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Há momentos em que a cultura guineense parece viver de milagres. Não de políticas públicas, não de planos estratégicos, não de estruturas sólidas, mas do improviso dos seus próprios artistas e da coragem de jovens que transformam as suas dores e alegrias em música, dança e outras áreas da arte. É como se o Estado guineense estivesse sempre à espreita para aparecer na fotografia do sucesso alheio “porque é o que sabem fazer”, mas nunca no esforço que o antecede.
Vejamos o caso recente do jovem que explodiu com a música “Dama na Faci fama”. Um fenómeno espontâneo, uma chama que ganhou o mundo e mostrou mais uma vez que a criatividade guineense não conhece fronteiras, porém Mc Tchabaco deparou-se com falta de condições para realizar o sonho de gravar sua primeira música e respectivo vídeoclipe. E foi aí que o Ministério da Cultura resolveu acordar, e através da sua Secretária de Estado, correu para posar ao lado do artista, oferecendo um apoio simbólico - bem miserável, diga-se -, como quem tenta apagar anos de ausência com uma foto bem iluminada. “Parece sempre que o Estado só aparece quando dá jeito. Nunca quando dói, nunca quando é para construir.”
A cultura não se faz em momentos virais. Faz-se de bases sólidas, de programas de apoio contínuo, de espaços de formação, de uma visão que ultrapasse o imediatismo. Sem isso, cada talento que surge vira apenas mais uma onda que o Estado tenta surfar para não parecer desligado da realidade, o que entristece e, além do mais, a cada música viral, expõe-se o estado precário da música guineense que já sobrevive sem indústria própria, sem valorização da instituição dita “cultural”, apenas com esforço dos jovens que tentam segurar o barco para não afundar-se na vergonha.
“É como se o Estado guineense estivesse sempre à espreita para aparecer na fotografia do sucesso alheio, mas nunca no esforço que o antecede"
Malam Embaló
Enquanto isso, noutro palco, o Secretário de Estado da Juventude resolveu dar um espetáculo paralelo. Fazendo ameaças públicas contra o estilo batucada, acusando-o de carregar “males indecentes” nas suas letras e prometendo proibir concertos. É curioso ou talvez trágico que esse discurso venha de um ex-rapper que já objetificou mulheres nas suas próprias músicas. A incoerência seria quase poética, se não fosse perigosa, ainda assim, a responsabilidade maior e mais importante continua a repousar sobre os ombros de quem é marginalizado, e não nas mãos daqueles que se servem do estatuto de ‘Estado’ para boicotar e criminalizar.
A questão aqui não é defender letras que de facto podem reproduzir violência verbal ou imagens degradantes, é: desde quando proibir substitui educar? Desde quando censurar substitui dialogar? O Estado guineense não investe em programas de sensibilização, não forma os jovens para compreenderem e refletirem sobre o poder das palavras, não cria políticas culturais de raiz. É mais fácil ameaçar do que educar. “É mais fácil apontar o dedo ao jovem do bairro do que olhar para a incompetência do próprio gabinete.”
E enquanto uns ameaçam, outros aproveitam. A Secretaria de Estado da Cultura, vendo o sucesso de MC Tchabaco a viralizar pelo mundo, correu a estender-lhe a mão. Mas, mais uma vez, não por genuíno reconhecimento. A pressa soava a populismo barato, uma espécie de ensaio de campanha disfarçada de apoio cultural. Ofereceram-lhe uma migalha, um gesto mínimo, mas suficiente para a fotografia e para a narrativa de proximidade num ano em que as eleições já respiram no calendário e lá no fundo, bem no fundo, já se sabe o motivo dessa chamada populista disfarçada de “apoio” ao artista que fez mundo cantar crioulo.
“A cultura é o que resta de mais verdadeiro quando todas as máscaras caem”
Malam Embaló
A cultura, no entanto, não é moeda de troca. Não é cortina de fumo, nem palco improvisado para discursos eleitoralistas. A cultura é o que resta de mais verdadeiro quando todas as máscaras caem. E é urgente que seja tratada com seriedade. Porque cada vez que o Ministério da Cultura falha, quem segura a bandeira do país não é o Estado, são os jovens. São eles que, com ou sem apoio, fazem a Guiné-Bissau ser ouvida fora das suas fronteiras, e são estes jovens que precisam implorar para que o Estado lhes permita realizar concertos, ao mesmo tempo que rouba parte dos seus ganhos com negociatas.
É essa juventude que carrega a música, que reinventa tradições, que mistura batucada com rap. Mas também é essa juventude que vive num país onde a arte só ganha visibilidade quando pode render votos. Onde o artista continua a lutar sozinho, improvisando palcos e gravando em estúdios precários. Envergonha-me muito ver a música “Dama na Faci fama” viralizar tanto, para o artista não ganhar nada e ainda assim ser explorado pela Cultura.
No fim das contas, resta uma pergunta: até quando vamos fingir que a cultura é um luxo, quando na verdade ela é o motor mais humano e mais potente da nossa identidade coletiva?
“Se o Ministério da Cultura não cumpre o seu papel, a Guiné-Bissau continuará a ser sustentada pelos ombros frágeis, mas resilientes, da sua juventude. Só que a juventude também se cansa, também emigra, como tem sido nos últimos anos, e também se perde.”
Quando a juventude se perder, será que a fotografia do Estado ainda terá algum brilho?
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