“A minha missão é manter a Kizomba viva, mesmo que sozinho”, Edgar Domingos

10 de Agosto de 2025

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“Apesar das dificuldades, arranja uma maneira e faz acontecer.” Provavelmente já ouviste esta frase algumas vezes mas, no caso de Edgar Domingos, deixou de ser cliché e acabou por tornar-se numa decisão de vida. O artista angolano, que hoje soma milhões de reproduções nas plataformas digitais, começou a sua caminhada em 2017, sozinho num quarto, sem qualquer equipamento. Anos depois, é um dos nomes mais acarinhados da música angolana em toda a lusofonia. 

“Desmonta” foi o primeiro passo de um percurso que viria a colocá-lo como um dos maiores nomes da nova geração de artistas angolanos. Oito anos depois, já com uma base sólida, vários palcos pisados, hits lançados e colaborações feitas, o artista prepara-se para entrar em cena no Lisboa ao Vivo, para aquele que será o seu primeiro concerto em nome próprio na capital portuguesa.

Encontrámo-nos com Edgar Domingos, na Casa do Comum, no Bairro Alto, para “rebobinar a cassete”, entender os caminhos que o artista tem escolhido, os riscos que decidiu correr e aquilo que tem colhido ao longo desse percurso.

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universal // Yasmine - retirar a 14 ago

Voltemos a 2017. Edgar morava com o Rui, amigo de infância e irmão da vida. Os dois partilhavam o teto e pouco mais. Rui tinha dois bens preciosos naquela altura: um computador e uma viola, mas Edgar não podia mexer em nenhum. 


Contudo, por vezes, os fins justificam os meios e há regras que precisam ser contornadas.  Edgar esperava que o amigo saísse de casa e, às escondidas, ligava o computador. Foi assim que, um dia, instalou o Mixcraft,  um software de estação de trabalho de áudio digital (DAW), que permite a criação e produção musical e, a partir daí, começou a produzir sozinho, sem o amigo saber.


A verdade é que, um dia ao ligar o computador, Rui acabou por descobrir. Viu lá o programa, pediu a Edgar para desinstalar e o artista assim o fez. Em contraponto com a decisão de respeitar o espaço do amigo estava a vontade de fazer música e, uns dias depois, enquanto o colega de casa dormia, Domingos voltou a tentar. Sentou-se ao computador novamente mas, desta vez, com mais cautela. "Não vou falar nesse brada. Assim que ele adormecer, vou tirar o PC, instalar o programa e gravar”, conta, entre risos.


Não tardou a fazer acontecer. Ainda com o beat de “Desmonta”, que tinha guardado na memória, fez o download, voltou a instalar o Mixcraft, ligou os fones e gravou a voz com um microfone com entrada USB, emprestado por dois amigos. Nada de estúdio, nada de grandes recursos, só o beat e a vontade de pôr a música cá fora. Então "gravei por cima do beat do 'Desmonta', exportei todas as vozes e mandei para o meu produtor, o Kastro Songz. Na época, ele ainda vivia em Angola. O Castro Songs ouve a música e diz: 'Essa música está muito forte'. Ele mistura as vozes, dá aquele molho, porque eu ainda não sabia misturar e ele manda-me a música no WhatsApp. Quando voltei a ouvir a música, fiquei tipo: 'What the f*ck?' A música não estava só assim. A música estava 10, 20 vezes melhor.".


Quando Rui acordou, Edgar já tinha apagado todos os sinais de que tinha usado o computador. Mostrou-lhe a música pronta, e após alguns segundos em silêncio, Rui “aprovou-a” de imediato, sugerindo até que a lançasse no dia seguinte. Surpreendido, Rui perguntou onde tinha sido gravada e ao perceber que foi no próprio computador, em vez de se zangar, deu luz verde ao amigo para continuar a usá-lo.


O single acabou por sair quase todo em freestyle e foi nesse momento que o “Senhor Incrível” - nome pelo qual é algumas vezes chamado, em alusão a uma das suas músicas - percebeu que havia potencial para levar aquilo a sério. O risco de ser apanhado pelo amigo, sem saber, acabou por ajudar e deu-lhe o foco necessário para aplicar-se a sério. Não esconde que foi a música que o salvou: “limpou-me a vida", admite.


Olhar para trás e pensar que tudo começou com um computador emprestado e um risco calculado, dá outro peso à história. A questão que se coloca é: teria Edgar Domingos noção do alcance que viria a ter? Admite que em 2017, não fazia ideia. Para o artista, tratava-se apenas de curtir a vibe com os amigos, numa altura em que havia motivação suficiente para gravar num dia e lançar no outro. A música, entretanto, explodiu no Twitter. Na altura, os angolanos eram uma comunidade muito ativa naquela rede social, o que fez com que a faixa começasse a “correr”, sendo comentada, partilhada e remixada. O período marcou uma nova fase e foi a partir daí que algumas portas começaram a abrir-se. 


De lá para cá, Edgar tornou-se numa máquina de fazer hits e depois de “Desmonta”, lançou “Toca no Meu Corpo”, “Evita”, “Dá Valor” e “Adoço”, sendo este último o single que o catapultou. Curiosamente, e apesar do sucesso, foi uma das músicas com que menos se identificou porque “não sentia que o som ia ser aquilo tudo”. Mostrou-a aos amigos e todos disseram o mesmo: era um hit. Gravou um vídeo no barbeiro, lançou no Instagram, alinhou com a editora, fez o videoclipe. E, de repente, a expressão "vais-me temperar até quando?" estava na boca de todos. Gravada na noite de Natal de 2019, a música tem produção assinada por Teo no Beat, amigo e produtor com quem costuma trabalhar, e a letra nasceu de uma conversa sobre um amigo que vivia num vai e vem amoroso. 


Sem videoclipe oficial, o tema alcançou 16 milhões de visualizações no YouTube e colocou Edgar num lugar de destaque - que desde início o deixou relutante. "Até agora, como digo sempre, eu tripo. Assusto-me com certas coisas ainda. Porque simplesmente curtia de fazer música. Nunca esperei retorno disso”, explica, acrescentando que a música, apesar de lhe ter dado muito, tirou-lhe também alguma leveza. Atualmente, lida com esse ritmo e com as pressões da exposição, através da família, local onde admite encontrar refúgio. Passa agora mais tempo com os sobrinhos, os amigos e a avó, também na tentativa de compensar o que perdeu enquanto trabalhava sem parar.

“Podes te tornar famoso do dia para a noite, mas não vais encher um LAV ou um Coliseu do dia para a noite”

Edgar Domingos

Edgar Domingos entrevista

Fotografia de Pedro Silva/BANTUMEN

Em 2024, lançou Às de Copas, primeiro álbum de estúdio e trabalho onde se dá a conhecer enquanto artista e pessoa. Questionado sobre o processo de criação, Edgar admite que foi ali que começou a perceber que estava finalmente a chegar àquilo que sempre quis fazer. As músicas refletem a sua identidade, as vivências e emoções que carrega, e foi nesse disco que conseguiu, pela primeira vez, alinhar a sua visão artística com o resultado final de um projeto que esteve na gaveta por quatro anos. "Anunciei o Às de Copas em 2020 e acabei por lançá-lo em 2024. Quatro anos depois, muito também porque não me sentia pronto ainda”. Eu sou muito assim, de respeitar o tempo de Deus. E em 2020, eu não sentia que era o momento nem que estava com as pessoas certas para disponibilizar o álbum. Foram passando os tempos e, em 2024, decidi que já tinha sido o suficiente para trabalhar o meu álbum sozinho", conta.


Este projeto é uma mistura de várias fases da vida do cantor: o início da carreira, os dois anos em que viveu em Angola e o regresso a Portugal, onde passou a ter “mais espaço para pensar e respirar”. O resultado é um disco pessoal, construído de dentro para fora, fruto de um processo de gravação que, apesar de não ter sido linear, contou com a visão e experiência de nomes de peso da indústria. Tem faixas com mais de seis anos, como “Mood”, e outras como “Off & Station”, “Game Over” e “Better”, que foram gravadas apenas dois meses antes do lançamento. 


O resultado é um disco pessoal, construído de dentro para fora, fruto de um processo de gravação que, apesar de não ter sido linear, contou com a visão e experiência de nomes de peso da indústria. Reúne faixas com mais de seis anos, como “Mood”, e outras que nasceram praticamente à porta do lançamento - como “Off & Station”, “Game Over” e “Better”, gravadas apenas dois meses antes do disco ver a luz do dia.


A primeira versão do disco foi apresentada aos membros da Força Suprema e a receção não foi a esperada. O coletivo admitiu que o álbum tinha emoção mas parecia incompleto. O coletivo reconheceu a carga emocional do álbum, mas considerou-o incompleto. Para quem cresceu a dar voz à realidade das ruas, era importante que as vivências mais cruas também estivessem representadas, mesmo que, por vezes, falte coragem ou disposição para expor certas feridas. Foi esse "puxão de orelhas" que fez Edgar repensar nas suas produções. Voltou atrás, tirou faixas e gravou outras. Algumas das músicas mais fortes do álbum nasceram depois desse momento, com verdades que ele até então tinha deixado guardadas. “KBB”, em colaboração com Djodje, é exemplo disso. A música, idealizada desde 2020 com um beat diferente, esteve engavetada durante algum tempo e só integrou o alinhamento final do álbum após algumas alterações. As mudanças foram tão significativas, e acertadas, que levaram o artista cabo-verdiano a querer regravar a voz.


O artista reconhece que foi graças à pressão certa no momento certo que o álbum chegou ao nível que tem e não hesita em admitir a importância da Força Suprema no processo. Diz-se atento aos detalhes e é autocrítico a ponto de considerar que algumas músicas poderiam estar mais limpas ou mais afinadas tecnicamente. À parte disso, está satisfeito com o álbum e ansioso por apresentá-lo, pela primeira vez, no Lisboa ao Vivo. 


"Já nem tenho dormido bem. Estou ansioso. Muito ansioso. Mas sinto que já devia isso [aos meus fãs]. Tenho trabalhado muito mas tenho muito para melhorar e já há um bom tempo que eu apresentava o mesmo formato de show. (...) Acho que já era sem tempo. Tenho de apresentar um show digno a quem gosta de ouvir Edgar Domingos e dia 29 é muito por isso”, conta. Para o concerto, o artista está a preparar um espetáculo completo, com banda ao vivo e um formato totalmente diferente do que costuma apresentar em Portugal.


Acostumado a tocar com banda em Angola, explica que a transição para este formato em Lisboa não lhe traz desconforto, mas sim entusiasmo. A sua abordagem é sempre colaborativa e por isso acredita que todos os elementos em palco são importantes na mesma medida e que o espetáculo não é só sobre ele e sim sobre o coletivo. A chave está na troca com o público e com a vontade de dar e receber com intensidade. 


O “Senhor Incrível” admite que, tecnicamente, em Angola ainda há limitações, mas em Portugal sente que há todas as condições para elevar a fasquia. E isso aumenta ainda mais a sua motivação. "Acho que agora já tenho público suficiente para poder fazer uma sala. Porque é um processo e o processo não é rápido. Muitas das vezes pode ser mas quando digo em relação às salas, aos palcos, o processo nunca é rápido. Podes te tornar famoso do dia para a noite, mas não vais encher um LAV ou um Coliseu do dia para a noite. Tu tens que criar a estrada, criar o calo. Então, acho que este tempo todo fui realmente me preparando e aproveitando a beleza da estrada”, diz-nos e acrescenta que hoje sente-se mais confortável e preparado para assumir o controlo de um espetáculo, independentemente do tempo que o mesmo possa ter. 


Antes de terminarmos a conversa, lançámos uma última questão ao cantor sobre o espaço que a kizomba ainda ocupa no cenário musical atual, tanto em Portugal como na diáspora, sobretudo, numa era em que géneros como o amapiano e o afro-house dominam pistas de dança, bares e plataformas digitais. "Acho que devemos, nós, fazedores de kizomba, aceitar isso. É agora a época do amapiano e do afroswing. A Kizomba não está assim tão viva, mas cabe a mim e a muitos outros que fazem kizomba não pararmos de fazer” até porque, acrescenta, “a música é feita de ciclos” e isso não retira espaço. Pelo contrário, pode ser o ponto de partida para algo maior. O importante, no final, é que a música africana, em todas as suas formas, continue a ter palco.


Enquanto artista, Edgar materializou essa visão em temas como o novo single, “Agulha no Palheiro”, que não deixando de ser kizomba, reúne outros elementos como o log drum, uma variação do amapiano. Para si, a questão não é se a kizomba está a morrer, mas sim como reinventá-la para que continue a ter espaço no meio de tantos géneros em ascensão e a estratégia passa por compreender o amapiano num todo e aplicar essa linguagem dentro do universo da kizomba. Na sua visão, o género tem futuro  e assume o compromisso de fazer parte dele. “A minha missão é manter a Kizomba viva, mesmo que sozinho”, assume.


A sublinhar que, depois do espetáculo no Lisboa Ao Vivo, no dia 29 de agosto, Edgar Domingos já tem caminho traçado: vem aí Easy Season 2, o novo EP com quatro faixas de kizomba. O projeto dá continuidade à identidade emocional e romântica que o artista tem vindo a afirmar, com “Agulha no Palheiro” como primeiro single, já lançado e recebido com entusiasmo pelos fãs. Mas não se fica por aí. Em primeira mão, o artista revelou ainda que, em agosto, lançará “Não Digas Que Me Amas”, mais um tema desta nova fase.

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