, tu acabas por lidar com várias pessoas de vários backgrounds. Isso dá muita bagagem para a construção de personagens.”

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Aoaní entrevista

Aoaní, foto ©BANTUMEN/Eddie Pipocas. Julho 2025

A ligação entre jornalismo e teatro está, para ela, na mesma ética: o compromisso com a verdade. Mesmo que essa verdade, no teatro, seja construída. “Atuar é viver com verdade circunstâncias não tão verdadeiras”, diz. Tal como no jornalismo impresso, onde o corpo está ausente da página mas presente na escuta e na abordagem, também na performance há uma presença integral. “O teatro obriga-me a dar rosto, voz e corpo ao que quero comunicar. É uma extensão do que sempre fiz: comunicar com e para pessoas.”


Foi com essa visão que Aoaní estreou em 2023 a sua primeira peça autoral, Limites, no Centro Cultural da Malaposta, em Odivelas. A criação partiu da necessidade de lidar com “dores ligadas aos confrontos diários na diáspora” e de explorar como os corpos racializados vivem e resistem a múltiplos limites. Além de um espetáculo, a peça é uma conversa aberta com o público. “Quero que quem assista se questione sobre várias situações que se tornaram normais demais.”


Mas se o palco lhe permite libertar a voz e o corpo, é na escrita que o pensamento ganha fôlego. A sua coletânea de crónicas Miopia Crónica nasceu de um convite de Jacques dos Santos e reúne textos publicados no Novo Jornal e outros inéditos. “Não me considero escritora. Sou jornalista que por acaso publicou um livro.” Ainda assim, a escrita é presença constante, seja no teatro, seja em colaborações para o portal Buala ou na rádio, onde continua a dar voz a temas que a movem no programa Avenida Marginal, da RDP África.

Vivemos o ciclo do preto da vez. De tempos em tempos escolhem-se dois ou três rostos para acalmar a consciência coletiva

Aoaní

Aoaní não se desvia da dimensão política da arte. “Tudo é político”, afirma com convicção. E num contexto como o português, onde o apagamento das comunidades racializadas continua a ser estrutural, o lugar da arte como ferramenta de resistência é inegociável. Para a atriz, o desmantelamento do Ministério da Cultura em Portugal é apenas um sintoma de um “retrocesso trágico” sustentado por desinformação e pela ausência de políticas públicas efetivas. “Portugal tem evitado fazer o trabalho de desconstrução de uma imagem idealizada construída sobre bases negativas.”


Questionada sobre representatividade, Aoaní não hesita: “Zero surpresas.” O problema, para ela, não está apenas na ausência de diversidade nos media, mas na forma como a representatividade é usada como moeda de troca simbólica. “Vivemos o ciclo do preto da vez. De tempos em tempos escolhem-se dois ou três rostos para acalmar a consciência coletiva. Mas isso não é mudança estrutural.”


Para alterar o panorama, a atriz defende a criação de estruturas autónomas dentro das comunidades racializadas. “Temos advogados, jornalistas, artistas, produtores. Se nos unirmos, encontramos soluções. Não podemos continuar à espera de convites.” Aoaní acredita que a união, mais do que qualquer financiamento, é a principal ferramenta de transformação.


Por isso, vê com bons olhos a existência de prémios como a Powerlist BANTUMEN 100. “É uma validação vinda de dentro. Tem peso. Se nós não lhe dermos valor, quem vai dar?” Ainda que reconheça que o reconhecimento mainstream - como o de Cannes ou dos grandes circuitos europeus - continue a ser importante, não hesita em afirmar que “vamos chegar lá”.


Atualmente, prepara dois espetáculos para circular por países africanos de língua portuguesa e continua a escrever, para o palco, para a rádio, para si. Entre os projetos futuros estão novas peças, um possível segundo livro, e o desejo de viver exclusivamente da sua arte. “O meu sonho é não precisar de um ‘survival job’ para continuar a criar. A vida do artista está cada vez mais difícil, mas estamos aqui.”


Do jornalismo ao teatro, da rádio à performance, Aoaní é uma voz que se multiplica sem perder o centro. Uma voz que escuta antes de falar. E que, mesmo em silêncio, continua a comunicar.

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