Ricardo Parker, entre o caos e a cor, um artista que transforma a urbanidade em arte e consciência

10 de Novembro de 2025
entrevista ricardo parker
Ricardo Parker | ©mrsoulsanchez

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Lisboa é o centro das entrelinhas da arte de Ricardo Parker. É nela que o artista ascendência cabo-verdiana encontra o seu campo visual, o terreno onde as cores se misturam, as letras se entrelaçam e as personagens ganham voz. É também na cidade que aprende a olhar o mundo com sentido estético e com a consciência social que aplica em cada traço do seu trabalho.

Autodidata e intuitivo, Parker construiu um percurso fora dos circuitos académicos, alimentado pela cultura de rua, pelo graffiti e pela observação atenta do quotidiano. Lisboa foi a sua primeira escola e o local que o “ensinou a olhar”, disse em entrevista à BANTUMEN.

Em novembro, o artista integra a exposição Ecos da Memória, no âmbito do Mês da Identidade Africana, patente na Casa do Comum de 5 a 15 de novembro. Ao lado de Naia Sousa, Sai Rodrigues e Gigi Origo, Parker apresenta obras que orbitam três ideias-matriz, a herança, a luta e a liberdade, num diálogo entre a cidade de hoje e as genealogias que a atravessam.

O artista preparou obras que atravessam esses três temas através da sua experiência enquanto afrodescendente em contexto urbano. O objetivo, explica, é que o público reconheça não apenas a força das personagens e das cores, mas também a reflexão por detrás de cada peça. Entre os títulos já definidos estão Herança e Liberdade. Parker sublinha que quer que tudo faça sentido como forma de homenagear a história, tanto a longa quanto a recente, das comunidades negras em Portugal e nos PALOP. “Esses temas vão comigo. Mesmo quando não são explícitos, estão lá, nas cores, nas formas, nas personagens.”

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“O ‘Ecos da Memória’ leva-me à herança, às coisas que os meus pais me tentaram passar, às nossas raízes e à história das comunidades negras em Portugal”

Ricardo Parker

Para o artista, o Mês da Identidade Africana representa um espaço essencial dentro da comunidade negra em Portugal. O convite para participar na exposição foi recebido como um encontro natural. “Achei que podia contribuir e trazer a minha voz. Estas iniciativas são importantes porque inspiram e criam comunidade. Precisamos de espaços onde possamos mostrar o que somos e o que temos para dizer.”

Desde cedo, o desenho foi a sua segunda língua. Em casa, os pais eram espelho e estímulo; na rua,despertou o olhar para camadas, tensões e pertenças. “Algumas das minhas memórias mais importantes são de estar a desenhar ou a pintar, de aprender com os meus pais a conjugar cores e criar formas”, recorda.

Durante muitos anos, a ideia de ser artista parecia-lhe distante, mas à medida que foi descobrindo novos movimentos e criadores, começou a acreditar que esse poderia ser o seu caminho e que o impulso criativo podia ganhar outra dimensão. 

A mudança de paradigma surgiu quase por acaso, quando um amigo sugeriu que experimentasse o Photoshop, e essa transição do papel para o ecrã acabou por mudar tudo. Até então desenhava e pintava à mão, mas ao explorar o digital percebeu que podia construir um universo mais complexo e visualmente rico. Atualmente, antes de qualquer composição, há sempre um caderno de esboços, notas marginais, linhas riscadas e ideias em processo. Só depois o computador se torna extensão do corpo.

Hoje, o artista faz questão de trazer urbanidade para tudo o que cria, nas cores, nas texturas, nas letras inspiradas no graffiti e nos rostos diversos que compõem a paisagem humana. “A tipografia dá força às palavras, as personagens criam empatia e presença, e a cor é o elemento emocional que liga tudo”, explica.

O facto de ter crescido entre culturas europeias e africanas moldou o seu olhar e a sua consciência artística. A experiência de ser afrodescendente em Lisboa define tanto a sua estética como o seu olhar político. “A identidade africana está presente no meu trabalho como herança e como afirmação. Crescer entre culturas criou uma dualidade que me influencia muito. A arte é o meu meio de navegar e afirmar essa identidade, sem folclore, mas com verdade e consciência.”

entrevista ricardo parker

©mrsoulsanchez

A presença sutil, mas constante,  manifesta-se nas cores, nas figuras que evocam a ancestralidade e nas referências que atravessam a sua obra, que funciona como uma espécie de cartografia afetiva que liga o continente à diáspora. “Crio imagens que mostram essa multiplicidade, uma identidade negra e africana vivida em contexto urbano, atual e muitas vezes invisibilizada. É uma forma de dar lugar à minha voz e à de muitos que vivem entre mundos.”

De 2014 para cá, o seu trabalho começou a ser publicado e reconhecido fora de Portugal, em países como a Coreia do Sul, o Brasil, a Bélgica, a Turquia e o Reino Unido. Participou em plataformas e revistas internacionais como IDN World, Zupi Magazine, Panta, The Wrong Biennial e ELLOHYPE, entre outras. “O reconhecimento internacional foi inesperado, mas gratificante. Percebi que o que eu fazia, mesmo sendo pessoal e ligado à minha vivência, podia ressoar em pessoas de culturas diferentes. Isso deu-me confiança para continuar.” explicou.

Ainda assim, o artista mantém os pés no chão e garante que nunca encarou a arte como uma profissão no sentido tradicional. “Para mim, é uma necessidade de expressão. Gostava de ter mais tempo para criar, mas o que me move é o processo, não o resultado.”

As suas obras, conhecidas pela densidade e texturas, convidam o olhar a demorar-se e nem sempre procuram uma mensagem única, muitas vezes, pretendem deixar diferentes níveis de leitura, para que o público descubra por si. “Quero que as pessoas percam tempo a olhar. Às vezes há detalhes que só se revelam depois de um segundo olhar. Gosto de obras que pedem silêncio e atenção.”

Ricardo reconhece também as dificuldades de ser artista negro em Portugal e recorda que já tentou realizar exposições individuais, mas enfrentou várias recusas. Admite que pode ter sido coincidência, ou não, mas prefere focar-se no fato de hoje existirem movimentos que estão a abrir espaço para novas vozes. “Faz todo o sentido. É algo que fazia falta numa comunidade tão grande e com tanto talento. Espero que cresça, que chegue a todo o país, que inspire outras pessoas a criarem.”, disse.

Apesar dos obstáculos, o artista mantém uma perspetiva otimista, considerando que há avanços visíveis, com mais oportunidades a surgirem e mais espaço a ser dado a novas vozes. “Se isso se tornar contínuo e mais abrangente, ganhamos todos, artistas, públicos e o próprio ecossistema.”

Parker vê neste momento um gesto de pertença e continuidade. “É poder estar com outros artistas negros, partilhar experiências, criar sinergias. Há uma força nisso.” E termina a nossa conversa, com uma mensagem que  se estende para todos os artistas emergentes. “Segue o teu caminho. Faz o que te faz sentir bem, o que te faz sentir livre. Não te prenda a expectativas. Cria porque precisas, porque tens algo para dizer. E passa a tua mensagem com positividade”, concluiu.

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