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Há 25 anos ocorre em Paris a lavagem de Madeleine, em alusão às festas populares que ocorrem na Bahia, mais especificamente, no recôncavo baiano, denominadas de lavagem, que seguem o calendário de festividades baianas, e acontecem no período do verão.
As lavagens são um misto de ritual religioso, que envolve um diálogo entre religiosidades cristãs e de matriz africana, como o candomblé, com festas de rua com diversos elementos da cultura popular. Lavagem precisa ter baianas e representantes religiosos para endossar o compromisso com todas as fés. É composta também por muita música em cima de algum carro elétrico, que chamamos de trio, mas também outras manifestações artísticas e culturais que acompanham o cortejo e contribuem com a celebração. Mas está faltando um outro ingrediente principal, pois uma multidão precisa acreditar e acompanhar o cortejo, como parte de um pacto tácito de crença e de aceitação da fé e do divertimento garantido. E para dar o toque final da lavagem, precisa ter algum pertencimento com o recôncavo baiano e afro-diaspórico para que a lavagem fique efetivamente com ares de lavagem.
Nunca tinha pensado, portanto, nas lavagens como uma tecnologia social, criada na Bahia, que pode ser caracterizada como uma produtora e catalisadora de boas vibrações para o mundo, servindo de um bom antídoto para contrapor a xenofobia, intolerância religiosa e outras formas de aversões a diversidade.
E foi o que tive a feliz oportunidade de conhecer e experimentar na lavagem de Madeleine que ocorreu no dia 14 de setembro de 2025. A lavagem é um projeto que existe há 25 anos, cujo idealizador é o multi artista Robertinho Chaves, que reside em Paris (França), há mais de 30 anos, e que juntamente com os seus familiares como o babalorixá José Raimundo Lima Chaves (Pai Pote) e a sua irmã, a equede Vilma Chaves, e o músico Giba Gonçalves (diretor do Batalá Mundo), santo amarenses que organizam e executam o que talvez seja uma das maiores manifestações e reconstituição da cultura e tradição baiana fora do estado e fora do país, na Europa.
As lavagens vistas como tecnologia social, como uma prática que neutraliza a intolerância de todas as formas como ela se manifesta, é uma significativa contribuição para o mundo, sem exageros. E é o que a família Chaves vem provando nessas 25 edições da Lavagem de Madeleine. Neste ano a lavagem também foi tema do Colóquio Diálogos Afro-Trans-Atlânticos na Universidade de Sorbonne, compondo a programação do Festival da Cultura Brasileira - Lavagem de Madeleine e fazendo parte da Temporada Brasil-França 2025.
E sobre a lavagem, o que dizer? É uma grande celebração da cultura negra do recôncavo baiano fora do Brasil! A família Chaves de Santo Amaro leva e reproduz parte da especificidade da baianidade e da sua ancestralidade afro-diaspórica para as ruas de Paris. E consegue reconstituir os sons, as danças, a ocupação das ruas, a lógica ecumênica da festa, a sacralidade e a religiosidade do candomblé, numa interação coletiva proporcionada pelo evento.
Com a participação de diversas expressões da cultura popular brasileira, desfilaram pelas ruas de Paris grupos de batuques, maracatus, capoeiras, escolas de sambas, baianas, arte circense e outras expressões de arte de rua e popular.
Após três quilômetros de cortejo, acompanhado por cerca de 60 mil pessoas, de acordo com as autoridades municipais que acompanharam o evento, ocorreu o coroamento da lavagem nas escadarias da igreja de Madeleine, num grande padê, oferenda cerimonial para agradecer e pedir proteção para o orixá exú. Pai Pote entoou canções em iorubá e ao som de “emoriô”, que em iorubá significa “eu te vejo”, fez uma saudação ao orixá oxalá. E nessa levada, o babalorixá condutor da dimensão religiosa da festa convida o padre da igreja de Madeleine para participar do ritual. Assim, a lavagem é também um profundo ato político, com palavras proferidas em defesa dos imigrantes e pelo direito universal de imigrar.
E como afirma Luiz Antonio Simas (2025), “as festas brasileiras são celebrações coletivas que, ao longo da nossa história, afrontam a escassez, o individualismo e a decadência da vida em grupo [...] reavivamento de laços contrários à diluição comunitária que desafiam [...] um estado-nação projetado para excluir, disciplinar ou aniquilar a maior parte de seus habitantes”, especialmente a população negra. E esses elementos de resistência encontramos nas lavagens. Realizadas na Europa, parecem aplacar as saudades de casa, reforçar pertencimentos, ecoam nossas estratégias de resistências onde usamos religiosidade e ludicidade para nos proteger.
Como chama atenção Raquel Barreto (2024), é possível pensar o Brasil com suas festas, como ensinado por Lélia Gonzalez, o que podemos acrescentar que é possível sentir o Brasil por meio de suas festas, o que talvez justifique os deslocamentos de brasileiros e brasileiras residentes na Europa para participarem da lavagem de Madeleine. E como fez Gonzalez (2024), podemos ler o Brasil através das suas festas populares,considerando suas múltiplas dimensões. Para Lélia, os valores religiosos que sempre foram tão essenciais nas civilizações africanas, foram resguardados pela população afro-negra brasileira, como podemos perceber nas festividades das lavagens, que não obstante a euforia, ludicidade e alegria das ruas, também mantém o cunho religioso da festa, através de um diálogo com elementos das religiosidades de matriz africana e do catolicismo.
As lavagens apreendidas no bojo das tecnologias sociais, têm como ingrediente os saberes ancestrais e populares das populações afro-brasileiras e diaspóricas do recôncavo baiano, que de alguma forma são também expressões de resistência, uma contra narrativa em que somos protagonistas, detentores de uma saber ancestral e tão generoso, que pode ser compartilhado em outras partes do mundo.
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