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“O Último Malmequer”, o novo álbum de Harold nasce do que sobra depois de muito desapego e é o resultado de um processo de libertação criativa, emocional e pessoal. Entre a necessidade de dizer o que durante muito tempo foi calado e a recusa em obedecer a formas estanques, o músico apresenta um disco que não fecha capítulos, mas aponta para um caminho onde há mais risco, mais verdade e menos filtros.
Conhecido pela trajetória com os GROGNation, o artista parte das bases do hip-hop mas deixa claro que já não vive sob os mesmos códigos. “Cresci dentro de certos rótulos”, diz, referindo-se à dureza estética e emocional que o rap tantas vezes impôs. Neste novo trabalho, assume-se mais solto, mais aberto à melodia, ao canto, à palavra que não precisa rimar para ser sentida. Se antes havia uma ideia rígida do que podia ou não ser rap, agora há espaço para explorar a voz em todas as direções. “Arrisquei muito mais. Sinto-me mais completo.”
O álbum organiza-se em torno da metáfora do bem-me-quer, malmequer, mas sem prometer desfechos felizes. Há momentos de leveza, sim, mas também um confronto direto com temas difíceis, desde a repressão emocional herdada na infância até à violência policial em Moçambique, passando pela experiência racializada de crescer e viver em Portugal. Tudo isso está ali, sem dramatismos nem efeitos, apenas a verdade de quem escolheu como tratar a própria história.
Um dos aspetos mais marcantes do disco e da nova fase da carreira resulta dessa urgência em dar corpo a vivências reais. A propósito, conta que escreveu uma canção sobre os protestos em Moçambique - à data da entrevista ainda sem nome - e que a mesma "começou por não acontecer". Apesar de várias tentativas, sem sucesso, a música só surgiu quando o artista deixou de "procurá-la". Foi num campo de criação, quase por acaso, que as primeiras palavras começaram a sair. O ponto de viragem aconteceu quando recebeu um áudio do primo, médico num hospital moçambicano, a relatar como tinham recebido 50 pessoas baleadas pela polícia. Algumas estavam em estado crítico. Foi preciso escolher quem tratar. Esse áudio foi integrado na faixa e deu-lhe um peso que nenhuma letra conseguiria inventar. Para muitos ouvintes, a música serviu de alerta. Para Harold, foi uma forma de transformar a impotência em gesto artístico.
@BANTUMEN
“Quero que o eu de hoje seja visto como alguém que se libertou de rótulos e que está a tentar ser melhor.”
Harold
A vontade de tocar em feridas abertas atravessa todo o disco e mostra o outro lado de quem aprendeu, desde cedo, que não havia espaço para mostrar fragilidade. Cresceu numa família moçambicana, com um pai conservador e rígido, que o ensinou que chorar era sinal de fraqueza, especialmente num contexto de periferia, onde “ou te aguentas ou ficas para trás”. A chegada à linha de Sintra, em criança, coincidiu com a descoberta de que ser negro em Portugal era também ocupar um lugar vigiado. Recorda o primeiro contacto com a polícia, a correr para casa de banho, aos sete anos, foi abordado com a pergunta “Então preto, o que é que já roubaste?”.
Durante anos, essa dureza esteve também presente na forma como se posicionava enquanto artista, fruto da cultura “muito rija, muito cara trancada” em que cresceu e que reforçava essa ideia de contenção. A ideia de vulnerabilidade parecia incompatível com o respeito. Foi ao ouvir artistas como Jacob Banks que começou a perceber que havia força na emoção. E que a exposição do afeto, longe de fragilizá-lo, podia abrir portas a uma nova linguagem. Hoje reconhece que o processo de cura passou também por aí: aceitar a sensibilidade como parte da sua identidade, pessoal e artística. Esse reenquadramento do afeto e da masculinidade não se esgota na dimensão íntima e há também uma crítica social silenciosa que ganha corpo em vários temas.
A faixa “Éder” é exemplo disso. Para lá de uma homenagem ao golo do Euro 2016, é uma reflexão sobre o lugar da população negra na sociedade portuguesa, onde o artista reconhece que a metáfora pode escapar a quem ouve distraído, mas não a escolheu por acaso. “Às vezes, só és aceite quando fazes uma cena bué importante, como o golo do Éder. Mas o golo não precisa de ser no campo.” A ideia de que um negro só é aceite quando faz algo extraordinário continua a ser real e essa condição também o atravessa. A história da sua família, os lugares que lhe foram negados, a constante sensação de ter de provar o seu valor em cada espaço onde entra, estão todos ali.
O percurso do álbum faz-se também pelas canções que funcionam como marcos dessa travessia. “Vivi”, a única faixa que sobreviveu da fase inicial mais romântica e melódica, serve de memória desse disco que podia ter sido. Mas a certa altura, surgiram outras urgências: temas como “Palavras”, com carga social mais evidente, e faixas como “Pés no chão” ou “Vento em popa”, mais animadas, trouxeram outro ritmo e direção ao projeto. Mesmo em registos mais trap, como “De Caras”, a exigência na escrita e a matriz rap continuam presentes. Já “Vidrado”, onde Harold aparece a chorar num videoclipe, materializa em imagem o gesto de vulnerabilidade que atravessa todo o disco.
A liberdade de já não precisar de seguir géneros, nem de fazer escolhas que tranquilizem o público, foi determinante. No início, o álbum estava a caminhar para um projeto de R&B, estilo que sempre o atraiu, por influência da música brasileira romântica e do semba. Mas a necessidade de falar de outras coisas sociais, políticas e emocionais, impôs-se e havia “músicas com outra energia que precisavam de espaço”, explica não descartando a possibilidade de lançar um novo álbum com uma base mais R&B. Mas O Último Malmequer exigia outro tom. E assim nasceu um disco híbrido, onde cabe trap, rap, balada e canção.
Ainda que conte apenas com duas participações — Izzy, de Moçambique, e Leo Elísio —, o processo de criação não foi fechado. Os campos de estúdio foram momentos de partilha, troca e construção em conjunto. Uma das histórias que resume essa ligação entre gerações é a de Yang, artista mais novo que cresceu a ouvir Harold, esteve num concerto dos GROGNation em 2016, e acabou agora convidado para o álbum. Uma espécie de passagem de testemunho — simbólica, mas também muito concreta.
No fim, descreve este disco como uma carta para o futuro, reafirmando o desejo de ser “visto como alguém que se libertou de rótulos e que está a tentar ser melhor” não numa ótica de reinvenção, mas num registo de continuação onde surge mais consciente. “Malmequer” é um álbum que parte das raízes, mas não se limita a elas.
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