batidas que o mercado ama com letras que as autoridades criminalizam

6 de Junho de 2025
 batidas que o mercado ama com letras que as autoridades criminalizam
📸: @Poze Do Rodo

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O funk é envolvente. Quando os graves dos tambores começam a ecoar, dificilmente alguém fica parado. De alguma forma, o corpo responde com o efeito da adrenalina correndo pelas veias. Esse pode ser um dos motivos pelos quais a publicidade passou a se apropriar dessa manifestação cultural periférica, para vender produtos a um público alvo que vive bem longe da periferia. É uma forma de prender a atenção, gerar desejo e ativar o sistema límbico, região do cérebro  associada à recompensa e ao prazer, responsável pelas emoções e desempenha um papel crucial nas decisões de compra. A estratégia não começou agora. O final dos anos 2000 e começo dos 2010 foi um dos períodos em que o funk ganhou notoriedade nas campanhas de marcas voltadas para as classes A e B.


Uma das que mais gerou polêmica ganhou as telas em abril de 2013. O produto em questão era o então "Novo Classe A”, da Mercedes-Benz. Chamado de "AAAAAA Lelek lek lek lek”, o filme usou a música “Passinho do Volante”, do MC Federado e os Lelek's. Antes disso, marcas como Dell, Nissan, Do Bem, Kuat, Toddy, Claro e Olla já tinham feito o mesmo. Quase todos os funks dessa grande lista eram adaptações ou sátiras de originais que estavam em alta na época. 


Nessa onda, artistas do mainstream (naquele período) também mostraram a cara, de Anitta a Naldo, passando por MC Créu, Mr. Catra e MC Guime. Em 2025, os protagonistas mudaram, assim como o BPM dos beats, porém, as apostas no gênero continuam altas, tendo dessa vez a Apple e a Rabanne entre os destaques. Renata Prado, dançarina, pedagoga, pesquisadora, produtora, professora de funk e diretora da Frente Nacional de Mulheres do Funk, acredita que essa musicalidade se tornou o gênero favorito dos publicitários porque atinge as massas.

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Agenda cultural

"Sabendo disso, o mercado se apropria, higieniza e se utiliza do funk para fazer campanhas, porque entende que é vendável", afirma ela. “Por isso também passa por um processo de higienização para ser utilizado. E, apesar de todo esse processo, eu acredito que ter hoje o funk sendo a peça-chave dos publicitários, naturalmente… impulsiona a cultura por mais que não seja em sua totalidade. Mas impulsiona de uma forma indireta. O problema com o funk não é por conta do ritmo, mas sim das letras, né? As pessoas gostam da batida, mas questionam as letras.  Então, o mercado publicitário sabe utilizar as nossas batidas, nosso gingado, o nosso ritmo pra vender os seus produtos sem se aproximar das questões sociais da cultura”.


De fato, essa aceitação comercial não muda o fato dos protagonistas e apreciadores do funk ainda serem discriminados. Pior que isto é a criminalização que está em curso com projetos de leis e prisões de funkeiros alegando apologia ao crime, por simplesmente cantarem a realidade que vivem (ou viveram). Exemplos não faltam, do DJ Renan da Penha ao mais recente caso do MC Poze do Rodo - que foi preso, humilhado publicamente e solto quatro dias depois através de um habeas corpus. 


As perseguições não atingem somente quem faz, mas aqueles que apenas querem curtir o som no fluxo (baile). A morte de 9 jovens (8 meninos e uma menina), em 2019, após o 16.º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano tentar acabar - de forma violenta - com o Baile da Dz7 expõe a problemática. Para fechar ainda mais o cerco, políticos querem aprovar leis que proíbam o uso de recursos públicos para contratar artistas que façam apologia ao crime organizado e ao uso de drogas durante concertos.


“O funk é acusado de fazer apologia às drogas em suas letras, mas nas letras de sertanejo e forró eletrônico é bastante recorrente a referência ao álcool, que seria tanto um remédio necessário para aliviar dores amorosas como um elemento indispensável em qualquer festa boa”, cita Danilo Cymrot no livro “O Funk na Batida - baile, rua e parlamento” (2022). […] É mais fácil, porém, acusar o funk de “arregimentar mão de obra para o tráfico” do que reconhecer que o próprio modelo econômico faz com que haja uma fila de jovens desempregados e sem qualificação profissional se oferecendo para trabalhar na estrutura de varejo do comércio de drogas”.

Entre o reconhecimento e especulação


Toda a opressão não conseguiu brecar o funk. A The Economist afirma que ele “pode se tornar global e mudar a marca do Brasil”. Talvez sim, talvez não. Porém, mesmo com todo potencial, o jornalista Silvio Essinger, autor do clássico e desejado livro “Batidão, uma História do Funk” (2005), diz que ainda falta muito para que ganhe a expressão mundial que o reggae ou reggaeton conquistaram. “Uma Anitta só não faz verão”, ressalta. “Precisa ter um trabalho coordenado de MCs, produtores, DJs, empresários e gravadoras. Sem essa articulação, nada acontece”. Já Marabu, MC de funk de São Paulo, diz que algumas analogias e formas de referenciar o Brasil e a cultura funkeira foram descritas pela revista britânica de uma forma que considera estranha. 


Em alguns momentos parecia de fato que se tratava de mais um dos produtos a serem distribuídos pelas ruas das grandes cidades europeias provenientes do comércio colonial”, observa. “O que esperar do olhar dos europeus e dos imperialistas com relação à nossa gente e cultura? Concordo que o funk provavelmente será a próxima especiaria nos fones de ouvido e nas festas europeias e estadunidenses, mas assim como aconteceu com o samba e a bossa nova: qual funk será exportado? Que parte da nossa cultura? Quem se beneficiará com isso? Existe uma cadeia de profissionais, cenas e artistas dentro do funk”.


Múltiplo, o funk muda de batida conforme o lugar. Não segue apenas um direcionamento. “São Paulo, por exemplo, tem uma sonoridade pra cada baile, na Zona Norte e na Zona Leste toca o mandela, na Zona Sul costuma predominar a bruxaria”, explica Marabu. “Ainda tem o que é protagonizado pelos MCs que dominam as batidas mais rasteiras, que hoje estão sendo fundidas ao trap”. Mesmo com essa multiplicidade de sub-gêneros produzidos eletronicamente, os espaços dentro da música eletrônica foram renegados desde sempre. Talvez essa realidade mude com a inserção oficial dele na Beatport, maior plataforma digital para DJs no mundo.


“O mercado da música eletrônica é gigantesco, e considerando que o funk é uma música eletrônica brasileira com identidade extremamente autêntica, naturalmente entra em disputa no mercado mundial, né?”, fala Renata. “O problema é que muitas pessoas que estão nele não conseguem e não querem enxergar o funk como música eletrônica, justamente por conta de todo o preconceito que se tem com países da América Latina e suas produções culturais”.  

Renata Prado / Foto: Vulgo S

É por esse motivo que existe um ecossistema de pesquisadores, artistas, produtores, DJs, jornalistas, selos, gravadoras, booking, fluxos e bailes que mantém a máquina funcionando no “mercado paralelo” para que a originalidade e estética se mantenham - no BR ou fora. 

A compilação “NTS apresenta funk.BR – São Paulo” é uma dessas ações que visa expandir os limites de diferentes vertentes do funk, através da londrina NTS, sem abandonar a essência. O curador do álbum, Jonathan Kim, que fez a curadoria com Felipe Maia, me disse “que a ideia era fazer uma seleção de artistas em ascensão, famosos, mulheres, e também pessoas que se destacaram no SoundCloud e que talvez não fazem parte do funk das favelas, mas suas produções possuem bastante referências para misturar com outros gêneros musicais (por exemplo Deekapz, DJ Tonias)”. 


Funk para exportação: sim ou não?


A reportagem da The Economist gerou diferentes sentimentos. Alguns comemoraram, outros nem tanto. Afinal, quais benefícios esse reconhecimento internacional vai trazer para dentro de casa? Renata Prado reconhece a importância, principalmente para os artistas, mas pondera. “Isso não contribui necessariamente com a progressão política que o funk sofre enquanto cultura negra e periférica em territórios urbanos”, ressalta. “A expansão de forma internacional não faz com que a polícia militar seja menos agressiva”. Ela também acredita que o funk só deixará de ser marginalizado no Brasil quando se unir como movimento social e construir uma luta conjunta para fazer um enfrentamento político. “Acredito que só a luta organizada fará com que o funk seja visto como cultura em busca de uma conscientização social para que a sociedade pare de o marginalizar”.


Essa marginalização acontece desde quando o funk começou a se popularizar no Rio de Janeiro, nos anos de 1980, em bailes das equipes de som e festas de DJs. “Ainda não havia MCs, nem produção nacional”, revela Silvio. “Mas já era muito popular, atraindo, a cada fim de semana, mais de um milhão de jovens da periferia e favelas para bailes na cidade e Baixada Fluminense”. A ebulição não o tornou patrimônio do país. Essinger diz que “havia um desprezo da mídia por aquela manifestação popular negra suburbana carioca, que além do mais se valia de uma música importada (e não tinha, portanto, a tradição e a legitimidade cultural do samba)”. Passadas algumas décadas, o desdém ainda reverbera no território nacional ao mesmo tempo que acontece a especulação do surgimento dessa possível “commodity” musical para ser explorada no mundo. 


Há quem diga que Anitta é a maior responsável por colocar o funk nos ouvidos “gringos”. Pode até ser, no momento atual. Mas vale lembrar que Deize Tigrona ultrapassou as barreiras nacionais, ainda nos anos 2000, com o single “Injeção” sendo sampleado por Diplo para a música “Bucky Done Gun”, da M.I.A. Isso ajudou que ela ganhasse reconhecimento na Europa, onde fez uma série de shows em 2006 - e depois entrou no esquecimento, indo trabalhar como gari. “Passei um tempo com depressão, que não acreditava mais que fosse passar, porque parecia que eu tinha magoado pessoas em relação ao meio artístico e ter decepcionado por não ter concluído uma viagem europeia tão almejada por todo mundo dentro do funk”, revelou ela na conversa que tivemos em 2022. “Tive essa “deprê”, mas não deixei de escrever nesse meio tempo”.  


Sem dúvidas, Anitta tem um papel importante nesse processo de internacionalização, mas Marabu tem um ponto a considerar. “Minha impressão é que ela se comporta de maneira extrativista com relação a cultura, deixo como o exemplo aquele contexto em que ela se declarou pioneira do “funk rave”, enquanto o termo, e a musicalidade em si já estava barulhando nos bailes há bastante tempo”. Não que isso não tenha acontecido anteriormente com outros gêneros mais tradicionais e abraçados pela classe média branca. 


Se olharmos para a margem, será possível observar que os responsáveis por essa internacionalização do funk são DJs do underground: MU540, Lorrany, Carlos do Complexo, Caio Prince, Badsista, VHOOR, DJ Anderson do Paraíso, Tropkillaz, Bonequinha Iraquiana, Ramon Sucesso, etc. Sem enlatar para agradar, eles e elas levam para o exterior as mesmas características disseminadas dentro do Brasil. É essa autenticidade que tem feito com que produtores e artistas de outros países usem samples ou se inspirem para incrementar suas produções. Little Simz fez isto em “Fever”. Sango vem colocando esses sons em quase todos os seus projetos. C. Tangana incrementou “Comerte Entera” com recortes de “Puxa o Bonde”, da MC Daniele e DJ Wagner do Jaca, e inseriu o tamborzão em “Nunca Estoy”.


Esses são apenas alguns de vários que bebem da fonte de um gênero envolvente que não tem a valorização que merece na sua terra natal. Para que isso aconteça em algum momento, existem pessoas se organizando politicamente - porque essa é também uma questão política (O K-Pop só ganhou visibilidade internacional porque teve investimento do Estado). Este é o caso da Frente Nacional de Mulheres do Funk, composta por mulheres funkeiras que atuam na cultura funk em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Pernambuco. “São os estados que nós entendemos que o funk atua como cultura local”, diz Renata Prado. “Então temos representantes nesses quatro estados fazendo articulações políticas,  educacionais,  culturais e sociais em prol da cultura do funk”. O  objetivo é fazer construções de políticas dentro das estruturas governamentais, que têm dificuldade de dialogar com o movimento funk.  


“Então, a Frente Nacional de Mulheres do Funk faz esse trabalho juntamente com o movimento social, construindo caminhos para o movimento funk ter subsídios educacionais, políticos, pedagógicos e sociais para construir uma cultura negra consciente de seu histórico, de sua luta, do seu pertencimento”, reforça Prado. “Além disso, destaca o histórico de mulheres do funk dentro do campo artístico, cultural, educacional, pois ainda assim consideramos que o funk faz parte de uma estrutura de um país que tem, na sua formação social,  questões que desvaloriza a atuação política, artística e social de mulheres, ter uma frente organizada com mulheres do movimento funk contribui com a visibilidade da atuação de mulheres dentro dessa cultura”.



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