Carmen Souza e a herança viva de Horace Silver

19 de Junho de 2025
Carmen Souza  Horace Silver
Imagens DR

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Num tempo em que o jazz oscilava entre o experimentalismo urbano e as heranças culturais que o moldaram desde as suas raízes afro-atlânticas, Horace Silver destacou-se como um dos nomes mais singulares da cena norte-americana. Pianista e compositor com forte presença na cena hard bop, Silver transformou o jazz ao fundir ritmos africanos, latino-americanos e elementos do gospel numa linguagem que mantinha a sofisticação harmónica do bebop, mas com maior abertura rítmica e melódica. Obras como Song for My Father (1965), referência no género, são exemplo dessa estética simultaneamente elegante e vigorosa, ancorada numa sensibilidade que se recusava a escolher entre tradição e modernidade.


Filho de um imigrante cabo-verdiano da ilha do Maio, Horace Silver deixou impressa, na sua obra, uma marca cultural que muitos escutaram sem saber nomear. Essa marca refletia o universo musical escutado na infância, nos serões familiares marcados pela música tradicional de Cabo Verde. O próprio Silver reconhece, na sua autobiografia Let’s Get to the Nitty Gritty (2006), que as coladeiras e mornas cantadas pelo pai deixaram uma impressão duradoura na sua linguagem musical. Ao trazer essa herança para o centro do jazz moderno, o músico não só revolucionou o seu tempo como legou à diáspora uma obra que escapa às fronteiras.


É nessa genealogia que Carmen Souza inscreve o seu trabalho, The Silver Messengers, um tributo pessoal e artístico à obra de Horace. A cantora, compositora e multi-instrumentista luso-cabo-verdiana recria o universo do homenageado, não como um exercício de imitação, mas como um diálogo artístico que atravessa linguagens, territórios e tempos. “Assimilei este repertório com todo o respeito e quis dar a minha própria voz. Quis criar algo novo com a música dele também”, disse a artista à BANTUMEN. O álbum e o vídeo constituem, assim, uma homenagem póstuma a Horace Silver, falecido a 18 de junho de 2014.


Um dos momentos centrais do projeto é o vídeo, agora tornado público,  da reinterpretação do tema “Saint Vitus Dance”, onde Carmen evoca o universo performativo de Silver, que homenageia dançarinos como Saint Vitus e Angus, figuras importantes do sapateado e da cultura afro-americana dos anos 1950. A composição - rápida, percussiva, quase cinemática - termina num ambiente festivo que, segundo Carmen, “quase também poderia ser uma festa de tabanca”. O vídeo acrescenta uma dimensão visual e coreográfica ao álbum, completando a homenagem com um gesto de corpo, movimento e memória.

A escolha do repertório resultou de um processo extenso e intuitivo. Carmen e Theo Pascal, amigo e produtor com quem trabalha há mais de duas décadas, revisitaram toda a discografia de Horace Silver, explorando gravações em vinil, CD e material disperso. Algumas canções impuseram-se pela sua melodia, outras pelo ritmo, e houve ainda temas que, segundo a artista, a escolheram a ela. “Señor Blues”, com a sua linha de baixo repetitiva e hipnótica, tornou-se uma espécie de mantra e ocupa um lugar especial no alinhamento. “É uma música muito bonita. Está sempre numa repetição... e aquilo quase que se torna num mantra”.



"Horace Silver usou a herança cabo-verdiana como ponte e não como fronteira”

Carmen Souza

Imagens DR


A interpretação vocal de Carmen é também um elemento central na reinterpretação da obra de Silver. Em certas composições optou por transcrever solos de piano e adaptá-los à voz, numa operação que vai além da técnica, tornando-se um gesto de apropriação criativa e de inscrição da sua identidade musical no legado do compositor homenageado. “Quis dar aquela roupagem como se tivesse levado a pasta de composições do Horace para Cabo Verde e posto músicos cabo-verdianos a interpretá-las”.

Lançado em 2019, The Silver Messenger teve uma receção crítica positiva e entrou nos principais rankings internacionais de jazz e world music. Para Carmen, esse reconhecimento é importante não apenas enquanto validação, mas como confirmação de que a música chegou a quem a escutou com atenção. “É uma confirmação de que estás a fazer coisas boas. A nossa maior vontade é de que a música possa tocar e influenciar alguém.”

A crença no poder transformador da música é também o que sustenta a sua visão sobre o fazer artístico. Num tempo marcado pela aceleração tecnológica e pela crescente automatização de processos criativos, Carmen insiste na importância da experiência vivida. “A IA já consegue fazer muita coisa… Mas o que ela ainda não consegue é viver e sentir”, afirma, reconhecendo os avanços da inteligência artificial, mas defendendo que a emoção não se programa. Para a artista, é na imperfeição que reside a força expressiva de uma obra e esse foi um dos motivos para, em conjunto com Theo Pascal, montar um estúdio analógico em Lisboa. A ideia, conta-nos, é uma forma de preservar uma escuta com densidade, em que a emoção emerge do gesto, do tempo e da vulnerabilidade do som.

A homenagem a Horace Silver não só resgata essa densidade, como também é um gesto de gratidão onde reconhece o contributo do músico ao abrir um caminho que lhe permite, hoje, existir enquanto artista num espaço híbrido, sem precisar de escolher entre o jazz e Cabo Verde. “Ele usou a herança cabo-verdiana como ponte e não como fronteira”. Apesar do reconhecimento no circuito internacional e no seio do género, Carmen lamenta que o legado de Silver não seja mais reconhecido na lusofonia, nem suficientemente celebrado em Cabo Verde. “Acho que ainda não se entende bem o legado. E aquilo que ele deixou de orgulho para nós cabo-verdianos”.

Defende que esse reconhecimento precisa de ser promovido de forma estruturada, envolvendo não apenas artistas, mas também escolas, entidades públicas, festivais e políticas culturais que integrem a memória e a identidade musical da diáspora. “Se queremos que as novas gerações fiquem a conhecer este trabalho, é preciso um esforço conjunto”, afirmou, fazendo eco às palavras de artistas como Tito Paris, que defende o papel da escola como motor de consciência cultural desde a infância.


Com um percurso marcado pela relação entre raiz e inovação, a artista descreve-se como alguém que mistura ritmos da música cabo-verdiana com a improvisação do jazz, cruzando também crioulos e referências culturais diversas. “Eu permito que os dois vivam dentro de mim”, afirmou, referindo-se ao jazz e à tradição como fontes complementares de inspiração.

O seu mais recente disco, Port’Inglês, é a materialização dessa possibilidade e resultado de uma investigação sobre a presença britânica em Cabo Verde e da vontade de transformar essa pesquisa em canções. “É uma busca da identidade. Quero transformar esta pesquisa em histórias, e essas histórias em música”. Depois de um ciclo exigente de gravação e mestrado, Carmen opta agora por deixar o futuro em aberto. Sem fórmulas, sem pressa, mas sempre disponível para escutar o que a música - e o tempo - tiverem para lhe dizer.



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