Lisboa também é negra e o Festival Mamã África chega para o reivindicar

2 de Junho de 2025

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Lisboa é uma cidade onde as marcas da presença africana remontam há séculos, mas são frequentemente ignoradas ou apagadas. Esse paralelo entre memória, história e esquecimento é um dos pilares da criação da Associação Boka Mundo, um coletivo que se propõe devolver à capital portuguesa a sua memória negra e restaurar a negritude no centro da sua paisagem cultural.


O ponto de partida é o Festival Mamã África, cuja primeira edição acontece nos  dias 09 e 11 de junho em dois locais emblemáticos da cidade, o Cinema São Jorge e o Capitólio.  A iniciativa, cuja entrada é gratuita, resulta da parceria entre a Associação Boka Mundo, a UCCLA, o Cinema São Jorge, o Capitólio, e conta com a BANTUMEN como media partner, numa co-produção assegurada pela Lisboa Cultura.


A dias do arranque oficial da primeira edição, a BANTUMEN conversou com Hernâni Miguel e Hugo Vaz Oliveira, dois dos rostos por trás do projeto, não só sobre o festival, mas também sobre a associação, os seus eixos de atuação e a necessidade de Lisboa reconhecer, e dignificar, o contributo da presença africana para a composição do tecido cultural da cidade.

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Festival Mama Africa tirar a 11 junho

“Estamos muito focados na infância e na juventude negra, no sentido da ascensão social. E queremos fazer isso de forma estruturada”

A associação Boka Mundo resulta da convergência de vontades antigas entre Hernâni, Alda e outros membros da comunidade artística e associativa lisboeta, que durante anos mantiveram a vontade de trabalhar em conjunto, mas cujas exigências profissionais foram adiando essa possibilidade. Foi apenas quando conseguiram encontrar tempo comum que a ideia começou a ganhar corpo, fazendo da associação um reencontro aliado a um gesto de afirmação coletiva. O nome escolhido remete para o poder da oralidade e para a importância de dar voz a quem nem sempre tem espaço para se expressar. E essa é, precisamente, a essência do coletivo: um espaço de ação, escuta e transformação.


Formalizada oficialmente em outubro de 2023, a associação tem vindo a definir um eixo de atuação que cruza ação social, práticas educativas e intervenção cultural, tendo como missão central criar condições para que crianças e jovens negros tenham acesso a oportunidades culturais, não só do ponto de vista da participação, mas também do ponto de vista da criação e do envolvimento com as estruturas.


"Estamos muito focados na infância e na juventude negra, no sentido da ascensão social. E queremos fazer isso de forma estruturada". Um dos pilares do projeto passa pela atribuição de bolsas de estudo para jovens em situações vulneráveis, sendo que já têm garantido o apoio de uma entidade para esse fim. O trabalho será feito em articulação com escolas e coletividades locais, artistas e instituições culturais, com o objetivo de reduzir as assimetrias entre o centro e a periferia. “É importante trazer muita gente para ver a cidade e usufruir desse ar”, sublinham, ressaltando a importância de que “as crianças da periferia tenham acesso a esses pequenos - grandes - benefícios que as pessoas que vivem em cidades têm”.


A dimensão cultural do projeto é inseparável da vocação social e educativa e, para os membros da Boka Mundo, o compromisso com os outros é  uma escolha natural. “Para nós, pensar nos outros não foi difícil. É extremamente fácil”, afirmam.  As dificuldades, contudo, surgem noutro plano: o financeiro. Apesar da determinação, Hernâni e Hugo não escondem as dificuldades em erguer e manter projetos desta natureza. “Os auxílios são pouquíssimos. Mesmo, mesmo uma coisa quase irrisória.” Ainda assim, o grupo está empenhado em fazer acontecer, com os recursos que tem e assume com clareza que isso faz parte da sua missão. “Nós temos todos uma missão nesta passagem pela Terra”, dizem. No caso da Boka Mundo, a responsabilidade passa por criar lugares de celebração da negritude em Lisboa e de se reconhecer a multiplicidade de heranças culturais que coexistem na cidade. “Celebrar um bocadinho as nossas raízes africanas, que são comuns. E o interessante é que são todas diferentes”. A própria organização espelha isso na prática e é composta por membros de diferentes origens - Angola, Guiné-Bissau, Portugal, Brasil e São Tomé - funcionando como um organismo vivo e plural. 

Lisboa negra Festival Mamã África

📸: Hernâni Miguel - Presidente da Associação Boka Mundo, fotografado por Eddie Pipocas/BANTUMEN

O Festival Mamã África, o primeiro grande projeto da associação,  é uma iniciativa cultural com ambição de longo prazo. A primeira edição, que os organizadores apelidam também de Festival Zero, marca o início de um ciclo de programação regular focado nas expressões artísticas e sociais afrodescendentes, que os organizadores veem como urgente.  “O festival nasceu porque Lisboa exige que haja um festival a sério, é muito importante. É uma exigência”, afirma Hernâni, ativista cultural, encenador e figura incontornável da cena artística lisboeta. “Lisboa teve um festival negro, mas retiraram-no. Agora, queremos que volte”.


Nesse sentido, o Mamã África surge também como uma reposição de memória, legitimidade e de espaço simbólico no coração da cidade. E, ao contrário do que seria expectável num contexto de crescentes discursos de ódio racial e xenofobia, o primeiro apoio institucional veio de um município de centro-direita, algo que Hernâni considera importante destacar. “A câmara foi das primeiras a perceber o valor do festival e a apoiar-nos de várias formas.” Para os organizadores, a celebração da cultura africana não deve estar confinada à periferia. “Lisboa deve celebrar estas coisas no seu centro, e não tanto na periferia. O centro também precisa destas imagens. Lisboa precisa de se ver inteira”.


Confrontados com a dimensão política do projeto, os representantes da Boka Mundo não escondem que reivindicar espaços e romper com as barreiras entre a periferia e o centro é por si só um ato político, sobretudo se for tida em conta a forma como a cultura africana é susceptível de marginalização. “A nossa vida, os nossos movimentos têm de ter sempre cariz político. Quem disser o contrário está a mentir”. 

Lisboa negra Festival Mamã África

📸: Hugo Vaz Oliveira - Presidente da Assembleia Geral da Associação Boka Mundo, fotografado por Eddie Pipocas/BANTUMEN

Para lá do lado político, Hugo e Hernâni aludem ao sentimento de pertença. “O festival passa uma mensagem de paz e de integração, que é importante nestes dias” dizem, acrescentando que a iniciativa pretende abrir espaço para encontros, diálogos e aprendizagens, cruzando gerações e territórios. A mensagem ganha outra dimensão quando evocam uma pintura da Praça do Comércio, datada de 1600, onde surgem africanos e muçulmanos como parte da cidade. “Lisboa sempre foi isso. Mas deixou de celebrar isso. Isso não nos é passado culturalmente, não nos é passado na escola”, lamentam.


O festival, nesse sentido, é também uma ferramenta de restituição histórica, não tanto à comunidade negra, mas à própria cidade, que perdeu o contacto com a sua memória mestiça cosmopolita e complexa.


Assente numa programação multidisciplinar, o primeiro dia do evento arranca com um tributo ao cinema. Cesária, de Ana Sofia Fonseca, e O grande Kilapy, do realizador angolano Zezé Gamboa, são os filmes escolhidos para as sessões que, apesar de gratuitas, são limitadas à lotação do espaço. O segundo e último dia do festival, a decorrer no Capitólio, contará com desfiles, bancas gastronómicas e culturais, e com as atuações de Karyna Gomes e Maria Alice.


Todo o alinhamento da programação reforça a intenção do festival de celebrar a cultura negra na sua diversidade e complexidade, cruzando memórias, afirmação identitária e vozes artísticas do presente.


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