A cor da mobilidade e o modo como a linguagem define o valor humano nas fronteiras modernas

14 de Outubro de 2025
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Jamila Pereira | DR

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Como imigrante a testemunhar a ascensão da extrema-direita e a vaga crescente de retórica anti-imigração por todo o mundo, especialmente na Europa, o meu coração já não reconhece o significado da palavra tranquilidade. Incha de ansiedade, dor e angústia a cada deslize de ecrã, a cada notícia, a cada manchete — as minhas veias entopem-se de pânico e aflição.

Eu mudei-me para o Reino Unido aos 18 anos, e desde então muita coisa mudou. Hoje, carrego a dor de ver o rumo das coisas piorar para quem se parece comigo, ou para quem percorreu os mesmos caminhos de sobrevivência que eu percorri. Tenho um passaporte português e guineense, que me oferecem uma saída silenciosa, caso as coisas piorem, mas nem todos têm esse privilégio e nem todos podem recomeçar, ou atravessar outra fronteira em busca de paz.

O que sempre me intrigou, contudo, é a forma desigual como a migração é percepcionada e nomeada. Alguns de nós são rotulados de imigrantes, carregando o peso da suspeita, da política e da necessidade constante de provar o nosso valor. Outros - muitas vezes brancos, ocidentais e abastados - são celebrados como expats, como se a mobilidade fosse um sinal de sofisticação e não de sobrevivência. As próprias palavras revelam as hierarquias em que vivemos: quem pertence, quem é bem-vindo e quem deve justificar eternamente o seu direito a permanecer.

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“Quando as palavras que usamos para descrever o movimento humano estão impregnadas de hierarquias raciais, já não estamos apenas a nomear realidades, estamos também a reproduzir desigualdades”

Jamila Pereira

E esta narrativa enraizou-se na cultura, na sociedade e na política. Por isso, pergunto:  quais das seguintes pessoas considerarias expatriados?

Se estivermos numa sala rodeados por um nómada digital americano a viver em Lisboa, uma costureira senegalesa radicada em Paris, um diplomata britânico destacado na Nigéria, uma estudante de enfermagem da Guiné-Bissau a aperfeiçoar-se num hospital em Milão, um empresário alemão em Salvador, e uma dona de casa congolesa a cuidar dos filhos em Amesterdão depois de perder o marido num campo minado, - quem é que tem o privilégio de desfrutar dos frutos de uma relocalização em busca de uma vida melhor, e quem é que se sufoca na falta de humanidade e dignidade?


De acordo com o dicionário, o significado de expatriado é o seguinte:

Expatriado

(ex·pa·tri·a·do)
adjectivo e nome masculino

Que ou aquele que reside, voluntariamente ou não, fora da sua pátria. = EXILADO

Origem: particípio de expatriar.

"expatriado", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025.

Então, seguindo a lógica da definição acima, um expatriado (frequentemente abreviado para expat) é uma pessoa que reside num país diferente daquele onde cresceu, de forma voluntária ou não, por um período de tempo indefinido. Assim, todas as pessoas mencionadas anteriormente encaixariam nessa definição, certo?

Bem, não exatamente. Historicamente, apenas o nómada digital americano a viver em Lisboa, o diplomata britânico destacado na Nigéria e o empresário alemão em Salvador seriam vistos dessa forma, porque, como Mawuna Remarque Koutonin esclarece no The Guardian, o termo expat é reservado exclusivamente a pessoas brancas e ocidentais que vão trabalhar para o estrangeiro.


Como costumo explicar aos meus amigos, existe uma pirâmide - invisível, mas ao mesmo tempo bastante sentida - que nos coloca sob uma hierarquia social de mobilidade ascendente. Seja pela etnia, pelo sexo, pela religião ou pela classe, essa pirâmide de interseccionalidades reflete-se depois na linguagem e na forma como navegamos diferentes espaços. Por isso, não surpreende que “no léxico da migração humana ainda existam palavras hierárquicas, criadas com o propósito de colocar as pessoas brancas acima de todas as outras. Um desses vestígios é a palavra expat”, como descreve Koutonin.

“Há uma necessidade constante de lembrar aos locais que estamos aqui para investir, para gastar o nosso dinheiro ‘honestamente ganho’, e não para ‘roubar empregos’ ”

Jamila Pereira

Nos últimos anos, esta noção tem-se tornado cada vez mais evidente, sobretudo com o aumento de funções baseadas em trabalho remoto. A noção de alteridade e as culturas subalternas ressurgem ao lado desta nova economia digital, que continua a excluir sul-asiáticos, africanos e árabes deste rótulo pretensamente digno de expat, classificando-os antes como imigrantes.

São indivíduos sistematicamente demonizados como sendo “demais” - em número e em presença -, pessoas cuja humanidade raramente é colocada ao mesmo nível que a das pessoas brancas. A nossa sociedade, estruturalmente racista, continua a perpetuar a ideia de que os brancos são intrinsecamente superiores, enquanto as outras etnias são vistas como “inferiores” e “indignas” desse mesmo estatuto.

Com o passar do tempo, reparei que esta necessidade de se autodenominar expat também nasce do desejo de ser visto como um “bom estrangeiro” e aproximar-se da branquitude. Por isso, também vejo afro-americanos, sul-africanos, brasileiros e até luso-africanos que viveram muitos anos fora mais inclinados a adotar esta palavra como um símbolo de orgulho e distinção. Mas a verdade é que isto continua a cheirar a supremacia branca.

Da mesma forma que vemos pessoas não brancas a votar em Trump ou no Chega, existe esta ânsia de nos distanciarmos de tudo o que é rotulado como demoníaco - como a imigração, certo? Há uma necessidade constante de lembrar aos locais que estamos aqui para investir, para gastar o nosso dinheiro “honestamente ganho”, e não para “roubar empregos”. Não saber a língua, isolar-se e não se adaptar à cultura local são exigências impostas apenas aos imigrantes, nunca àqueles que chegam de carteira cheia, tal e qual as Madonna’s da vida.

Esta lógica de supremacia expõe a incapacidade coletiva que temos de questionar a outremização - o processo de transformar o outro num ser à parte - de pessoas não brancas. O facto de termos normalizado esta distinção, permitindo que se infiltre na nossa linguagem, nos nossos hábitos e até nas políticas que moldam a mobilidade global, é em si uma prova do problema. Quando as palavras que usamos para descrever o movimento humano estão impregnadas de hierarquias raciais, já não estamos apenas a nomear realidades, estamos também a reproduzir desigualdades.

“Ao fim ao cabo, todos os expats são simplesmente imigrantes glorificados. A distinção não passa de uma ilusão linguística criada para confortar uns e diminuir outros”

Jamila Pereira

Por outro lado, é igualmente importante reconhecermos a desumanização em que todos participamos quando reduzimos os imigrantes a meros impulsionadores económicos das nações ocidentais. Sim, é verdade que seremos sempre vistos como um “acréscimo”, um valor extra que contribui para o progresso alheio, mas porque é que continuamos a ser percebidos apenas assim? Damos muito mais do que isso. Sustentamos economias, revitalizamos bairros, enriquecemos culturas, e mesmo assim continuamos confinados à narrativa utilitária do “bom trabalhador estrangeiro”.

Esta forma de pensar reforça o mesmo sistema que classifica uns como expats e outros como imigrantes: um sistema capitalista que mede o nosso valor em função daquilo que produzimos em massa, e não da nossa humanidade. E a ideia de que “os de direita não são realmente racistas, estão apenas frustrados com o estado económico do país” é outro exemplo dessa distorção. Essa desculpa, tão repetida, mostra como a empatia e a compreensão também têm alvos preferenciais. Humaniza o opressor e, ao mesmo tempo, desumaniza o alvo da opressão.

Infantilizar os racistas e minimizar o seu ódio, descrevendo-o como um simples descontentamento económico, não é justo para connosco. É, na verdade, uma continuação do mesmo racismo estrutural que insiste em tornar o sofrimento das pessoas racializadas invisível ou justificável. No fim de contas, o que está em causa não é apenas a forma como somos nomeados - imigrantes ou expats -, mas a forma como somos permitidos existir dentro de um sistema que decide, com base na cor da pele e na origem, quem merece empatia e quem apenas serve para manter o motor económico a funcionar.

Ao fim ao cabo, todos os expats são simplesmente imigrantes glorificados. A distinção não passa de uma ilusão linguística criada para confortar uns e diminuir outros. Podemos começar a chamar expats a todos os imigrantes, ou então aposentar a palavra de uma vez por todas. O termo tornou-se um terreno fértil para a supremacia, o racismo subtil e o desprezo pelas classes trabalhadoras - valores com os quais não estou disposta a compactuar. Disfarça a desigualdade sob o véu da sofisticação, transformando o privilégio em virtude e a migração em hierarquia. A desconstrução política e cultural desta visão ultrapassada tem de continuar porque, no fim de tudo, é na linguagem que o poder começa. 

Inerentemente, os meios de comunicação afogam-se em manchetes anti-imigração, enquanto as rendas sobem, os empregos desaparecem e as famílias são forçadas a escolher entre aquecer-se ou comer. Isto não é progresso, é traição vestida de fato e gravata. E enquanto os governos nos culpam, a verdade é que as pessoas mais abandonadas são precisamente aquelas que mais deram. As mesmas sem as quais a Europa simplesmente desabaria.

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