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Criar pequenos seres humanos não é tarefa fácil. É uma missão que exige táctica, paciência e, acima de tudo, diferentes versões de nós ao longo dos anos. No início, pensamos que basta alimentá-los, dar-lhes um teto e vestir-lhes o corpo. Mas rapidamente percebemos que o apoio emocional é tão essencial quanto o físico e, infelizmente, é também o que mais facilmente é negligenciado.
Quando uma criança cresce fora daquilo que idealizamos como um “lar estável” ou “núcleo familiar seguro” - seja por abandono parental, instabilidade ou ausência de afeto -, o impacto é profundo. E, pior, muitas vezes esse impacto passa despercebido, disfarçado em silêncios, comportamentos ou dificuldades emocionais que nem sempre sabemos identificar.
O sentimento de abandono e rejeição é uma ferida difícil de gerir, seja na infância ou já na idade adulta. A ideia de não sermos desejados por quem nos deveria amar incondicionalmente corrói. E essa realidade toca muitos de nós, mais do que se admite publicamente.
Educar filhos tem camadas. E, muitas vezes, o apoio emocional - tanto o deles como o nosso - é mais complexo e profundo do que qualquer necessidade física. Temos de garantir que os nossos filhos se sintam amados, valorizados e insubstituíveis. O mundo já os critica o suficiente. O nosso papel é proteger, reforçar e acompanhar. E quanto mais pessoas puderem fazer parte dessa rede de suporte, melhor. Mas o que acontece quando um dos pais, em particular o pai, escolhe abandonar?
No seu sentido mais direto, o abandono é o afastamento substancial ou total de um dos pais relativamente às suas responsabilidades parentais. Mas a verdade é que o abandono pode ter muitas formas e muitas justificações.
Para alguns pais, não falar com o filho todos os dias pode não ser abandono. Para outros, é preciso um corte total de contacto para que se considere esse rótulo. Há também quem acredite que se o filho tiver de procurar o pai (em vez de o contrário acontecer), já existe uma falha. Independentemente da definição pessoal de cada adulto, quem realmente sofre as consequências do abandono são as crianças.
Quando um pai se ausenta, deixa um vazio que dificilmente se preenche por completo. Cabe-nos, enquanto sociedade, fazer o possível para minimizar esse impacto, ainda que saibamos que há dores que não se resolvem só com boas intenções.
Mas a questão que paira inevitavelmente é: E quando somos nós o centro dessa história? É nesse cruzamento entre dor pessoal e herança coletiva que surge "Filhos de Tuga", uma série da RTP que estreou este mês e que interrompe o silêncio e expõe não só as cicatrizes do abandono parental, mas também um lado profundamente ignorado da história colonial: o das crianças mestiças abandonadas.
A narrativa deixa-nos suspensos entre raiva, frustração, empatia e desilusão. Porque, no fundo, não se trata apenas de televisão. Trata-se de uma chamada de atenção urgente para uma realidade que atravessa gerações e que ainda hoje pede respostas.
Episódio 1 - Ao pai desconhecido
O primeiro episódio da série "Filhos de Tuga” caiu como um murro no estômago , especialmente para quem, como eu, é da Guiné-Bissau. E não por causa da suposta amargura que nos atribuem em relação a filhos mestiços, nem pelo colorismo que alguns insistem que trazemos colado à pele. A verdadeira dor vem do que a minha amiga Nádia descreveu de forma crua: "a necessidade de cortar o cordão umbilical com Portugal."
É uma frase que ecoa em muitos de nós, porque traduz a realidade que muitos fingem não ver: a ligação colonial ainda existe, mesmo quando já não faz sentido. Os filhos mestiços, nascidos de relações entre homens portugueses e mulheres africanas, são o reflexo mais cru dessa ligação, abandonados entre dois mundos que nunca os quiseram por inteiro.
Desde cedo, sabiam que aqueles pais iriam partir. Mas o que poucos reconhecem é que também foram deixados para trás pelas próprias famílias, rejeitados, maltratados, silenciados. Cresceram numa espécie de purgatório identitário, sem lugar fixo nem pertença garantida.
Começamos em Bissau, na associação Filhos de Tuga, onde o luto, a saudade e a dor se sentem no ar. É um espaço onde se partilha a ausência, mas também se encontra a irmandade. Porque, no fundo, todos ali enfrentam a mesma ferida: o abandono, não apenas físico, mas emocional, histórico e simbólico.
O abandono parental, neste contexto, não é apenas um pai que vira costas. É um Estado que se ausenta. É uma sociedade que rejeita. É uma história colonial que nunca foi assumida nem resolvida. E as mulheres africanas que ousaram amar, ou, em muitos casos, foram violadas por, homens portugueses, foram brutalmente punidas. Carregaram sozinhas os filhos de relações desequilibradas, e viram-se sem apoio, proteção ou voz.
Ter um filho mestiço, nesses tempos, era carregar uma cruz. E essas crianças, por sua vez, herdaram uma dor que não pediram.
As Vozes que Falam
Fátima inicia a sua narrativa de forma arrebatadora. Fala com o corpo, treme, está inquieta, visivelmente marcada pelo trauma. O que sofreu nas mãos da família, especialmente do tio, é impensável. Mas o mais inquietante é o vazio: ela nunca viu o pai. No entanto, sente que carrega o seu rosto, a sua presença ausente. Um homem que sabe da sua existência mas que apenas se deu ao trabalho de enviar papas e ouro brevemente, após o seu nascimento. Há uma dependência emocional pela ideia do pai, uma figura que nunca existiu, mas que molda a sua vida. Esse “não saber” criou um muro entre ela e qualquer possibilidade de uma vida livre de dor.
José Carlos traz um outro ângulo: o da glorificação do pai português. Tem tatuada a insígnia da companhia militar onde o pai serviu, ouve o Heróis do Mar como toque de telemóvel. Existe nele um desejo urgente de ser reconhecido como português, de pertencer. Mesmo sabendo que o pai recusou conhecê-lo, continua a ansiar por essa aprovação, embora saiba que ele já tenha falecido. Este desejo, quase desconfortável, revela como a identidade foi sequestrada pela ausência. Para ele, ser português tornou-se uma aspiração, uma tentativa de preencher o vazio. Um reflexo do poder que o colonizador continua a ter, mesmo sem estar presente.
Fernando, o fundador da associação Filhos de Tuga, pensava estar sozinho, até estabelecer a associação. A dor dele é mais silenciosa, mas não menos profunda. Apesar de não ser de pele muito escura, sofreu também episódios traumáticos. Questiona-se sobre como seria conhecer o pai, libertar-se daquela dor. Encontra, ali, uma nova forma de se ver, na partilha, na escuta, na presença de outros como ele.
Maria Odete traz um relato duro e cru. A avó queimava-lhe as cartas e escondia-a debaixo da cama, alimentava-a às escondidas, sempre que tivessem visitas em casa, mesmo que implicasse mantê-la debaixo da cama dias a fio. Foi alvo de colorismo, rejeição, insultos. Chamavam-lhe “restos”, “barata branca” e diziam-lhe que não valia nada. Cresceu sem qualquer hipótese de se conectar com a sua herança paterna - como se metade dela fosse um erro a apagar. E quando tira o lenço da cabeça a meio do episódio, afirma: “Nada neste cabelo ou nesta pele é da minha mãe.” A pergunta que paira é se o usa como bandeira de luta ou cicatriz de dor. A resposta parece ser ambas.
Percebemos então que viver com uma identidade mestiça, entre duas culturas historicamente em conflito, pode gerar um sentimento crónico de não-pertencimento. Thais Costa, uma psicoterapeuta brasileira, com quem tive a oportunidade de falar, explica que muitas destas pessoas crescem com a mensagem implícita de que devem apagar parte de quem são para serem aceites, principalmente num contexto europeu onde a herança africana é constantemente desvalorizada. Isto gera um conflito identitário intenso, com impacto direto na autoestima e na estabilidade emocional.
O desejo de integração obriga muitas vezes ao afastamento da própria cultura, alimentando sentimentos de inadequação e vergonha. A internalização de crenças como “nunca serei suficiente” ou “preciso esconder a minha origem” torna-se uma armadilha emocional, gerando ansiedade, depressão e isolamento. A cura, nestes casos, passa pelo resgate da identidade africana como fonte de força - e não de constrangimento.
Episódio 2 - Moçambique: À procura
O segundo episódio de "Filhos de Tuga" arranca com uma música que parece quase ingénua, "fiquei com pena da menina, fomos para um mato, fizemos um petiz que por sinal é mulato”, mas que logo se revela como um espelho desconfortável de várias dinâmicas coloniais: sedução travestida de conquista, desejo mascarado de domínio.
A letra é, na verdade, a introdução perfeita para um episódio que nos confronta com a forma como o corpo da mulher africana foi (e continua a ser) sexualizado, objetificado e instrumentalizado ao serviço de uma narrativa de poder.
A História de Fátima Ndala e Rosa Monteiro, a sua filha
Fátima Ndala, a mãe da nossa principal narradora deste episódio em Moçambique, Rosa Monteiro, leva-nos de volta ao passado ao recordar-se das interações entre soldados portugueses e mulheres moçambicanas, descrevendo como estes homens observavam, seguiam e desejavam as mulheres enquanto elas se banhavam ou lavavam nos rios. O olhar era invasivo. E embora Fátima diga que os portugueses "apreciavam muito" as mulheres, é inevitável perguntar: isso era apreço ou fetichização?
A romantização destas relações, muitas vezes descritas como “flirt” ou “brincadeira de criança”, sustenta uma narrativa colonial clássica: a da mulher negra disponível, conquistável, moldada para o prazer do colonizador. Isto não é história de amor, é construção de domínio. A ideia de que as mulheres “queriam ser conquistadas” retira qualquer agência real e transforma relações profundamente desiguais em jogos de sedução.
Na história da própria mãe de Fátima, à primeira vista, há algo aparentemente consensual. Uma jovem de 16 anos envolvida com um homem português de 23, marinheiro, que até ajudava a família. Mas o contexto denuncia o desequilíbrio: idade, poder, estatuto social e dependência económica. Quando alguém só tem uma escolha, isso não é liberdade - é sobrevivência. O que parece consentimento é, muitas vezes, o resultado de uma relação transacional forçada.
O testemunho de Lúcia
É talvez o mais duro do episódio.
Lúcia partilha a história de um casamento consensual, mesmo sendo menor de idade, que, na prática, se desenvolveu numa violação prolongada por um homem adulto. Ao narrar, solta uma pequena risada, que parece um riso tímido mas rapidamente se revela como um mecanismo de defesa, a forma que encontrou para não quebrar por completo ao revisitar a dor. A história não tem romantismo. "Continuámos até ao fim da fome sexual dele", diz, com a frieza de quem já não tem palavras para suavizar o trauma.
Desse abuso nasceu a filha, Elisa. E o homem, supostamente o seu marido, já a tinha deixado. Partiu como tantos outros, deixando para trás um rasto de sofrimento.
É importante lembrar que, apesar de muitos destes homens terem sido claros sobre o fato de que iam partir, eram marinheiros, estavam em missão - isso não retira a violência do abandono. Informar que se vai embora não anula o impacto da partida, especialmente quando se deixa para trás uma criança. O abandono emocional é tão devastador quanto o físico e ambos foram normalizados sob a bandeira do colonialismo.
Trauma, rejeição e negação coletiva
Rosa Monteiro, filha de Fátima, é um dos raros casos entre os “filhos de Tuga” que conseguiu chegar longe na sua procura. Após muitos anos de busca persistente e de trabalho emocional intenso, contou com o apoio de um ex-combatente em Portugal que a ajudou a localizar não só o pai biológico, como também a família paterna. Descobriu que o pai já tinha falecido, mas ainda assim decidiu avançar e estabelecer contacto com a madrasta e com a irmã por parte do pai, na esperança de, finalmente, encontrar um pedaço da sua identidade e, talvez, algum afeto.
Mas essa esperança esbarrou violentamente na rejeição. A irmã recusou qualquer tipo de aproximação, deixando implícito que acreditava que Rosa estaria ali talvez para a incomodar, enganar ou extorquir. O contacto foi frio, ofensivo e cortante. Rosa não só não foi acolhida, como foi maltratada - tornando-se um exemplo duro daquilo que tantas vezes acontece: o amor que idealizamos toda a vida pode, na realidade, nunca ter existido - ou, pior, ser devolvido em forma de desprezo. A sua história mostra que, por mais que alguém consiga “chegar lá”, o desfecho nem sempre é de reconciliação. Às vezes, o fim da procura é só mais uma camada de dor.
É precisamente por isso que o ex-combatente que a ajudou afirma, no episódio, que caso as estórias não se destinem a finais felizes, há momentos em que prefere dizer a estes filhos que os pais - ou até as famílias - já faleceram, mesmo quando isso não é verdade. Porque a dor da rejeição, depois de uma vida de procura, é avassaladora. E essa dor não respeita a idade - um filho continua sempre a ser uma criança à espera de amor.
Este episódio mostra claramente que não há só uma versão da história. Nem todas as relações foram marcadas exclusivamente por violência, algumas pessoas encontraram formas de perdão, reconexão e até afeto. Mas o que as une a todas é o desequilíbrio. A relação colonial é, por natureza, desigual. E é disso que falamos aqui: de poder, de ausência de escolha, e de como isso afeta gerações inteiras.
Segundo a psicoterapeuta, o abandono parental, particularmente durante a infância, tem efeitos profundos no desenvolvimento emocional. A ausência do pai é frequentemente interpretada pela criança como rejeição, gerando sentimentos de insegurança, raiva, vergonha e baixa autoestima. Essas emoções não resolvidas tendem a repetir-se na vida adulta, afetando relações afetivas, profissionais e o autoconceito. Em contextos atravessados pelo racismo, como os retratados no documentário, esse impacto é ainda mais grave - o abandono deixa de ser apenas pessoal e torna-se também histórico e social. A criança internaliza crenças negativas como “não sou digno de amor” ou “as pessoas vão sempre abandonar-me”, alimentando ciclos de dor e desvalorização que se prolongam pela vida fora.
Episódio 3 - A Viagem
Os primeiros minutos deste episódio transportam-nos para um dos capítulos mais sombrios e negligenciados da história colonial: a exploração sexual sistemática de mulheres africanas, muitas vezes em contextos que hoje identificaríamos como trabalho sexual forçado ou tráfico humano. Por apenas 20 escudos, corpos eram trocados, usados, descartados. É uma realidade que não pode ser relativizada - e que exige luto, memória e justiça pelas mulheres que se perderam emocional e espiritualmente ao longo desse percurso de sobrevivência.
É neste pano de fundo que somos confrontados com a história comovente de Noberto, Helena e a reconexão à distância com o seu filho, José Carlos. José Carlos descreve o reencontro como "feliz e infeliz”, uma expressão que carrega o peso da complexidade emocional de milhares de filhos de Tuga. Apesar do tempo, da distância, da doença e até da morte, o laço entre pai e filho nunca foi totalmente apagado. Nunca se chegaram a encontrar fisicamente, mas houve uma troca, um reconhecimento, uma espécie de fecho emocional.
Ainda assim, a morte do pai não foi só um luto pessoal, representou também um luto coletivo. Um espelho para os seus amigos e companheiros de história, que continuam a viver sem qualquer tipo de encerramento ou validação emocional. Porque, para muitos, o silêncio é tudo o que resta. A ausência é permanente.
Quando a cor da pele se torna um perigo
Este episódio também traz à superfície uma dimensão por vezes esquecida da herança colonial: o perigo de existir com uma identidade mestiça em tempos de luta anticolonial. Muitas destas crianças foram consideradas símbolos de traição, representações vivas da ligação ao opressor. Como consequência, foram forçadas a esconder-se em plantações durante dias, a esfumar a pele com carvão para parecerem mais escuras, ou até a raspar o cabelo, numa tentativa desesperada de apagar qualquer traço visível da ligação ao pai branco.
Estas estratégias de sobrevivência não foram meramente físicas, foram formas de mutilação identitária, que deixaram cicatrizes profundas no corpo e na alma. Crescer com a noção de que a tua pele é um perigo, ou que o teu rosto denuncia uma história “vergonhosa”, é um peso que molda a autoestima, a pertença e o lugar no mundo.
"Filhos de Tuga" é um espelho que nos obriga a encarar feridas coloniais que nunca sararam. Ao longo dos episódios, reconheci nas histórias contadas uma dor que é coletiva, mas também íntima: o abandono dos pais brancos, a hipersexualização das mulheres negras, a rejeição das crianças mestiças tanto por Portugal como pelos seus países africanos. Ser filho de uma relação colonial é crescer sem lugar, com um vazio deixado por um pai ausente e uma sociedade que nos preferia invisíveis. A ausência do pai não é só familiar, é política, simbólica e histórica. E o silêncio que se seguiu - das famílias, do Estado, da sociedade - continua a ecoar.
Ver esta série despertou em mim tristeza, raiva e impotência. Mas também me lembrou que sentir não é fraqueza - é empatia. A mestiçagem, como é retratada aqui, não é uma ponte entre dois mundos, é muitas vezes uma cicatriz aberta. E mesmo assim, continuamos a procurar o afeto, a validação, o reconhecimento, sobretudo do lado branco da história. Mas é preciso dizer, sem romantizar: muitos desses pais escolheram não estar. E isso destruiu vidas. Portugal tem uma dívida com estas famílias - não de caridade, mas de responsabilidade. A cura começa quando escolhemos ver, escutar e contar estas histórias. Porque estas crianças - hoje, adultos - só queriam, e ainda querem, ser vistas.
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