Letícia Simões: a força feminina que atravessa arte e história

23 de Novembro de 2024
Letícia Simões entrevista

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Foi com a pequena filha no colo que a artista visual Letícia Simões nos concedeu uma entrevista para falar sobre os seus projetos, com destaque para sua pesquisa sobre mulheres que resistiram ao tráfico negreiro, que sequestrou milhares de africanos entre os séculos XVI e XIX. Mãe solo, Simões equilibra os cuidados com a filha e o trabalho de contar a história esquecida dessas mulheres, utilizando uma linguagem histórica e imagética.


Natural de Salvador, Bahia, Simões é formada em Comunicação Social e possui mestrado em Estudos Contemporâneos das Artes, com especialização nas intersecções entre cinema e literatura. Atualmente, está a realizar doutoramento, com enfoque nas relações entre literatura e cinema. No início de 2024, lançou a produção “Malungas”, um conjunto de performances artísticas construídas após um intenso estudo sobre mulheres negras que lutaram contra a violência e a opressão da escravidão.

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Calema Natal

A pesquisa sobre o tema começou durante sua segunda graduação, em Ciências Sociais, no Brasil. Em uma disciplina chamada "História do Tráfico de Pessoas", Simões analisou documentos do tráfico negreiro, abertos ao público apenas em 2012, que mostravam a relação entre Portugal, Inglaterra, Brasil e outras regiões, como as Caraíbas.


"Quando tive contato com essa disciplina, algo me impactou profundamente. Comecei a me aprofundar nessas histórias — histórias de pessoas que foram escravizadas e clamavam por liberdade. Isso é algo que as pessoas não sabem: desde o início do século XIX, havia juristas e indivíduos de outras nações que tentavam ajudar essas pessoas, mas seus testemunhos não eram levados a sério”, explica.


A partir desse momento, Simões mergulhou em um universo de histórias que por muito tempo ficaram latentes, investigando como essas pessoas lutaram por sua própria liberdade. Os negros escravizados fugiam, eram recapturados e, em alguns casos, conseguiam comprar sua liberdade. No entanto, muitas vezes, a lei não era respeitada e as cartas de alforria não eram reconhecidas.

“Fiquei fascinada pelas histórias de vida dessas pessoas, que nunca foram consideradas importantes pela história oficial. Nunca entraram nos registros históricos do Brasil, nem nas formas de resistência mais conhecidas. Essas vozes estavam completamente apagadas. Decidi focar nisso e investigar mais a fundo, utilizando o trabalho de historiadores, além de conduzir minha própria pesquisa”, comenta.


Um dos aspectos que mais impactou a artista foram as imagens com que se deparou: ao encontrar registos de militares portugueses em colônias como Macau, descobriu que faziam retratos das pessoas locais. A partir dessas imagens, ela transformou sua pesquisa em um objeto artístico. “O que mais me impressionou foi a persistência dessa narrativa visual. Percebi que queria contar a história do ponto de vista daquelas pessoas retratadas, e não apenas dos colonizadores”, revela.


Assim, a pesquisa se transformou em uma investigação narrativa, onde Simões passou a atribuir nomes a essas mulheres e figuras retratadas, criando uma obra de arte visual e performática. “Para mim, não bastava apenas encontrar essas imagens, eu queria trazer essas figuras para o presente, trabalhar com colagens. Então, criei uma performance em que conto a história de três mulheres do nordeste do Brasil que resistiram ao tráfico”, diz.


A primeira exibição, na Casa Odara, no Porto, atraiu espectadores de várias gerações, desde um jovem de 18 anos, aluno da Escola de Belas Artes do Porto, até uma senhora de 60 anos, mãe de uma estudante. “Eles ficaram muito chocados e disseram que essas informações não eram ensinadas nas escolas. Não sabiam que Portugal tinha envolvimento no tráfico de pessoas. O que eles aprendem é que o tráfico foi uma questão entre Brasil e África, que Portugal salvou os brasileiros”, observa Simões.


Para Simões, a educação em Portugal ainda está presa a uma mentalidade colonial. “Isso vai além da educação formal. Está relacionado ao discurso estrutural da sociedade e das instituições portuguesas, que perpetuam uma narrativa sobre a colonização”, explica.

“Quando mulheres negras ocupam esse espaço, suas histórias redimensionam a narrativa. Elas não estão presas ao trauma, estão criando algo novo”

Letícia Simões

Unindo arte, pesquisa e história, Simões encontrou infinitas possibilidades de representar a luta feminina e a resiliência da mulher negra, que, mesmo arrancada de sua terra natal e reduzida a mercadoria, nunca deixou de resistir e lutar por seu lugar no mundo. “Acho que o principal para esse projeto, e não só para ele, é a pesquisa efetiva, a pesquisa histórica. Talvez porque nossa história foi contada de maneira tão desonesta, sinto que tudo começa pela pesquisa. Mas a pesquisa não se limita aos arquivos históricos, estou sempre me perguntando o que a arte pode fazer de diferente”, reflete.


Segundo ela, a linguagem das artes, especialmente do cinema, traz algo que as organizações políticas e seculares não conseguiram. A arte revela relações com a cidade e com pessoas violentamente apagadas da história. “A violência é parte do meu processo artístico porque a história foi violenta conosco. Meu trabalho busca transformar essa violência em novos caminhos, sem esquecê-la”, declara.


Simões explica que a figura de Maria Felipa, combatente que desempenhou papel fundamental na guerra pela independência da Bahia em 1823, e liderou um exército contra os colonizadores, a marcou profundamente. Nos livros de história, o período é chamado de "Guerra da Independência do Brasil na Bahia", mas Simões prefere o termo "Guerra Contra a Recolonização do Brasil", pois, na época, a luta foi motivada pela resistência dos colonos à independência brasileira, declarada em setembro de 1822. “Maria Felipa criou estratégias de luta para derrotar o exército colonial e conseguiu, graças à sua força e inteligência”, diz.


Quando era criança, Simões ouviu que Maria Felipa não passava de uma lenda. “E, muito recentemente, provei que ela realmente existiu, que não era apenas uma história popular. Toda a história dela e seu reconhecimento como uma figura viva e resistente me cativaram profundamente”, revela.


Para ela, essa é uma ferida aberta: uma existência que não pode ser ignorada. No doutorado, ela explora as relações entre cinema e literatura, focando especialmente no que acontece quando mulheres negras contemporâneas começam a contar suas histórias de vida. “O que acontece quando essas mulheres assumem o controle de suas narrativas?”, questiona.


Mais recentemente, ao estudar a banda desenhada, Simões descobriu uma ferramenta autobiográfica que foge da perspectiva hegemónica. Ela reflete que a narrativa predominante é muitas vezes masculina, centrada em histórias traumáticas e escritas por homens brancos. “Mas quando mulheres negras ocupam esse espaço, suas histórias redimensionam a narrativa. Elas não estão presas ao trauma, estão criando algo novo”, conclui.

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