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Nasceu em Portugal, cresceu em Inglaterra, mas foi na Guiné-Bissau que Ana Dju sentiu o peso da realidade e a urgência de fazer parte da mudança. Licenciada em Direito e Mestre em Políticas Africanas, Ana é hoje Head of Solutions Maping & Youth Focal Point do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas na Guiné-Bissau, empreendedora social através da associação Mindjer i Futuro, da qual também é fundadora, e uma voz ativa no trabalho de base com comunidades em situações de vulnerabilidade.
“Eu sou tudo”, diz, com um sorriso leve, enquanto enumera os vários papéis que desempenha. A afirmação não é presunçosa: é um reflexo da multiplicidade de experiências que a moldaram. Desde cedo envolvida em trabalhos comunitários, afirma que sempre sentiu a necessidade de partilhar o que aprendia. "Sempre que aprendo algo eu sinto que não pode ser só meu. Tenho que partilhar com um grupo, com a comunidade."
Durante os anos que viveu em Londres, cofundou a Dju&Có, uma organização que prestava apoio a imigrantes afro-lusófonos nas áreas da educação, trabalho e saúde, com uma prima. Trabalhou com comunidades migrantes, fez voluntariado em organizações, e mais tarde financiou, com o seu próprio esforço, uma viagem de três meses por países africanos onde ensinou inglês: Quénia, Tanzânia e Madagáscar, num ciclo de compromisso com a ação local.
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O regresso à Guiné-Bissau, porém, surgiu como uma convicção mais do que uma oportunidade. "Sempre quis estar na Guiné. Não nasci na Guiné, mas sabia que tinha que vir", afirma. E em 2020, passou a integrar a UNIOGBIS, missão das Nações Unidas na Guiné-Bissau, onde realizou um estágio de seis meses. Lá , além da experiência profissional, foi confrontada com uma das exigências do sistema internacional: a formação avançada. "Toda a gente aqui tem um mestrado ou PhD. Tu és a única que não tens."
A afirmação fê-la parar para pensar e foi aí que sentiu necessidade de dar uns passos atrás para, depois, poder dar mais uns quantos para a frente. Voltou a Londres e concluiu, com mérito, o Mestrado em Políticas Africanas. Mais do que o “canudo”, a formação trouxe-lhe um novo olhar sobre si e sobre o continente. "Aprendi muito mais sobre mim do que o curso em si”.
Quando regressa à Guiné-Bissau, leva essa bagagem crítica, mas também a consciência de que ali, a vida se vive de forma diferente. "Na Europa pensa-se no futuro. Na Guiné vive-se o dia de hoje porque o amanhã literalmente não é garantido." Ana está em contacto com realidades onde o acesso a cuidados de saúde básicos é tão limitado que uma simples dor de cabeça pode ser fatal. "Se tiveres uma dor de cabeça, literalmente podes morrer, porque talvez não seja só uma dor de cabeça e não há acesso à saúde básica."
O trabalho que desenvolve com comunidades, fá-la testemunhar situações em que a sobrevivência está condicionada ao que se consegue adquirir e consumir no próprio dia. "Tudo o que eu compro tem que ser consumido naquele dia." Descreve realidades onde não é possível conservar alimentos, onde as trocas substituem o dinheiro e onde não se compram bens essenciais, como o arroz. “Vês pessoas que literalmente não podem comprar arroz, trocam por outras coisas que são colheitas que têm, não têm dinheiro literalmente". Visita locais sem luz, água ou acesso a serviços básicos. Fala de tabancas onde não há eletricidade, onde as fontes de água são distantes e partilhadas, e onde a saúde depende de deslocações longas, muitas vezes impossíveis. "Há sítios onde as pessoas não têm acesso a nada, nem luz, nem água", descreve Ana Djú para explicar que a precariedade não é ocasional, é estruturante.
“Às vezes estou em espaços e sinto que não sou merecedora”
Ana Djú
credits
"Como é que eu vou pensar no que quero fazer daqui a dez anos se nem sequer consigo comprar comida para amanhã?", referindo-se às famílias que vivem ao dia, sem capacidade de armazenar ou conservar alimentos. Mais do que uma constatação, trata-se de uma mudança na sua perceção de desenvolvimento, centrando-se na urgência do presente e na escuta ativa das necessidades reais das comunidades que acompanha. A mudança de contexto obrigou-a a rever a sua própria noção de privilégio. Ana cresceu em bairros periféricos, em Portugal e no Reino Unido, frequentou escolas públicas, nunca se considerou favorecida.
Mas foi na Guiné que ouviu de um colega: "Tu és a privilegiada aqui”. A frase foi um choque e um ponto de viragem, que resolveu transformar em ação. O seu trabalho tem foco na criação de condições para que as comunidades se apropriem dos projetos de desenvolvimento. "Quero que as comunidades digam: isto é nosso." Para isso, defende que as iniciativas devem partir da escuta ativa e da co-criação, evitando a lógica do assistencialismo. "Acho que às vezes falta muito isso: apropriação. Venham nos ajudar, quando devia ser: vamos nos ajudar."
Sublinha que, muitas vezes, os projetos falham não por falta de qualidade, mas por não serem verdadeiramente incorporados pelas comunidades. "Um projeto vem, é perfeito, bem desenhado, mas como as pessoas acham que não é delas, não se sentem responsáveis." O trabalho que defende é, por isso, de base, relacional e com foco na sustentabilidade real.
Sem dar conta, o trabalho acabou por lhe trazer uma visibilidade que não procurava e em 2024 foi distinguida pela PowerList da BANTUMEN como uma das 100 Pessoas Negras Mais Influentes da Lusofonia. Assume que recebeu a distinção com surpresa. "Tudo o que eu faço, não faço por visibilidade", assegura.Ainda assim, reconhece o valor simbólico e estratégico de marcar presença em certos espaços - mesmo que, por vezes, não se sinta merecedora. "Quando estou numa sala, quero garantir que tudo o que eu aprendi possa ser transmitido."
Não esconde, no entanto, as tensões internas que carrega e partilha com franqueza a vulnerabilidade provocada pela síndrome do impostor: "Às vezes estou em espaços e sinto que não sou merecedora. É uma batalha interna que tenho sempre.”
Essa sensação, contudo, acaba por funcionar como um motor. "Quando sinto que não sou merecedora, isso encoraja-me ainda mais a partilhar tudo aquilo que vocês não tiveram naquela sala.” É precisamente nesse limbo entre a dúvida e o compromisso que consolida o seu posicionamento: estar onde é preciso, mas com plena consciência crítica.
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