Israel Campos vence Prémio Ferreira de Castro 2025 com “A Última Gota”

9 de Junho de 2025
Israel Campos Prémio Ferreira de Castro 2025
📸: Humberto Mouco

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O escritor e jornalista angolano Israel Campos foi distinguido com o 1.º Prémio no Escalão B (16-25 anos) da 43.ª edição do Prémio Nacional de Literatura Juvenil Ferreira de Castro, com o conto intitulado "A Última Gota". A distinção, que inclui um prémio pecuniário de mil euros, representa não apenas um reconhecimento do talento literário do jovem autor, mas também um marco significativo na sua carreira, uma vez que, aos 25 anos, esta era a sua última oportunidade de concorrer a este prestigiado galardão.

Promovido pela Associação do Prémio Nacional de Literatura Juvenil Ferreira de Castro (APNLJFC) e pelo Agrupamento de Escolas Ferreira de Castro, o prémio conta com o Alto Patrocínio de Sua Excelência o Senhor Presidente da República de Portugal e visa promover a criatividade literária entre jovens escritores dos países de língua oficial portuguesa.

"A Última Gota" surgiu de uma reflexão filosófica sobre a importância da memória histórica na construção da identidade humana. Em entrevista exclusiva à BANTUMEN, Israel Campos revelou as origens conceituais da obra: "este conto surgiu de uma forma muito estranha, porque foi mais um pensamento especulativo. Nos últimos tempos tenho estado muito voltado à pesquisa histórica, em arquivos, etc. Então, num dia desses, o ano passado, eu pus-me a especular como é que seria a nossa vida se não tivéssemos referências históricas do passado, de eventos históricos que aconteceram?"

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Esta questão existencial deu origem ao protagonista central da narrativa, um jovem que sofre de problemas psiquiátricos e não consegue recordar-se do passado, levando-o a colecionar objetos como forma de preservar memórias. "Vai colecionando objetos em qualquer sítio onde estiver, na rua, na praia, sei lá. Coleciona objetos para se poder lembrar do passado. É um bocado essa ideia central de viver uma vida adulta sem referências, sem memórias do passado", explicou o autor.


O conto desenrola-se em Luanda, cidade natal de Israel Campos, e explora não apenas as questões da memória individual, mas também as dinâmicas sociais em torno da doença mental. "Tentei capturar um bocado essa ideia de se viver em Luanda com esse problema do foro psiquiátrico e como é que esse personagem vive a vida, como é que é tratado pelos outros", revelou o escritor, recordando experiências da sua juventude na capital angolana, onde pessoas com problemas mentais eram frequentemente tratadas "com muito desprezo, com muito desdém".


O título "A Última Gota" refere-se a um evento específico que, nas palavras do autor, "dramatiza toda essa situação, toda essa vivência" dos personagens, embora Campos prefira não revelar detalhes para não comprometer a experiência de leitura.


O processo de escrita de "A Última Gota" não foi linear e Israel Campos confessa que "foi um conto que demorou a sair" devido às dificuldades em encontrar o tom adequado e em desenvolver os personagens secundários. A obra foi finalmente concluída numa circunstância peculiar: "acabei de escrever este conto na sala da casa de um amigo que eu fui visitar em França no ano passado, na altura do Natal", recordou.


Contrariamente ao seu hábito de partilhar os textos com amigos próximos antes da submissão, desta vez o autor optou por não mostrar o conto a ninguém. "Não tinha muita certeza, não estava muito confiante em relação ao conto, porque penso que deste conto ainda poderia tirar muitos elementos para continuar a fazer outros trabalhos.”


A notícia da vitória chegou como uma surpresa. "Não estava à espera de ser o primeiro vencedor", admitiu Israel Campos, que já tinha concorrido ao prémio o ano passado. "Já concorri a este prémio o ano passado, não venci, recebi uma menção honrosa do júri", fez saber, acrescentando  a pressão temporal e o facto de esta ser a última oportunidade para concorrer, devido aos limites de idade. "25 anos é a última idade para se poder concorrer a esse prémio, porque este prémio só premeia até os 25 anos e eu fiz 25 anos. Essa seria a minha última edição".

Quando recebeu o email com a notificação da vitória, a reação foi de "choque" misturado com "muita satisfação". "Contava talvez outra vez com uma menção honrosa com alguma coisa, mas não com o primeiro prémio", confessou o jovem escritor.


Criado em 1983, o Prémio Nacional de Literatura Juvenil Ferreira de Castro tem sido, ao longo de mais de quatro décadas, uma plataforma fundamental de incentivo à escrita e de revelação de novos talentos lusófonos. O galardão homenageia José Maria Ferreira de Castro (1898-1974), uma das figuras mais emblemáticas do neorrealismo português e autor de obras universalmente reconhecidas como "A Selva" e "Emigrantes".

Israel Campos Prémio Ferreira de Castro 2025

Ferreira de Castro, natural de Ossela, Oliveira de Azeméis, teve uma trajetória de vida marcada pela emigração precoce para o Brasil aos 12 anos, onde trabalhou durante quatro anos num seringal na floresta amazónica. Esta experiência transformadora viria a inspirar "A Selva" (1930), obra que o projetou internacionalmente e chegou a ser considerada para o Prémio Nobel da Literatura. O escritor foi também jornalista, tendo trabalhado em publicações como "O Século", "A Batalha" e "O Diabo", sempre mantendo uma escrita caracteristicamente identificada com a intervenção social e ideológica.


Para Israel Campos, vencer um prémio com este nome representa muito mais do que um reconhecimento literário. "Fui investigar um bocado mais sobre a história deste prémio e é realmente um prémio que tem uma história bastante consolidada, que existe desde 83 e que já premiou muitas pessoas, muitas das quais continuaram a escrever", revelou o autor. "Sinto-me muito feliz por fazer agora parte destes nomes premiados com esta distinção."


O prémio distingue-se pela sua vocação lusófona, reconhecendo "a produção literária em língua portuguesa, não só de autores portugueses, mas de pessoas de várias partes do mundo que escrevam em língua portuguesa", como sublinhou o jovem escritor angolano.


Israel Arcélio Marques da Graça Campos, nascido em Angola em 2000, é atualmente doutorando em Media e Comunicação na Universidade de Leeds, no Reino Unido, onde reside. O seu percurso académico e profissional reflete uma notável versatilidade entre o jornalismo, a literatura e a investigação académica.


No campo literário, para além desta recente vitória, Israel Campos já havia demonstrado o seu talento ao vencer, em 2024, o Prémio Literário INCM/Angola com um livro de contos, e ao receber a 2.ª Menção Honrosa na 42.ª edição do mesmo prémio. O autor publicou também o romance "E o Céu Mudou de Cor" (Kacimbo Editora, 2023) e foi selecionado para a prestigiada residência literária CANEX Writing Workshop, liderada por Chimamanda Ngozi Adichie no Gana, em 2024.


A sua carreira jornalística é igualmente notória. Em 2024, venceu o Prémio Liberdade de Imprensa do Sindicato dos Jornalistas Angolanos pelo documentário "As Viúvas da Seca em Angola". Anteriormente, havia sido homenageado como Young African Journalist of the Year na Gala Afro Descendentes em Zurique (2022), recebido o EU GCCA+ Youth Award da União Europeia pela melhor narrativa climática (2021), e sido distinguido com o Prémio Angola 35 Graus na categoria de Comunicação Social (2022).


O reconhecimento do seu trabalho estende-se também ao âmbito académico, tendo recebido The Edward Mace Prize pela City University of London (2022) e o prémio da Sixth Form Essay Competition da Independent Schools Association do Reino Unido (2019). Em 2021, foi incluído na BANTUMEN Power List 100 como uma das 100 pessoas negras mais influentes da lusofonia.


Para além da sua atividade como escritor e jornalista, Israel Campos é membro do grupo de reflexão presidencial português "O Futuro Já Começou", dedicado a pensar os desafios das novas gerações, demonstrando o seu envolvimento ativo nas questões sociais e políticas contemporâneas.

Israel Campos Prémio Ferreira de Castro 2025

Questionado sobre a sua identidade como autor, Israel Campos revela uma abordagem reflexiva e em constante evolução. "Ainda não sinto que estou numa fase em que já tenha uma definição, uma linhagem específica, porque acho que também estou a descobrir um bocado a minha voz e os meus interesses a nível da literatura", confessou.


Apesar desta autodeclarada fase de descoberta, o autor reconhece uma inclinação natural para questões políticas e sociais. "Tenho muito interesse em questões políticas. Eu como indivíduo e, portanto, eu acho que, de alguma forma, de uma maneira ou de outra, por mais que evite, às vezes isso se reflete naquilo que vou escrevendo", admitiu. No entanto, tem procurado expandir os seus horizontes temáticos: "tenho tentado escrever sobre outras coisas que saiam dessa dimensão, mas sinto ainda muito mais uma inclinação para assuntos políticos, para sociedade, para temas que me preocupem nestes domínios".


Relativamente ao impacto desta distinção no seu percurso, Israel Campos mantém uma perspetiva equilibrada. "Cada distinção tem sempre essa dimensão de que nos dá alguma exposição e, portanto, também aumenta a nossa responsabilidade", observou. "Aumenta a expectativa que os nossos leitores têm em relação ao nosso trabalho."


O autor faz questão de separar dois domínios distintos na sua abordagem à escrita: "O domínio da produção, que é escrever aquilo que eu acho que é importante naquele momento, aquilo que me preocupa, aquilo que me interessa naquele momento" e "outro domínio que é o reconhecimento público". Esta separação permite-lhe manter a integridade criativa: "Para que essa questão dos prémios não dite aquilo que eu acho que devo escrever, ao invés daquilo que eu acho que é importante para mim escrever”.


Atualmente, Israel Campos concentra os seus esforços na conclusão do livro de contos vencedor do Prémio Imprensa Nacional Casa da Moeda. "Estamos neste momento a trabalhar na edição para a publicação desse livro", revelou. "Este é o meu foco principal nesta altura".


Quanto aos seus hábitos de escrita, o autor confessa não ter ainda estabelecido uma rotina fixa. "Não tenho uma rotina de escrita. É muito mais difícil, porque, é claro, estou sempre a escrever, mas a escrever outras coisas. Mas para escrever ficção, realmente, depende. Há semanas muito boas em que a coisa acontece, flui e estou lá sentado e consigo escrever muito, durante muito tempo. Mas também há semanas, às vezes, que se transformam em meses em que não consigo escrever nada".


Apesar desta irregularidade no processo criativo, Israel Campos mantém uma disciplina rigorosa na leitura: "me obrigo a ler sempre, a ler sempre várias coisas. Aí sim, tenho uma rotina de leitura." Para a escrita, prefere um ambiente controlado: "Costumo escrever em casa, sempre sentado na minha secretária para trabalhar. Não consigo escrever na cama, não consigo escrever fora de casa".


Sobre as expectativas dos leitores em relação ao seu trabalho, o autor mantém uma postura aberta e curiosa. "Nós produzimos sempre com uma intenção, mas depois os textos, quando são publicados, entram para um campo de leituras e de interpretações que são para além daquilo que nós pensamos enquanto criadores", filosofou. "Estou sempre muito interessado em conversar com as pessoas, entender o que é que se destaca para as pessoas, o que é que as pessoas gostam, o que é que as pessoas não gostam".


A vitória de Israel Campos no 43.º Prémio Nacional de Literatura Juvenil Ferreira de Castro simboliza a vitalidade da literatura lusófona contemporânea e a capacidade dos jovens escritores africanos de contribuírem significativamente para o panorama literário de língua portuguesa.


O conto "A Última Gota", com a sua reflexão sobre memória, identidade e exclusão social, ecoa as preocupações universais de uma geração que cresce num mundo em constante transformação. A escolha de ambientar a narrativa em Luanda, explorando as dinâmicas sociais em torno da doença mental, demonstra a maturidade literária de um autor que, aos 25 anos, já consegue transformar experiências pessoais em literatura universal.


A cerimónia pública de entrega dos prémios será organizada em data a anunciar pela comissão promotora, momento em que Israel Campos receberá oficialmente o reconhecimento por uma obra que, nas suas próprias palavras, ainda tem "muito por explorar". Para um autor que se encontra numa fase de descoberta da sua voz literária, esta distinção representa não um ponto de chegada, mas um importante marco numa jornada de enriquecimento e promoção da literatura feita em língua portuguesa.

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