"Eu traduzo a tragédia humana em imagens poéticas, por vezes arrepiantes e assustadoras", a arte subversiva e única de Grada Kilomba

7 de Agosto de 2025
grada kilomba entrevista
Grada Kilomba, Opera to a Black Venus (2024) | Cortesia Goodman Gallery and the Artist

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A BANTUMEN conversou com a artista Grada Kilomba sobre a sua prática, liberdade criativa, o direito a ser complexa e a necessidade de entender a sua obra como um gesto universal. 

Grada Kilomba é uma das vozes mais respeitadas do cenário artístico internacional. A artista, nascida em Lisboa, cresceu na linha de Sintra, Mercês, e cedo radicou-se em Berlim, onde vive e trabalha entre a grande cidade e recentemente a vila de Sintra. As suas obras, amplamente reconhecidas, fazem parte de algumas das coleções mais importantes do mundo, são exibidas em grandes museus e vistas como um contributo importante à discussão sobre as questões de identidade em contexto global.

Kilomba desenvolve uma prática artística que se funda numa atenção à forma, à imagem, ao movimento, ao som, e à linguagem. O seu trabalho não parte da ideia de representar um conteúdo, mas da necessidade de encontrar, para cada narrativa, uma forma que a sustente, ancorada numa arquitetura sensível onde a experiência possa emergir. Nas suas instalações imersivas e de grande escala, Kilomba conta histórias, lança perguntas e explora os conceitos de memória, trauma, repetição, violência cíclica e pós-colonialismo, usando vídeo, performance, instalações espaciais, escultóricas e sonoras. «Eu trabalho com o incompreensível, cada obra é uma letra de um novo alfabeto para tentar compreender o que nunca se compreendeu.»

Radicada em Berlim, para onde emigrou após ganhar uma bolsa de estudos para o seu doutoramento, tem construído um percurso que se distingue pela sua precisão estética e intelectual, e por um trabalho contínuo de escuta ativa da história, do corpo e do espaço. «Interessa-me pesquisar sobre uma história e ouvir como essa quer ser contada. Cada história diz-nos quase ao ouvido, qual a forma, qual o som e esse exercício íntimo de escuta, leva-me a trabalhar sempre com novos formatos e materialidades», afirma, acrescentando que mais do que o tema, o foco está na forma como o mesmo consegue atravessar diversas disciplinas, podendo transformar-se em linguagem visual, sonora e performativa.

O seu processo criativo é orientado por uma relação viva com o conhecimento onde a leitura, a escrita e tanto a pesquisa como a psicanálise não são atividades paralelas à construção/idealização da obra, mas sim o seu próprio motor. Os trabalhos resultam de um processo de estudo prolongado e de uma transposição cuidada entre campos.


A atenção à linguagem, enquanto matéria, atravessa todo o seu repertório. Para a artista, as línguas não são neutras nem intercambiáveis, são sistemas de poder, de exclusão e de escuta desigual. «Mais do que pensar em línguas semânticas, eu penso em línguas visuais. Eu traduzo a tragédia humana em imagens poéticas, por vezes arrepiantes e assustadoras.». Esta afirmação dá início a uma reflexão sobre o modo como as ideias podem ganhar forma sem se esgotarem na palavra, ou na tradução literal para um discurso. Na sua obra, esta linguagem não-semântica é feita de gestos, movimentos, materiais e símbolos que operam simultaneamente, como matéria e como metáfora. A ausência de um enunciado verbal direto exige que o espectador ative os seus próprios repertórios de memória e sensibilidade. 

Entre as referências intelectuais que estruturam o seu trabalho, destaca-se Frantz Fanon, não apenas pelas ideias que produziu, mas pela forma como construiu um pensamento que transita entre disciplinas – da psicanálise à literatura, da filosofia à intervenção política. A leitura das suas obras, muitas vezes produzida em línguas estrangeiras, pela ausência de tradução em português, tornou-se um exercício de escuta crítica e construção, que posteriormente é traduzido em imagens fortes, em danças escultóricas e objetos vivos. 

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«A linguagem que nos foi dada não pode contar a nossa história, nessa linguagem antiga aparecemos como um problema, um desvio ou mesmo um erro ortográfico, é importante criar novas linguagens que dêem voz ao que foi silenciado»

Grada Kilomba

Assim, a obra de Kilomba não emerge da escolha prévia de uma técnica, mas do compromisso com a narrativa. A forma, neste contexto, é uma resposta interna à matéria da memória, onde cada projeto impõe o seu próprio léxico e uma gramática que não pode ser encontrada nas disciplinas estabelecidas, mas que precisa de ser inventada no ato da criação. Para que essa linguagem exista, é necessário romper com os alicerces que sustentam o pensamento eurocentrado: desobedecer à rigidez disciplinar, desafiar a hierarquia entre formas de saber, recusar a imposição de uma narrativa hegemónica como única forma válida de nomear o mundo. «A linguagem que nos foi dada não pode contar a nossa história, nessa linguagem antiga aparecemos como um problema, um desvio ou mesmo um erro ortográfico, é importante criar novas linguagens que dêem voz ao que foi silenciado», premissa que adotou enquanto professora universitária.


A prática constante de questionar e atravessar disciplinas é inerente ao seu percurso artístico, que a levou a ser professora universitária convidada em múltiplas universidades europeias, como a University of Applied Arts, em Viena, ou a Universidade de Humboldt, em Berlim, ou a produzir obras em teatros como Maxim Gorki Theatre, na mesma cidade. Em 2024, foi a Angela Davis Guest Professor na Goethe Universität Frankfurt, onde desenvolveu o programa Grada Kilomba: The Art of Performing Knowledge.


Essa metodologia de criação adquire uma forma inaugural em Memórias da Plantação, obra que se desdobra em múltiplas linguagens: livro, performance e instalação, e que nasce como extensão da investigação doutoral que a autora desenvolveu em Berlim. 

Tido como um marco na abordagem de questões raciais e traduzido em mais de cinco línguas, o texto propõe uma série de breves narrativas psicanalíticas, quase clínicas, sobre situações de racismo quotidiano, mas o mais relevante é o que acontece à linguagem à medida que transita entre disciplinas: o modo como o texto se move entre o ensaio e a ficção, entre a análise e o ritmo poético. Quando levado ao palco, o texto não é simplesmente representado, mas corporizado, permitindo construir assim espaço performativo onde a palavra encontra a sua imagem, e a escuta torna-se uma prática partilhada. «Se na ciência se dão respostas, na arte contemporânea devem-se criar perguntas, e interromper o imaginário – essa é a tarefa de uma artista.», afirma, reforçando que a arte pode também ser vista como um exercício que convoca o imaginário do público, desafiando-o a questionar, reimaginar e considerar novas histórias. 

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Grada Kilomba, 18 Verses, 2022. Installation view at Pace Gallery, New York | DR

Esta sua prática artística tona-se particularmente visível na aclamada trilogia de vídeo-instalações A World of Illusions (2016–2019), mostrada primeiro no Palais de Tokyo, em Paris, e adquirida em 2021 pela Coleção do CAM, assim como pelo Tate Modern, em Londres. Em cada vídeo, Grada Kilomba encena um mito grego – Narciso, Édipo e Antígona – para construir linguagens que sustentem perguntas, sem verbalizar as respostas. Com um elevado trabalho arquitetónico, a artista cria um cenário de paredes brancas e curvas, para criar na câmara a ilusão de um infinito atemporal. Neste palco despido de tempo, e com um minimalismo visual próprio da sua prática, Kilomba trabalha com um ensemble de atores e bailarinos de Berlim, e com o compositor de ópera sul-africano Neo Muyanga, que se tornam os intérpretes de cada uma das histórias. Entre o som da palavra e da voz, do piano e da composição, dos movimentos e coreografias cuidadas, nas quais a artista sempre faz parte como performer, Grada Kilomba cria uma encenação imersiva, que atravessa múltiplas disciplinas para abordar as tragédias humanas mais urgentes: da perda, à violência, à exclusão, genocídio e luto, ritual e memória, resiliência e liberdade. 

Illusions, Vol. I, Narcissus and Echo (2017) apresenta a imagem do reflexo e da repetição, que sugere uma dificuldade em olhar para além do que nos é familiar, evocando as marcas não resolvidas de um passado colonial. Em Illusions, Vol. II, Oedipus (2018), aprofundam-se as dinâmicas da violência e da repetição, deixando entrever os ciclos que atravessam as relações de poder. Já em Illusions, Vol. III, Antigone (2019), surge uma resistência contida, onde o silêncio e o gesto repetido transformam-se numa forma de recusa ao esquecimento, lembrando vozes e histórias que muitas vezes permanecem à margem. A trilogia é marcada por uma linguagem visual extremamente rigorosa. Os planos são longos, os movimentos escassos, o uso do som é coreografado. Cada elemento é milimetricamente articulado para produzir uma experiência imersiva e reflexiva, que exige do espectador atenção demorada. Um novo minimalismo pós-colonial é a designação frequentemente dada a Grada Kilomba e à sua prática artística.

«Muitas vezes, é preciso dizer: agora não mostro o meu trabalho. Só volto quando o museu estiver pronto para mostrar em plano central.»

Grada Kilomba

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Grada Kilomba, Opera to a Black Venus, 2024, Courstesy of Goodman Gallery and the Artist

Este trabalho de composição reaparece com outra materialidade em O Barco (2021), comissionado por BoCa e Kunsthalle Baden-Baden, esta instalação escultórica foi apresentada em espaços como o MAAT, em Lisboa, a Somerset House, em Londres, e o Instituto Inhotim, no Brasil, do qual faz parte da coleção nacional brasileira. A peça com 32 metros de comprimento é construída com 140 blocos de madeira carbonizada que desenham no chão meticulosamente a planta do porão de um navio negreiro europeu. Os blocos, alinhados geometricamente e com poemas inscritos a ouro e em várias línguas, criam um ritmo visual que conduz o corpo no espaço.


O Barco ganha outra dimensão com a ativação de uma performance encenada e coreografada pela artista. Para esta obra Kilomba criou de novo um ensemble diverso de artistas, das periferias de Lisboa, onde a própria cresceu. De sopranos a tenores e contraltos, bailarinos e percussionistas, a artista trabalhou com nomes como Kalaf Epalanga e Dino D’Santiago para a produção musical, David Amado, o seu bailarino principal há anos, e Selma Uamusse. «Criar uma obra que pode levar consigo um grande polo de pessoas a participar é, para mim, uma das partes mais belas no meu trabalho como artista. Esta é uma prática de cuidado, de responsabilidade, e de partilha de oportunidades – uma prática decolonial». Esta obra, a sua exposição e a sua performance conduziram  a artista a levar mais de 20 performers da periferia de Lisboa ao outro lado do Atlântico, onde foi nomeada duas vezes como a melhor exposição individual do Brasil em 2024.

«Sou uma artista com muitas camadas, materialidades, temporalidades e disciplinas. O meu trabalho é extremamente complexo. É fundamental não sermos reduzidas a adjetivos que nos confinam a um tema único e nos colocam num rodapé.»

Grada Kilomba

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Grada. Kilomba, Labyrinth, 2024, installation view at Staatlich Kunsthalle Baden Baden, Germany, Courtesy of Goodman gallery and the Artist

Kilomba continua essa investigação sobre a relação entre corpo, espaço e som na sua mais recente criação Opera to Black Venus (2024), uma comissão do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, em Madrid, para a sua mais extensa exposição individual. Aqui a artista coloca a questão: «O que diria o fundo do mar amanhã, se esvaziado de água hoje?» Ao imaginar o fundo do mar como um arquivo histórico da condição humana, onde milhões de corpos jazem no seu fundo ao longo dos séculos: da escravatura e travessia transatlântica, às políticas de exclusão e migração, às tragédias climáticas, guerras e genocídios, o mar memoraliza a violência da história humana. Na pedreira inativa da Secil em Almoster, Grada Kilomba encena, coreografa e filma com o seu ensemble de Lisboa, um conjunto de obras que se apresentam como um requiem ou lamento aos horrores do agora. Três novas obras monumentais, entre vídeo, instalação, têxteis, terra, pedra, som e vidro, transportam para um registo operático, onde o corpo performativo não repete a violência original, mas constrói outra possibilidade de enunciação. A encenação é precisa.  A peça não dramatiza, mas estrutura um espaço de presença. Opera to a Black Venus foi listada como uma das melhores exposições em Madrid, atualmente em exibição na Jinan Biennale, na China. O seu catálogo homónimo acabou de ser lançado pela Distanz Verlag, em Berlim, sendo a publicação mais extensiva do seu trabalho artístico até à data. 


O rigor formal, a contenção expressiva e atenção ao detalhe têm sido amplamente reconhecidos pela crítica internacional, para além da Documenta 14 em Kassel e múltiplas bienais, Kilomba assumiu a curadoria da 35.º Bienal de São Paulo Coreografias do Impossível em 2023, em conjunto com Diane Lima, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel. Nesse mesmo ano, regressou ao ISPA, em Lisboa, instituição onde se formou, para receber o Doutoramento Honoris Causa

Grada Kilomba é consciente que apenas se pôde tornar quem é, quando há anos deixou Lisboa, para Berlim, onde encontrou uma cidade que investiu grandemente nas suas artistas e intelectuais. O percurso institucional, entre museus, bienais, universidades e teatros do mundo, reflete não apenas o alcance da sua obra, mas também o reconhecimento de uma linguagem que se constrói de forma autónoma, e que exige dos espaços onde é apresentada uma abertura ao silêncio e à complexidade. «Sou uma artista com muitas camadas, materialidades, temporalidades e disciplinas. O meu trabalho é extremamente complexo. É fundamental não sermos reduzidas a adjetivos que nos confinam a um tema único e nos colocam num rodapé.»


Kilomba tem afirmado a importância de mostrar o seu trabalho apenas em contextos que estejam preparados para acolher plenamente a sua linguagem. «Muitas vezes, é preciso dizer: agora não mostro o meu trabalho. Só volto quando o museu estiver pronto para mostrar em plano central.» A recusa deliberada é simultaneamente um gesto de cuidado, bem como uma forma de proteção da integridade da obra, da história e da própria artista, estabelecendo fronteiras que preservam o significado e a potência da criação. A sua prática propõe que o lugar da arte não é a resposta, mas a pergunta, sendo que a pergunta não é sobre o que a artista representa, mas sim sobre o que a obra constrói ou o que propõe. Nas palavras da própria, não é «o que eu represento?», mas antes «o que eu quero apresentar?»


No centro da sua criação está a convicção de que a arte tem o poder de construir linguagens que ainda não existem, não como imposição, mas como possibilidade. E é nessa construção minuciosa, feita de ritmo, pausa, voz e silêncio, que a obra de Grada Kilomba se inscreve, não como comentário sobre o mundo, mas como estrutura nova para habitar a experiência. Neste ato subversivo de autonomia, Grada Kilomba prepara uma nova obra para a cidade de Paris, que em breve poderemos acompanhar.

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