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Na casa onde cresceu, a música fazia parte do quotidiano e era uma presença discreta mas constante, que se manifestava na voz da mãe, na da irmã, ou no simples hábito de cantar sem palco. Para Cristina Clara, o canto não chegou como uma revelação tardia, mas como o reencontro com algo que sempre lhe pertenceu. Ainda assim, o percurso profissional começou longe dos palcos, entre turnos e cuidados clínicos. Durante anos, dividiu-se entre a enfermagem, profissão que exerceu durante mais de uma década, e a música, até que o tempo deixou de chegar para as duas. “Só quando estava quase a lançar o disco é que tive de deixar os cuidados, porque já não era compatível em termos de horário.”
A decisão de trocar a enfermagem pela música não foi tomada contra o impulso de cuidar, mas foi, em parte, motivada por ele. Cristina vê na canção uma forma de proximidade, uma tentativa de chegar ao outro por dentro. “Quando partilhamos uma canção com alguém, ou um poema, de alguma forma queremos chegar àquela pessoa. É uma forma de afeto também.” Esse gesto, íntimo, sensível, mas ao mesmo tempo público, atravessa o seu trabalho como fio condutor e tem sido o mote para explorar sonoridades onde o fado surge como ponto de partida para o mundo.
O primeiro disco, Lua Adversa, editado em 2021 com o apoio do Museu do Fado e distribuição da Sony Music, nasceu desse movimento entre o íntimo e o partilhado e da visão transatlântica da música. A proposta estética articula o fado com o choro brasileiro e a canção urbana de Lisboa, numa construção onde a tradição dialoga com o presente sem se apagar. Entre os músicos convidados estão nomes de Portugal e do Brasil, e os temas do álbum - como “Flor Amorosa”, “O Pajem”, “Real e Abstrato” ou “Saia Velhinha” - refletem esse cruzamento de geografias e afetos. Para este último, gravado com o Coro da Fundação Castro Alves, a fadista convidou a própria mãe a participar, sublinhando o lugar das mulheres na transmissão intergeracional da cultura popular. Embora o contacto com músicos de Cabo Verde tenha antecedido a gravação deste trabalho, são as influências brasileiras que predominam no disco de estreia, enquanto as sonoridades das ilhas se afirmam com mais clareza no novo álbum que prepara.
“Quando partilhamos uma canção com alguém, ou um poema, de alguma forma queremos chegar àquela pessoa. É uma forma de afeto também”
Cristina Clara
A relação com o fado, embora anterior à estreia discográfica, também surgiu de forma inesperada. Tudo começou com a interpretação de uma fadista numa peça de teatro. Pouco depois, foi convidada a cantar fado num registo menos convencional e, nesse contexto, conheceu Jon Luz - músico cabo-verdiano conhecido por trabalhar com nomes como Sara Tavares, Lura e Tito Paris - com quem iniciou uma colaborações, tornando o contacto com artistas de Cabo Verde cada vez mais frequente. “Já fui duas vezes a Cabo Verde fazer um pouco esse mergulho. Ainda há poucos meses estive lá outra vez, em Santiago. É algo que me apaixona muito”, conta.
Apesar do encanto com Cabo Verde e as suas sonoridades, a artista assume que não força encontros entre géneros, procurando antes o lugar onde se tocam. “O fado tem em comum com a morna as temáticas dos poemas, as harmonias, o tipo de ambiente em que acontecem, geralmente ambientes de grande emocionalidade ou de silêncio. O batuque é mais próximo, por exemplo, do folclore do Minho.” São as afinidades que orientam as suas escolhas, e que sustentam o equilíbrio entre tradição e experimentação.
A colaboração com músicos portugueses e cabo-verdianos é parte essencial desse processo e é nos ensaios e na escuta mútua, que o repertório se constrói, num caminho onde a própria foi descobrindo autores que antes não conhecia, mas que hoje integram o seu vocabulário afetivo e artístico. “Conheci compositores como o Jota Monte, o próprio Beleza, que é uma figura de referência, o Ildo Lobo, a Maria Alice ou a Ana Firmino. Quase todos ligados ao universo tradicional, que é também aquele onde me sinto mais próxima.”
Nos últimos anos, Cristina tem vindo a afirmar-se de forma discreta e progressiva. Apresentou-se em espaços como o CCB, no ciclo “Há Fado no Cais”, o Teatro da Trindade, o festival Santa Casa Alfama, o Atlantic Music Expo em Cabo Verde, e ainda fora do país, com concertos em São Paulo, no Luxemburgo, nos Açores e na ilha da Madeira, onde, em março de 2024, estreou novos temas ao lado de músicos como Pedro Loch, Edu Miranda, Rolando Semedo e Barbara Piperno. No mesmo mês, participou na segunda semifinal do Festival da Canção da RTP com o tema “Primavera”, onde alcançou a final e somou um dos maiores volumes de votos do público. A canção, escrita por si e musicada por Jon Luz, reforçou a sua posição como uma das vozes emergentes da nova geração da música portuguesa.
Fotografia de Ana Viotti
A relação com o universo tradicional convive com uma escrita íntima e contemporânea. A artista compõe como quem precisa de nomear o que sente, mas canta com a consciência de que está a inscrever-se num género carregado de códigos e expetativas. “É curioso como a música tradicional, que nasceu em ambientes informais, possa ser hoje tão conservadora ou elitista, ao ponto de as pessoas se vestirem a rigor para cantar algo que surgiu com espontaneidade.” Longe de querer romper com o fado, o que procura é espaço para afirmar-se dentro dele com verdade. “Há sempre uma preocupação grande em honrar as raízes, mas também em não fazer algo que já cheira a mofo. E às vezes é difícil encontrar o equilíbrio entre ousar e permanecer fiel à nossa vivência.”
A dor, elemento quase identitário do fado, continua presente, mas não se limita à esfera do íntimo ou da nostalgia amorosa e autora reconhece que há outras formas de sofrimento que hoje precisam de ser ditas e transformadas em voz. “Foi por isso que prestei homenagem à Palestina neste concerto [a entrevista decorreu durante o Festival Med]. Como é que aquelas pessoas estão votadas a um certo abandono por parte da comunidade internacional?”, questiona, acrescentando que a canção, nesse sentido, continua a ser um espaço para elaborar a dor, seja ela individual ou coletiva.
A vontade de se ligar aos outros orienta também o trabalho que tem desenvolvido em oficinas de canto e percussão, criadas para partilhar práticas tradicionais com diferentes públicos. A ideia nasceu durante a pandemia, quando se mudou para o Porto e começou a estudar com mais profundidade as expressões populares. Desde então, tem partilhado esse percurso com outros, em Portugal e além-fronteiras, e tem-se surpreendido com o tipo de pessoas que chegam até si. “Ainda agora, numa oficina em Hamburgo, fiquei surpreendida porque a maior parte dos participantes eram alemães, romenos e holandeses interessados na cultura portuguesa.” O que acontece nessas oficinas não é um exercício de nostalgia, mas uma experiência de presença, um espaço onde a prática musical comum se torna linguagem de encontro. Para a cantora, as tradições funcionam como uma espécie de caixa de ferramentas, dispositivos expressivos que pode ativar consoante a história que quer contar. “Não pretendo criar nada de novo. Pretendo só juntar as ferramentas que encontrei e contar uma história com elas. Para certos sentimentos, a morna é o melhor caminho. Outros talvez se expressem melhor num vira do Minho.”
Entre os muitos temas que compôs, há um a que volta sempre, “Lua”, o primeiro do disco de estreia. A letra nasceu como resposta a um poema de Cecília Meireles e traz consigo uma inquietação que a acompanha há muito: a sensação de que a vida é feita de caminhos possíveis, e que em cada escolha há uma renúncia. “A letra fala disso: dessa dificuldade em escolher qual a vida que realmente nos faz falta viver agora”, conclui.
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