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O que significa recordar num país que ainda hesita em reconhecer todas as suas memórias? A história portuguesa continua a ser contada a partir de um centro que exclui as margens, e é nesse vazio que a identidade africana procura lugar. A memória, quando não é partilhada, torna-se silêncio e pensá-la, hoje, é não só um ato de reposição, como uma forma de devolver presença a quem foi omitido. O MIA – Mês da Identidade Africana nasce nesse ponto de encontro entre o que foi e o que ainda falta fazer, como espaço de reflexão, criação e visibilidade, onde o passado se confronta com o presente na tentativa de projetar o futuro.
A 4.ª edição do MIA – Mês da Identidade Africana abriu a 05 de novembro na Casa do Comum, em Lisboa, com a inauguração da exposição “Ecos da Memória”, com curadoria de Ivanova Araújo. A mostra reúne obras de Naia Sousa, Sai Rodrigues, Gigi Origo e Ricardo Parker, quatro artistas cujos percursos são marcados por geografias e experiências distintas, mas que convergem num mesmo gesto de revisitar a história para compreender o presente. Sob o pano de fundo dos 50 anos das independências dos PALOP, Ecos da Memória propõe-se a pensar o que significa recordar num país onde a memória ainda é, tantas vezes, território contestado.
A inauguração contou com a presença de um público atento e foi seguida pela performance “Chão que Vibra, Corpo que Responde”, de Sani Dubois, com spoken word de Cinthia Perez. A intervenção, marcada pela força do corpo e da palavra, prolongou o sentido da exposição ao colocar a arte como espaço de restituição simbólica e de reapropriação da narrativa, como se o diálogo entre memória e presença se prolongasse na escuta e no reconhecimento.
No discurso de abertura, Vanessa Sanches, fundadora da BANTUMEN, recordou a génese deste projeto e explicou que a ideia nasceu da ausência de um espaço que permitisse à comunidade africana e afrodescendente celebrar-se, refletir e pensar-se em conjunto. O MIA surge, acima de tudo, “para nos vermos um pouco, para falarmos, nos vermos olho no olho, para pensarmos como tem sido a nossa existência e se queremos continuar a sobreviver ou se queremos continuar a existir.” A frase, mais do que uma constatação, soou como um espelho, deixando subentendida a questão para a qual nem sempre há resposta: quantas vezes, enquanto comunidade, nos vemos verdadeiramente?
É precisamente esse o papel do MIA, o de criar um espaço que não se limite à celebração simbólica, mas que devolva centralidade às vozes que moldam a cultura e a identidade contemporânea. Num contexto em que a presença negra continua, demasiadas vezes, a ser lida como exceção, o MIA impõe-se como prática de continuidade. Cada edição é um exercício de construção e uma tentativa de transformar o reconhecimento em estrutura e alargar o discurso sobre quem gere, produz e contribui para a produção cultural.
Assinalar as independências africanas não é, aqui, um gesto comemorativo, mas uma oportunidade de revisitar as promessas não cumpridas da descolonização. As obras reunidas em Ecos da Memória confrontam-nos com o que ficou por fazer ao mesmo tempo lembram-nos que a liberdade formal não garante a liberdade simbólica, e que ainda há imaginários a reconstruir. A arte torna-se, assim, uma forma de dizer “estamos aqui”, sem ter que pedir licença.
O Mês da Identidade Africana não se propõe a substituir nada; pelo contrário, propõe-se a preencher o que nunca foi devidamente reconhecido. É uma resposta à ausência de políticas consistentes de valorização da produção cultural afrodescendente, mas também um espaço de encontro entre pessoas e linguagens que, juntas, vão redesenhando o mapa da identidade e daquilo que pode ser entendido como arte em Portugal.
Num tempo em que a diversidade se tornou um termo cómodo, o MIA insiste em dar-lhe corpo e consequência. Porque existir, neste país e neste tempo, é ainda um ato político. E a memória, quando partilhada, deixa de ser passado e transforma-se em continuidade.
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Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para redacao@bantumen.com.
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