Cultura, crioulo e diáspora: a visão de Augusto Veiga nos 50 anos de Cabo Verde

5 de Julho de 2025
Entrevista augusto gugas veiga
Augusto "Gugas" Veiga | Fotografia ©BANTUMEN

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Ministro da Cultura e das Indústrias Criativas de Cabo Verde desde 2021, Augusto Veiga, popularmente conhecido como Gugas, tem vindo a ocupar um lugar central no debate sobre o papel da cultura no desenvolvimento do país. A sua presença na política é relativamente recente, mas não pode ser dissociada daquele que foi o seu percurso profissional até então. Veiga passou mais de trinta anos no setor cultural, sobretudo ligado à indústria musical. Foi empresário, agente e manager de artistas e bandas, tanto em Cabo Verde como na diáspora, e organizou eventos em múltiplos países. Esse percurso, como fez questão de lembrar, deu-lhe “uma grande experiência de terreno”, que hoje procura transpor para a gestão pública com o objetivo claro de reestruturar o setor cultural sem comprometer a sua integridade simbólica.

Filho de Carlos Veiga, primeiro-ministro de Cabo Verde entre 1991 e 2000, conheceu desde cedo os bastidores da governação. Apesar de ter seguido uma trajetória autónoma, não esconde a importância da conversa que teve com o pai e a forma como a mesma se veio revelar determinante para aceitar o desafio. “A conversa com ele [Carlos Veiga] foi muito importante para aceitar o desafio, deu-me vários conselhos”, disse, em 2021, momentos após ser empossado pelo Presidente da República, José Maria Neves.

Viveu e estudou em Portugal e nos Estados Unidos - onde passou quase seis anos - experiências que, segundo o próprio, foram determinantes para alargar a sua visão sobre o papel da cultura na diáspora. Ao regressar ao país, envolveu-se ativamente na cena artística local, construindo pontes entre criadores, comunidades e instituições. Só mais tarde viria a assumir funções públicas, com a convicção de que “com espírito de missão”, poderia “fazer a diferença pela positiva”. 

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“Acreditamos que o turismo cultural é um fator fundamental da diversidade do turismo”

Augusto Veiga


Essa lógica de missão traduz-se numa conceção da cultura como área estratégica, com valor económico, educativo e diplomático. Num país que continua a depender fortemente do turismo - 25%, segundo apontam os dados referentes a 2022/2023 - Augusto assume que a pasta que detém pode ser entendida como um elemento diferenciador. Foi nesse contexto que os ministérios da Cultura e do Turismo assinaram um memorando de entendimento inédito, estabelecendo uma plataforma de cooperação para reposicionar o país como destino cultural. “Acreditamos que o turismo cultural é um fator fundamental da diversidade do turismo”, afirmou, acrescentando que, para materializar esse potencial, é necessário criar instrumentos concretos. Uma das primeiras medidas, nessa lógica, foi a reclassificação da cultura, até então inscrita no pilar social, como pilar económico do governo, o que permite outro enquadramento orçamental e abre caminho a novas formas de financiamento.

O reposicionamento, assumido desde o início do mandato, já deu lugar a investimentos e mudanças, quer no campo financeiro, quer no campo da execução e parcerias estratégicas. O orçamento do Ministério para 2025 ultrapassou os 813 milhões de escudos, dos quais mais de metade estão destinados ao desenvolvimento das indústrias criativas. Em paralelo, foram criados programas de apoio direto à criação e circulação, como a Bolsa de Acesso à Cultura, criada em 2017 mas cujo orçamento tem vindo a crescer nos últimos anos. A política de descentralização levou a parcerias com municípios e associações locais, com destaque para o reforço da Feira Nacional de Artesanato e Design (URDI), que terá a sua dotação duplicada na próxima edição. Também a valorização das manifestações culturais tradicionais tem merecido atenção: em 2025, o governo firmou protocolos com onze grupos de tabanca da ilha de Santiago, garantindo apoio financeiro anual para a continuidade dessa expressão identitária.

Entre os projetos com maior visibilidade internacional está a Casa Museu Cesária Évora. Instalada na casa onde a artista viveu os últimos anos, em São Vicente, a estrutura será integrada no novo terminal de cruzeiros da ilha e contará com financiamento do Banco Mundial, através da International Finance Corporation. O valor ronda os quatro milhões de euros, e marca, simultaneamente, a abertura de um novo precedente. “O Banco Mundial nunca financiou projetos na indústria criativa ou na cultura”, sublinha. O projeto inscreve-se numa estratégia mais ampla de valorização da memória e da criação musical cabo-verdiana. Inclui ainda a criação de um conservatório regional de música para jovens a partir dos 13 anos e a realização de um novo estudo de impacto económico da cultura, o primeiro em mais de uma década. Está igualmente em curso a implementação do Observatório da Cultura, que permitirá reunir e atualizar anualmente dados sobre o setor, fornecendo uma base técnica sólida para a tomada de decisões.

Outra frente de atuação é a profissionalização do setor cultural. O ministério está a ultimar a proposta do Estatuto do Artista, documento que será submetido ao Conselho de Ministros e, posteriormente, à Assembleia Nacional. O objetivo é dotar os profissionais de um enquadramento legal que lhes garanta direitos, proteção social e acesso a mecanismos de apoio. “Estamos a trabalhar em projetos estruturantes para o futuro”, observa ao mesmo tempo que defende uma visão onde a cultura não é apenas produção simbólica, mas também trabalho, rendimento e contributo para o PIB. Neste mesmo quadro inscreve-se o protocolo estabelecido com a companhia aérea TACV, que prevê isenções e facilidades para a mobilidade de artistas, tanto em território nacional como no estrangeiro.

Mas se a cultura é, para Veiga, fator económico, é também o eixo principal da afirmação identitária de Cabo Verde. Hoje, dia 5 de julho, o país assinala 50 anos de independência, e as celebrações terão na cultura o seu núcleo mais visível. Nascido em 1971, tinha apenas quatro anos aquando da independência, mas lembra o ambiente de transformação que se viveu a partir de então e o simbolismo pessoal que o marco representa. “É uma coincidência muito feliz fazer parte do Governo agora, nestas comemorações dos 50 anos de independência, porque é um momento único.” Fala como quem vive a ocasião com sentido de continuidade histórica, mas também de responsabilidade política. “É uma grande honra poder testemunhar os primeiros 50 anos e contribuir com a minha função para que possamos continuar a desenvolver o país com base numa das áreas mais importantes, que é a cultura. Havia vários estilos musicais que eram proibidos no tempo português”, recorda. Com a independência, essa censura foi levantada e a cultura floresceu. O Estado democrático abriu espaço à criação livre e deu lugar ao desenvolvimento de linguagens próprias, como o funaná e a tabanca, até então marginalizadas. Essa liberdade, argumenta, foi determinante não apenas na consolidação da identidade nacional, mas também na afirmação democrática do país.

“A língua é património, não apenas nacional, mas social”

Augusto Veiga

E as comemorações dos 50 anos pretendem refletir esse percurso. O programa inclui atividades em todas as ilhas e também em várias cidades da diáspora, numa lógica de descentralização e pertencimento, onde a ligação entre território e comunidade emigrada é parte estruturante da política cultural do ministério. “A diáspora representa realmente o guardião das nossas raízes”, afirma. “Eles são os primeiros a guardar e a preservar a nossa cultura. É a nossa identidade”. Estima-se que entre um a um milhão e meio de cabo-verdianos vivam fora do país, o que representa duas a três vezes a população residente no arquipélago. A presença mais expressiva encontra-se nos Estados Unidos, onde vivem mais de 260 mil pessoas de origem cabo-verdiana, e em Portugal, com cerca de 100 mil. Essa rede dispersa, mas altamente conectada, participa ativamente no consumo, na produção e na circulação da cultura nacional. Muitos dos principais artistas cabo-verdianos vivem fora do país e a diáspora funciona, simultaneamente, como público, mercado e plataforma de promoção. 

O apoio institucional e a presença em eventos como o Festival MED, evento que este ano tinha Cabo Verde como país convidado e local onde decorreu a entrevista, são exemplos práticos dessa política de envolvimento. Mais do que representar o Estado, o objetivo é criar condições para que a diáspora continue a ser produtora e mediadora de cultura cabo-verdiana.

A dimensão identitária estende-se naturalmente à língua. A valorização do crioulo como património comum tem sido uma constante na vida pública do país e sua oficialização era uma das bandeiras de celebração do cinquentenário, mas ainda permanece em aberto. Quando questionado sobre o tema, Augusto Veiga reconhece que a questão ultrapassa a vontade governamental. A diversidade de variantes, cada uma com forte enraizamento local, tem dificultado o estabelecimento de um modelo unificador. “Ainda não há consenso. Esse é o maior problema”, admite. 

O executivo prepara-se para alargar o debate, procurando envolver linguistas, académicos, partidos e representantes da sociedade civil. A ideia não é precipitar decisões, mas criar condições para que um eventual reconhecimento oficial seja fruto de um entendimento partilhado. Para Veiga, a oficialização do crioulo só faz sentido se for acompanhada de uma valorização plena da língua, não apenas enquanto instrumento de comunicação, mas enquanto elemento estruturante da identidade nacional. “A língua é património, não apenas nacional, mas social”, observa, convicto de que a maturação política e institucional desse processo exigirá tempo, escuta e compromisso. Assume-se a favor da oficialização e não esconde ser já tempo de dar “dignidade” à língua. 

Com um percurso governativo marcado pela dupla tensão entre prática e estrutura, urgência e planeamento, Augusto Veiga tem vindo a liderar projetos que convergem na ideia de fundo de que a cultura não deve apenas ser preservada, mas transformada num instrumento de desenvolvimento, dignidade e soberania. Fazer política cultural, no seu entendimento, implica escutar o terreno, reconhecer os saberes acumulados fora das instituições e desenhar políticas à altura da complexidade que o setor comporta, transformando-o num modelo que equilibra território, memória e futuro.

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