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Há frases que ganham força em ditados populares. “Todos os homens traem” é uma delas. Circula nas conversas de bar, nos grupos de amigas, nos desabafos depois de relações mal resolvidas e tornou-se tão banal que parece carregar uma verdade absoluta. Mas será mesmo assim? Ou será apenas uma narrativa que se foi normalizando e, muitas vezes, funciona como desculpa para evitar compromissos ou para justificar o medo de se entregar a alguém?
A verdade é que muitas mulheres, sobretudo depois de experiências dolorosas, recorrem a essa ideia como forma de autoproteção. Psicologicamente, é um escudo: ao generalizar, afastam-se da vulnerabilidade que um compromisso exige e protegem-se da possibilidade de nova desilusão. Sociologicamente, o discurso ganha força no coletivo, na partilha de histórias semelhantes que criam uma espécie de coro de desconfiança em relação aos homens. Só que, ainda que sirva como defesa ou coesão social, não deixa de ser uma simplificação perigosa, porque apaga a diversidade real de comportamentos e transforma o individual em universal.
Mas antes de falar de traição, precisamos de olhar para o terreno em que tudo isto nasceu: monogamia e poligamia.
Não é forçado dizer que a monogamia, como padrão social, se consolidou no Ocidente a partir da Idade Média, sustentada pelo cristianismo, pelo patriarcado e pela economia. Esse modelo foi exportado para o resto do mundo através da colonização, tornando-se norma legal e cultural em muitos contextos. Em África, por outro lado, a poligamia, sobretudo a poliginia, em que um homem tem várias mulheres, sempre foi prática comum em diversas sociedades. Era vista, muitas vezes, como estratégia para reforçar laços familiares, consolidar alianças políticas e garantir sustento. Mas também tinha um lado negativo: desigualdade de género, dependência económica e fragilidade emocional. Hoje, o tema é debatido à luz da igualdade e dos direitos humanos, sendo mesmo proibido em alguns países. Ou seja, o que entendemos como “fidelidade” ou “traição” está profundamente ligado a construções culturais e políticas.
“A ideia de que os homens traem “apenas por sexo” e as mulheres “apenas por afeto” tem sido relativizada. Hoje, sabe-se que tanto homens como mulheres podem trair por desejo, por carência emocional ou simplesmente pela procura da novidade”
Wilds Gomes
E quando pensamos em relações, há algo que não podemos ignorar: viver a dois nunca foi fácil. Duas pessoas a partilhar o mesmo espaço, a mesma rotina, os mesmos silêncios e ruídos, durante anos, é um exercício quase milagroso. Relações não são feitas só de paixão, mas também de altos e baixos, de esforço invisível, de cedências e escolhas diárias. É nesse terreno instável que a pergunta se repete: afinal, todos os homens estão “programados” para trair?
A psicologia tem muito a dizer sobre isto. Para muitos especialistas, a traição não é a causa, mas sim o sintoma de algo mais profundo - falta de comunicação, insatisfação emocional ou sexual, ressentimentos acumulados ou até crises de identidade pessoal. Não é que alguém acorde um dia “programado” para ser infiel, mas sim que a traição surge como resposta a ausências e fragilidades dentro da relação ou dentro da própria pessoa.
Alguns estudos apontam que os homens tendem a ser mais visuais, que os seus desejos estão ligados ao olhar. Basta captar uma presença atrativa para que o olhar se fixe, muitas vezes sem plena consciência. Essa reação pode até ter raízes ancestrais: durante milhões de anos, até ao Homo Sapiens, os homens viviam em bandos e competiam pela posse sexual das fêmeas, o que deixou marcas biológicas no seu comportamento. Mas, como dizem os psicólogos, instinto não é destino. Olhar não é trair.
Mais ainda, a ideia de que os homens traem “apenas por sexo” e as mulheres “apenas por afeto” tem sido relativizada. Hoje, sabe-se que tanto homens como mulheres podem trair por desejo, por carência emocional ou simplesmente pela procura da novidade. Esther Perel, uma das vozes mais respeitadas nesta área, defende que muitas vezes não se trata de rejeitar o parceiro, mas de procurar no olhar do outro uma versão diferente de si próprio.
“A traição, nesses contextos [comunidades negras], não pode ser lida apenas como escolha individual, mas também como reflexo de pressões sociais e da forma como a masculinidade negra foi moldada sob o peso do racismo”
Wilds Gomes
E quando trazemos para a conversa psicólogos e pensadores negros, o debate ganha outras camadas. Primeiro, porque lembram que a nossa leitura sobre monogamia, fidelidade e traição é profundamente eurocêntrica, marcada pela colonização e pela moral cristã. Em muitas sociedades africanas, a poligamia tinha funções sociais e económicas que não se confundem com infidelidade. Depois, porque também denunciam os estigmas que recaem sobre o homem negro - a hipersexualização, a ideia de que seria “naturalmente infiel”. Esse olhar racista não só desumaniza, como apaga os homens negros que constroem relações saudáveis, comprometidas e fiéis.
Autoras negras feministas, como bell hooks, lembram ainda que as relações afetivas em comunidades negras estão atravessadas por feridas históricas como escravatura, desigualdades económicas e violência estrutural. A traição, nesses contextos, não pode ser lida apenas como escolha individual, mas também como reflexo de pressões sociais e da forma como a masculinidade negra foi moldada sob o peso do racismo. Por isso, quando um homem negro escolhe a fidelidade, escolhe também resistir a esses estigmas e afirmar um outro modelo de masculinidade, mais livre e mais justo.
É aqui que percebemos que a fidelidade não é biológica, é uma escolha. Homens fiéis existem, e isso vê-se na prática. São aqueles que, na maioria dos casos, comunicam, que respeitam limites, que rejeitam comportamentos capazes de minar a confiança. A fidelidade vai muito além de não se envolver fisicamente com outra pessoa. É investir emocionalmente, é decidir estar presente e construir uma relação de respeito e dedicação.
E é aqui que precisamos de fazer justiça. Em defesa dos homens, é preciso dizer com clareza que essa generalização não corresponde à realidade. Nem todos fogem do compromisso, nem todos usam a traição como saída. Há homens que constroem relações sólidas, que assumem responsabilidades afetivas com maturidade, que cultivam transparência e cuidado. Reduzir todos a uma narrativa única é tão injusto quanto perigoso. Alimenta estereótipos, cria barreiras e afasta, em vez de aproximar.
No fim, o desafio continua a ser o mesmo: olhar para cada pessoa como indivíduo, não como reflexo de feridas do passado. Porque se quisermos falar a sério, a fidelidade, tal como a traição, nunca será destino genético, mas sempre uma escolha consciente.
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