Feminilidade negra entre o silêncio, o preconceito e a sobrevivência

22 de Julho de 2025
Feminilidade negra preconceito sobrevivência

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Ao longo da minha vida, tal como na de tantas mulheres à minha volta, a feminilidade foi constantemente posta em causa, diminuída ou rejeitada por completo. Seja através da política, dos meios de comunicação ou das normas culturais, a mensagem foi sempre a mesma: os nossos corpos e a forma como os compreendemos não nos pertencem verdadeiramente. Em vez disso, são tratados como objetos de controlo, moldados por sistemas criados por homens para servir os seus próprios interesses. Por isso, não é de admirar que ainda me lembre perfeitamente de, com apenas dez anos, me dizerem que não era “feminina o suficiente” para ser uma rapariga, ou mais tarde, de ser assediada numa discoteca e mandada “voltar para a plantação” por ser “de pele escura, feia, e parecer um homem.”

Infelizmente, estas experiências não são isoladas, pelo contrário, são comuns. E revelam uma verdade mais profunda sobre a forma como as mulheres negras, especialmente as de pele escura, são vistas e tratadas. TS Madison, atriz e personalidade televisiva americana, enfrentou recentemente uma onda de críticas por ter dito “se és de pele escura, tens de acalmar com a transfobia porque és das primeiras da fila. Mulheres grandes, se são transfóbicas, também precisam de acalmar, porque a coisa também vos vai atingir.” Mas nada do que ela disse era mentira. Não se trata apenas da narrativa desgastada de as mulheres negras serem “comparadas a homens”, vai muito além disso, e é um assunto com várias camadas. De certa forma, Madison apontou no seu discursomalgo (quase) sistémico: mulheres de pele escura e de corpos maiores - cis ou trans - são constantemente as mais visadas pela violência, pelo gozo e pelo apagamento.

Depois desta “tempestade” nas redes sociais, decidi perguntar diretamente às mulheres cis que me seguem no Instagram se alguma vez tinham sido alvo deste tipo de degeneração e de que forma isso impactou as suas vidas. Algumas seguidoras mencionaram que as suas vozes e o seu físico eram frequentemente associados a algo “masculino”; fosse pela tonalidade vocal, por desequilíbrios hormonais, pela constituição atlética ou pelos cortes de cabelo curtos. Descreveram estas situações como algo recorrente nas suas vidas, com um impacto emocional real na forma como se viam a si mesmas e aos seus corpos.

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Uma seguidora descreveu uma experiência que tem tanto de angustiante como de reveladora do que aqui tento explicar. “Passei por uma situação horrível com um homem negro de 50 ou 60 anos. Ele achava que eu era trans e começou a gritar comigo no metro. Chegou a um ponto em que pensei que me ia agredir. E ninguém ajudou ou interveio.”

E antes que se pense que foi apenas uma situação isolada e estranha, vejamos o assassinato de Michelle Dionne Peacock, uma mulher cis negra de 59 anos, morta em 2023 por um homem branco que assumiu que ela era trans. Ou pensemos nos rumores dos anos 2000 de que Ciara “tinha nascido homem”, rumores que prejudicaram o início da sua carreira e auge ao estrelato apenas por causa do seu corpo atlético, altura e estrutura magra. E acredite-se ou não, isto não é novidade. Serena Williams, Caster Semanya, Megan Thee Stallion, Imane Khelif e até Michelle Obama foram todas chamadas de masculinas ou “parecidas com homens”, por razões que vão desde o seu corpo ao tom de pele, ou simplesmente por serem confiantes e excecionais naquilo que fazem. Estas etiquetas não surgem do nada. São ferramentas criadas para retirar feminilidade a qualquer mulher que não se alinhe com os padrões eurocêntricos e brancos.

Como disse a professora Treva B. Lindsey no 19th News, o que estamos a testemunhar é “o espetáculo da vigilância sobre os corpos das mulheres racializadas, especialmente quando estão a vencer e a desempenhar papéis que ultrapassam as expectativas impostas às mulheres brancas.” Desde o estereótipo histórico da “mammy” até à dessexualização das mulheres negras nos dias de hoje, a sociedade tem-se apoiado, há muito, em mecanismos de controlo de género, colorismo e demonização para manter o controlo sobre a vivência da mulher negra. Não é por acaso que nos ensinam a associar feminilidade à pele clara e masculinidade à pele escura, e esse condicionamento molda não só a forma como os outros nos vêem, mas também como nos vemos umas às outras.

É por isso que as experiências de mulheres negras cis e mulheres negras trans não são tão separadas quanto algumas pessoas gostariam de acreditar. A sobreposição é real. Somos ambas alvo dos mesmos sistemas que apagam a feminilidade quando esta não se encaixa nas ideias estreitas e supremacistas brancas. Na verdade, as mulheres negras cis estão numa posição única para desafiar a transfobia, porque também nós somos frequentemente vistas como “masculinas,” “antinaturais” ou “não verdadeiras mulheres.” Estas experiências não são idênticas, mas estão profundamente ligadas.

Taj, de 29 anos, que usa pronomes neutros (they/them), recorda um dia particularmente difícil ao regressar a Londres, vinda de Espanha. No aeroporto de Madrid, entrou na casa de banho das mulheres e lavava as mãos, sentindo-se bem com o novo corte de cabelo. Foi então que uma mulher espanhola mais velha murmurou de forma ríspida atrás de si: “Eh perdona, ¿eso no es para las mujeres?” (Desculpa, mas isto não é para mulheres?) Taj virou-se, e a mulher olhou fixamente durante uns segundos antes de simplesmente dizer “ah” e entrar numa cabine. O desconforto não terminou aí. No voo, uma assistente de bordo inglesa branca olhou para Taj e perguntou: “E para si, senhor?” Quando Taj lhe devolveu o olhar, ela corrigiu-se apressadamente com um hesitante: “Oh, desculpe, menina?” Já numa fase de questionamento da sua identidade de género, Taj conta que a sucessão de episódios de degeneração naquele dia foi especialmente violenta.

No rescaldo, recorreu à poesia como forma de processar a experiência, algo que não só ajudou na reflexão como também levou a conversas de validação com pessoas queridas. Com o tempo, desenvolveu outra estratégia: repetir o termo usado de forma errada de volta à pessoa que o proferiu. “Se me deixaste desconfortável, agora vamos ficar todos desconfortáveis.” Este gesto simples, explica, ajuda a recuperar algum poder em momentos que de outra forma seriam desorientadores. Curiosamente, Taj nota que este tipo de episódios vêm quase sempre de pessoas brancas, não de pessoas racializadas. Para si, existe um padrão claro de policiamento do corpo e a degeneração parte muitas vezes de quem age antes de pensar.

Lindsey disse, de forma certeira, que as mulheres racializadas são frequentemente punidas com mais dureza quando não se encaixam nos padrões rígidos de género e feminilidade impostos pela sociedade. E quando têm sucesso, a reação é ainda mais intensa.

Vemos o mesmo tipo de vigilância de género por parte dos governos a nível mundial. No Reino Unido, o supostamente progressista Partido Trabalhista apoiou a decisão do Supremo Tribunal que define legalmente uma mulher apenas com base no sexo biológico. Esta decisão não afetou apenas pessoas trans, enviou também uma mensagem clara de que o Estado tem total autoridade para definir e limitar o que é ser mulher. 

No livro Hood Feminism, a autora Mikki Kendall destaca como o feminismo branco dominante tem frequentemente excluído mulheres trans, especialmente mulheres trans racializadas, enquanto finge que todas as mulheres enfrentam as mesmas lutas. “As mulheres trans são muitas vezes ridicularizadas ou apagadas,” escreve, “enquanto vozes feministas proeminentes repetem as palavras dos fanáticos conservadores... Uma abordagem única e universal ao feminismo é prejudicial, porque aliena precisamente as pessoas que deveria servir.” E tem razão. A recusa em reconhecer como o racismo, o colorismo e a transfobia se cruzam é parte do problema.

Estas questões não se manifestam apenas nos meios de comunicação e na política; afetam também a forma como nos relacionamos uns com os outros. Pensemos na frequência com que ouvimos que os homens negros de pele escura são preferidos em relações românticas por serem vistos como mais “másculos,” enquanto os de pele clara são considerados “mais sensíveis.” Essa ideia não surgiu do nada. Está enraizada no mesmo pensamento que faz das mulheres negras de pele escura alvo de piadas ou violência: a ideia de que a masculinidade pertence a certos tons de negritude e a feminilidade à brancura e à sua proximidade inerente.

Por isso, quando comediantes negros fazem “piadas” à custa de mulheres trans, especialmente mulheres trans negras, não se trata apenas de transfobia. Trata-se também de autoviolência. Porque essas mesmas piadas podiam ser facilmente feitas sobre qualquer uma de nós. Já vimos isso acontecer antes. Somos frequentemente o alvo da piada, mesmo fora da comédia. Esse ódio não é novo e, infelizmente, está apenas a ser redirecionado. A questão agora é: até onde isto vai chegar? Quanto tempo falta até que políticos da extrema-direita ou feministas auto proclamadas como J.K. Rowling, Chimamanda Ngozi Adichie ou Jess Hilarious comecem a exigir provas de feminilidade, recibos menstruais, certidões de nascimento, históricos médicos, antes de nos deixarem entrar numa casa de banho, numa sala de aula ou de sermos tratadas com o mínimo de respeito?

Neste ponto, fica óbvio que as mulheres trans estão a ser usadas como bodes expiatórios. São alvo fácil para desviar a atenção da verdadeira fonte de violência, os homens que criaram e continuam a manter os sistemas que policiam todos os nossos corpos. Seja no desporto, nos media ou na política, a transfobia alimenta a mesma misóginia que sempre foi usada como arma contra mulheres que não se encaixam no molde.

Inevitavelmente, como Lindsey salientou, são as mulheres racializadas que mais frequentemente são interrogadas e “testadas” quanto ao seu género. Nos EUA e no Sul Global, as mulheres de cor são desproporcionalmente alvo de testes de elegibilidade sexual e outras tentativas de definir a feminilidade de forma limitada, tudo isto escondido sob retórica anti-trans.

As mulheres negras cisgénero desempenham um papel crucial no apoio e na defesa das mulheres trans negras. Isso começa por criar espaço para conversas honestas, especialmente com homens negros cis, sobre uma possível atração por mulheres trans, sem vergonha nem a ideia de que isso ameaça a masculinidade deles. As mulheres cis também devem denunciar ativamente a transfobia descarada, tanto online como na vida real, e parar de justificar a violência que as mulheres trans enfrentam. É essencial combater a masculinidade tóxica e a misóginia, porque esses sistemas não prejudicam apenas as mulheres trans, prejudicam-nos a todas.

Um dos efeitos mais prejudiciais do patriarcado é a forma como este se entranha profundamente no pensamento das próprias mulheres, levando algumas a manter e perpetuar a mesma violência a que também são sujeitas. Assim, quando mulheres cis usam linguagem desumanizante como “isso” para se referirem a mulheres trans, estão a criar condições para que um homem ache justificável tirar a vida a uma mulher trans, sem ver nisso uma violação da sua própria humanidade. Existe uma ligação direta entre a nossa linguagem, o nosso silêncio e a violência que se segue. Se levamos a sério a ideia de libertação, então esse trabalho tem de incluir o desaprender dos preconceitos que internalizamos e um compromisso ativo com as mulheres trans, não só na teoria, mas na prática.

No fim de contas, isto não se resume à política identitária ou a uma competição dentro da feminilidade para ver quem “merece mais” ser considerada mulher, trata-se, pura e simplesmente, de segurança. Trata-se, acima de tudo, de sobrevivência. E de compreender que as ferramentas usadas para ferir mulheres trans são as mesmas usadas contra mulheres negras, especialmente aquelas que são de pele escura, queer, gordas ou não conformes com o género. E se não resistirmos juntas, essas ferramentas vão continuar a ser usadas contra todas nós.

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