A arma da fé e a forma como a religião se tornou um instrumento de poder

17 de Novembro de 2025
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©samuelmartins7/Unsplash

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Nos últimos anos, o Ocidente tem passado por uma série de mudanças climáticas, e não apenas no âmbito ambiental. O ambiente social e político tornou-se instável: uma dança lenta com a recessão, o colapso dos mercados imobiliários, preços absurdos nos supermercados e o crescimento alarmante do fascismo e dos movimentos da extrema-direita. Difícil de digerir, certo?

Estas crises sobrepostas, sociais, políticas, ambientais e económicas, deixaram muitas pessoas por um fio. Há um cansaço coletivo e um sentimento crescente de desvalorização nas sociedades que antes acreditavam no progresso. Quando o desespero nos encurrala, procuramos refúgio no que conhecemos e nos poderes que prometem segurança, pertença e propósito: o Estado e a Igreja. Procuramos conforto nas mesmas instituições que, há séculos, dizem possuir as respostas. E, sinceramente, quem pode culpar alguém por querer mais do que o prato cheio de desespero que é servido dia após dia?

Até há pouco, eu própria não julgaria quem se apoiasse na religião. Apesar da minha relação complicada — e, por vezes, traumática — com a igreja, compreendo o que ela ainda representa para muitos: um refúgio de esperança, fé e, acima de tudo, de comunidade. E a comunidade tem sido uma das maiores vítimas da vida moderna. Romantizámos tanto a conexão digital que esquecemos o que significa uma ligação humana real. Num mundo que recompensa o individualismo e pune a vulnerabilidade, a igreja ainda oferece a ilusão, ou talvez a memória, de pertença.

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“Gradualmente, e muitas vezes de forma quase invisível, a linguagem da fé tornou-se indissociável do discurso da intolerância e do autoritarismo”

Jamila Pereira

Mas aqui está a verdade incómoda: essa mesma necessidade humana de conexão e de sentido foi instrumentalizada. O desejo de estabilidade e de orientação foi sequestrado por movimentos políticos revestidos de retórica moral. Gradualmente, e muitas vezes de forma quase invisível, a linguagem da fé tornou-se indissociável do discurso da intolerância e do autoritarismo. Aquilo que antes se apresentava como voz de compaixão e justiça ecoa agora com exclusão e controlo.

A apropriação religiosa ao serviço do poder não é nova e a história está cheia de exemplos: António Salazar usou a Igreja para santificar a ditadura em Portugal; Hitler distorceu a moral cristã para justificar a pureza racial e o genocídio; e, hoje, Benjamin Netanyahu e a máquina do sionismo invocam o destino divino para legitimar violência política e opressão.

O padrão é claro: quando as sociedades estão dominadas pelo medo e pela fragmentação, a religião torna-se terreno fértil para a manipulação. Oferece refúgio emocional e uma bússola moral, ao mesmo tempo em que serve como um poderoso instrumento para consolidar a autoridade. Nesta tempestade moderna de crises, a fé voltou a ser, simultaneamente, remédio e veneno, fonte de consolo, mas também arma de divisão.

Enquanto o Ocidente vacila a cada passo, devemos perguntar como é que um símbolo de esperança e comunidade se tornou um estandarte de exclusão, nacionalismo e controlo? Como é que a linguagem da salvação se tornou indistinguível da retórica do ódio?

Durante décadas, a Europa e os Estados Unidos apresentaram-se como faróis de progresso, lugares onde os direitos humanos, sexuais e de género eram defendidos e a igualdade era celebrada. No entanto, o crescimento das redes sociais e o ciclo contínuo das notícias corroem esta imagem. O mito da superioridade moral ocidental colide agora com o seu próprio reflexo, expondo, em tempo real, a ascensão de movimentos conservadores e de extrema-direita em ambos os continentes.

“Como é que um símbolo de esperança e comunidade se tornou um estandarte de exclusão, nacionalismo e controlo? Como é que a linguagem da salvação se tornou indistinguível da retórica do ódio?”

Jamila Pereira

Muitos investigadores alertaram para a crescente instrumentalização do cristianismo como meio de preservar hierarquias raciais, sociais e de género. Mas a escala e a velocidade atuais deste fenómeno não têm precedentes. Símbolos e narrativas religiosas foram simplificados, esvaziados de teologia e reembalados em slogans populistas que reforçam a pureza, o patriotismo e a superioridade moral. Em várias nações, esta dinâmica cria uma divisão moral entre os que “pertencem” e os que “ameaçam”. O resultado é o medo constante do “outro”, algo que leva comunidades inteiras a vigiar, excluir e atacar quem não partilha a mesma visão do mundo ou a mesma identidade.


Tanto online como offline, este muro simbólico tornou-se um poderoso instrumento de desumanização e controlo, particularmente visível contra muçulmanos, sobretudo no Sudão e na Palestina. A direita radical apresenta-se como defensora de um “Ocidente cristão”, mas a religião é apenas um instrumento secundário de um projeto mais vasto de discriminação e de domínio.


As manchetes recentes mostram como a fé é manipulada para justificar poder. Vimos a “martirização” do extremista e nacionalista cristão Charlie Kirk nos EUA, a campanha do Chega em Portugal para marginalizar migrantes do sul asiático em nome da “pureza portuguesa”, e o presidente norte-americano Donald Trump a ameaçar “invadir a Nigéria” para “proteger cristãos” de um alegado “massacre em massa”. Como reportou The Guardian, Trump declarou que “Islamistas radicais são responsáveis por um massacre em massa” e advertiu que, se o governo nigeriano não travasse os assassinatos, Washington “pararia imediatamente toda ajuda e assistência à Nigéria” e poderia “entrar naquele país agora desonrado, com as armas em punho.”


À primeira vista, pode parecer indignação moral. Mas, ao olhar mais de perto, revela-se algo muito mais calculado. A suposta defesa de cristãos no estrangeiro por parte de Trump foi uma encenação geopolítica. Enquanto se apresenta como protetor da fé, instrumentaliza simultaneamente as instituições estatais para instaurar o medo. Sob a sua liderança, as admissões de refugiados caíram drasticamente, programas humanitários foram desmantelados e famílias foram separadas nas fronteiras. Ao mesmo tempo, Trump estendeu “compaixão” a brancos sul-africanos que alegavam discriminação e abriu espaço político para a retórica nacionalista branca — enquanto milhões de americanos perdiam o acesso a apoios básicos, como o SNAP e o Medicaid.

“A direita radical apresenta-se como defensora de um “Ocidente cristão”, mas a religião é apenas um instrumento secundário de um projeto mais vasto de discriminação e de domínio”

Jamila Pereira

No estrangeiro, a sua “defesa da democracia” é igualmente vazia. Desde operações irresponsáveis na Venezuela até ao apoio incondicional a regimes repressivos, as suas ações revelam oportunismo, não convicção moral. A ameaça de invadir a Nigéria merece atenção especial. Não foi apenas uma expressão de preocupação moral, mas também um sinal geopolítico. Com o encerramento das bases militares francesas e americanas no Sahel, a influência ocidental na região diminuiu. Uma intervenção norte-americana, apresentada como “proteção aos cristãos”, reabriria portas estratégicas e garantiria o acesso aos vastos recursos naturais nigerianos — tudo sob o manto da justiça divina.

Contudo, as tensões religiosas na Nigéria não são novas, nem surgiram repentinamente para justificar intervenções estrangeiras. Décadas de conflitos entre comunidades cristãs e muçulmanas têm raízes em disputas de terras, pobreza, corrupção, mudanças climáticas e governação frágil, não em negligência externa. Ambas as comunidades sofrem: igrejas e mesquitas queimadas, aldeias deslocadas, famílias destruídas. Reduzir esta realidade complexa a um “genocídio cristão” é apagar o sofrimento partilhado e manipular a tragédia para fins políticos.

As causas profundas da instabilidade nigeriana residem no colonialismo, nas fronteiras traçadas por potências europeias que ignoraram as realidades étnicas e culturais. Qualquer tentativa séria de apoiar o país teria de começar por reconhecer essas feridas estruturais, e não por explorá-las para fins estratégicos.

A “compaixão seletiva” de Trump expõe o vazio moral da sua postura. Defende “vidas cristãs” no estrangeiro enquanto desumaniza migrantes negros e árabes em casa. Exalta Israel enquanto demoniza palestinianos. A sua política de fé serve o poder, não o princípio. E não está sozinho.


Em todo o Ocidente, a religião tem sido recodificada como arma moral — um instrumento para validar a xenofobia, fortalecer o nacionalismo e consolidar o controlo. “Salvar cristãos” ou “defender a civilização” tornam-se justificações para ambições políticas. A compaixão, a justiça e a verdade tornam-se descartáveis.

“Em sociedades marcadas pela colonização cristã, a fé foi usada durante séculos como instrumento de controlo, associando a virtude moral ao patriotismo e à obediência”

Jamila Pereira

Infelizmente, nenhum país ilustra isto tão claramente quanto o Brasil. A presidência de Jair Bolsonaro espelhou esta fusão entre religião e populismo de direita. Desde o início, alinhou-se com a Frente Parlamentar Evangélica e construiu a sua imagem em torno da identidade cristã. Como relatou Manuela Löwenthal no Congresso em Foco, “Sua busca por uma roupagem cristã foi reforçada ao longo do governo pela alegação de que o Estado é laico, mas a sociedade não. Em diversos discursos públicos, o ex-presidente citou versículos bíblicos e destacou que o seu governo seria ‘terrivelmente cristão’. Bolsonaro reforçou um discurso bélico que estimulou uma visão do adversário político como inimigo a ser aniquilado, impossibilitando a convivência com as diferenças e a possibilidade de discordância, em um posicionamento tendencioso ao autoritarismo.”

A linguagem religiosa de Bolsonaro era, contudo, largamente performativa, teatro político, não convicção espiritual. Tal como outros líderes da extrema-direita, envolveu-se na moral cristã enquanto rejeitava os seus princípios centrais: empatia, humanidade e equidade. A sua retórica transformou adversários em inimigos e a fé num marcador de lealdade.

Mesmo após a sua presidência, a extrema-direita brasileira continua a invocar o cristianismo para justificar agendas conservadoras e atos de violência, como se viu recentemente nas operações brutais conduzidas pelo governador Cláudio Castro nas comunidades da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro. O que começou como uma estratégia política tornou-se um movimento autónomo e autoalimentado. O nacionalismo cristão no Brasil funciona de forma independente, espelhando padrões observados em todo o Ocidente, moldados por contextos históricos e sociais específicos.

O papel político da religião, claro, não é novidade. Em sociedades marcadas pela colonização cristã, a fé foi usada durante séculos como instrumento de controlo, associando a virtude moral ao patriotismo e à obediência. Apresentar a religião como base da moralidade oferece estabilidade social, mas também perpetua desigualdade. Ao longo da história, as instituições religiosas sobreviveram ao aliarem-se aos poderosos, trocando a autoridade espiritual pela proteção política.

No fim, a ascensão do nacionalismo cristão expõe a fusão entre religião, xenofobia e populismo. Idealiza o “bom cristão” como o “bom cidadão”, branco, heterossexual, nacionalista e obediente. Nesta visão, “defender a comunidade” substitui a responsabilidade cívica, enquanto a pobreza e a injustiça são tratadas como falhas morais individuais, e não como problemas estruturais.

O que está em jogo não é apenas a interseção entre fé e política; é a própria disputa pelo significado. Quando a fé se torna instrumento de poder, deixa de orientar consciências e passa a impor conformidade. O perigo não reside na crença, mas na facilidade com que ela pode ser usada para santificar a hierarquia, o medo e a exclusão. Recuperar a fé, portanto, não significa rejeitar a religião, mas restaurar-lhe a profundidade moral: uma fé em que a convicção serve a humanidade, e não a autoridade.

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