Gigi Origo e a arte como um encontro entre corpo, tempo e a textura invisível das imagens

7 de Novembro de 2025
entrevista gigi origo MIA
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Radicada em Lisboa, Gigi Origo é uma artista visual francesa e cabo-verdiana que habita o espaço entre a matéria e o intangível. O seu trabalho digital parte da sobreposição, de memórias, contornos e transparências, para construir uma linguagem visual própria, feita de estratos e ressonâncias. Cada imagem é uma memória acumulada onde se entrelaçam repetição, rasto e apagamento.

Através da colagem digital, procura restituir a densidade e a textura do real, transformando o digital numa matéria viva. Nas suas composições, o grão, a luz e a rugosidade evocam a superfície do papel, da pele e da terra. A fisicalidade subtil faz com que as obras convidem o olhar a demorar-se no detalhe e na imperfeição.

Os rostos que surgem nos seus trabalhos, frequentemente fragmentados, tornam-se arquitecturas de carne e memória, corpos que oscilam entre a intensidade ritual e o silêncio interior. São figuras que não se fixam, emergem, desvanecem-se e renascem, como se estivessem presas num tempo que se dobra sobre si próprio.

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MIA MIA 2025

“Criar faz parte do meu quotidiano, seja através do desenho, da fotografia ou de outras formas”

Gigi Origo

Questionada desde quando começou a dar importância à arte, a artista responde que começou “a dar realmente importância à arte que eu criava entre 2021 e 2022. Nessa altura, fiz uma pausa profissional para retomar os estudos e, pela primeira vez, tinha tempo para mim. Antes disso, trabalhava na restauração,  era diretora de um grande restaurante, por isso a minha mente estava completamente ocupada. Quando parei, senti como uma lufada de inspiração e voltei a criar. Na época, só tinha o meu computador, por isso fazia tudo no Illustrator. Trabalhava muito o traço, as matérias, a forma de traduzir a textura através de sobreposições, um pouco como uma colagem digital. Passei vários meses a experimentar, até comprar o meu iPad Pro. E aí, foi uma revelação”.

O programa Procreate abriu-lhe o campo de poder desenhar diretamente com a caneta e reencontrar o gesto. Sentiu que era a ferramenta certa para ir mais longe na sua pesquisa. A partir daí, tornou-se difícil voltar ao computador. O iPad acabou por dar-lhe mais liberdade e mais intuição. Foi também nesse momento que começou a olhar para as suas criações de outra forma, não apenas como visuais, mas como verdadeiras peças artísticas.

“Tenho-me concentrado muito na textura, na profundidade no digital. Para mim, isso é essencial: como é que se passa do pixel à matéria? Como é que se faz sentir a textura através de um ecrã? Esse trabalho de transformação foi uma verdadeira descoberta. E desde então, nunca mais parei. Criar faz parte do meu quotidiano, seja através do desenho, da fotografia ou de outras formas. A arte sempre teve um lugar especial na minha vida. Estudei design de moda; não segui a profissão, mas esse vínculo com a criação ficou. 2021-2022 foi o ponto de viragem, mas a presença da arte, essa, sempre lá esteve.”

A sua obra inscreve-se numa temporalidade não linear, onde o tempo se deposita e se transforma. Ao traduzir a profundidade num meio de superfície, a artista questiona a nossa percepção do mundo,  o que persiste, o que se dissolve e o que renasce na imagem. No seu processo criativo, a repetição é gesto e linguagem. As composições ecoam o ciclo da memória, o regresso constante ao que já foi, agora filtrado pela distância e pelo olhar. Cada fragmento atua como um rasto do que ainda nos liga ao mundo, numa tentativa de reter o que o tempo insiste em apagar.

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©Gigi Origo

“Hoje entendo que a minha africanidade está em tudo o que faço, naturalmente, sem necessidade de reivindicação”

Gigi Origo

Fazer parte do MIA era um objetivo antigo para Origo que depois de visitar o evento em 2024, sentiu que aquele espaço de celebração da identidade africana refletia exatamente o que movia a sua própria prática artística. “Fazer parte do MIA era um objetivo desde o ano passado. Quando visitei o evento em 2024, fiquei profundamente tocada pela forma como a identidade africana era celebrada e explorada em tantas dimensões, da arte à palavra, da memória à performance. Vi-me refletida ali. Depois dessa experiência, prometi a mim mesma que a próxima exposição teria de ser no MIA, porque a identidade é o eixo de tudo o que crio. A minha prática nasceu de um questionamento pessoal, quem sou eu, o que sou, para onde vou e hoje entendo que a minha africanidade está em tudo o que faço, naturalmente, sem necessidade de reivindicação. Estar no MIA é, por isso, mais do que mostrar o meu trabalho: é participar num espaço onde a nossa existência é afirmada, onde a arte se torna um acto de pertença e resistência.”

Para a artista, a presença no MIA é também uma forma de responder às injustiças e aos estereótipos que ainda moldam a perceção das identidades africanas e diaspóricas. “Ninguém tem o direito de definir quem somos.” Sobre a exposição “Ecos da Memória”, explica que o tema “falou imediatamente”. O seu trabalho parte de fotografias que desconstroi e transforma, criando novas narrativas visuais. “Escolhi imagens que contam fragmentos de vida, auto retratos e momentos do quotidiano. Uma das obras é dedicada a uma amiga que já partiu, uma forma de lhe prestar homenagem.” Nesta série, a artista liga o passado e o presente através da matéria e dos símbolos: algumas peças foram cortadas e reunidas com ráfia, num gesto de reconciliação com o tempo, e outras foram retrabalhadas com silicone para evocar o toque, um modo de tornar a memória física, palpável, viva.

Muito mais do que a representação, o trabalho de Gigi passa pela reconstrução. Nas suas mãos, o digital deixa de ser uma superfície fria para tornar-se num território de escuta e de reencontro com o corpo, com a história e com a matéria. A sua arte é, em última instância, um exercício de preservação da presença, um arquivo poético de tudo o que resiste à erosão do tempo.

Com uma estética que combina fragilidade e densidade, a criadora constrói pontes entre o passado e o agora, entre o visível e o sensível. Em cada obra, há uma procura pela vibração do que é humano, uma tentativa de fazer do digital não um espelho do mundo, mas uma extensão viva da memória.

“Quanto mais os artistas se assumem na sua identidade, mais a diferença se fortalece. Cada artista é único, e é precisamente nessa singularidade que devemos mergulhar”

Gigi Origo

Como artista que transita entre França, Cabo Verde e Portugal, reconhece-se num espaço de descoberta e reconstrução. “Ainda não me considero totalmente uma artista lusófona, porque Portugal continua a ser uma descoberta para mim. Cresci em França, e embora seja cabo-verdiana, os códigos culturais são muito diferentes. Estou a descobrir, aos poucos, a cultura dos PALOP que em França praticamente não existe enquanto tal.”

A consciência de fronteira reflete-se na sua visão sobre o panorama artístico contemporâneo. Para Gigi, há cada vez mais espaço para a diferença e é nessa abertura que a arte negra encontra novas formas de afirmação. “Sim, existe espaço, e felizmente. Vê-se em feiras como a AKAA (feira internacional de arte contemporânea e design centrada em África)  ou a 1-54 (também uma feira internacional de arte contemporânea africana, considerada a mais importante do mundo dedicada exclusivamente à produção artística do continente e da sua diáspora), a arte negra já não é vista como arte tribal. Há uma diversidade imensa, uma inventividade incrível.”

A artista acredita que a força da diferença nasce da autenticidade. “Quanto mais os artistas se assumem na sua identidade, mais a diferença se fortalece. Cada artista é único, e é precisamente nessa singularidade que devemos mergulhar. Para mim, o mais importante é expressar uma emoção verdadeira, uma identidade sincera.”


Com um trabalho que funde o digital e o material, Gigi Origo procura equilibrar a liberdade e a presença física da criação. “O digital tem hoje o seu lugar na arte, começa a ser reconhecido pelo que é: um meio de expressão pleno. O meu trabalho move-se entre o digital e o plástico, procuro manter uma presença material, traduzir o que quero dizer tanto através da matéria como do traço. O digital dá-me liberdade; a matéria, profundidade.”

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