“Cabo Verde tem talento à vontade”, a crítica (e proposta) de Luís Firmino à indústria local

4 de Maio de 2025

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Luís Firmino nasceu em São Vicente, em 1994. Cresceu entre irmãos, montanhas e viagens familiares pelas zonas rurais da ilha, numa infância que recorda com carinho. “Fui muito conectado com a ilha em si, não só com a cidade do Mindelo, mas com São Vicente como um todo.” Foi nesse contexto de proximidade com a terra e com os seus que construiu as primeiras bases daquela que viria a ser a sua identidade artística.


A música entrou cedo na sua vida. Ainda em criança, decorava discos inteiros da música tradicional cabo-verdiana, de que sempre foi apreciador. Mas foi só aos 16 anos que pegou no violão pela primeira vez e começou a experimentar a composição. O talento foi surgindo de forma natural, ainda que a decisão de seguir a música profissionalmente só tenha vindo mais tarde, depois de terminar um curso noutra área. “Comecei mesmo como instrumentista, só como músico”, conta.


O percurso ganhou uma nova dimensão quando se mudou para Portugal. Em contacto com colegas como Luís Henrique - com quem mais tarde fundaria o coletivo Acácia Maior -, Firmino passou a prestar atenção à forma como falava, escrevia e compunha. “A minha maneira de falar é a brincar com as palavras”, diz. Foi essa oralidade espontânea, muito marcada pelo crioulo, que os outros reconheceram como singular - e ele próprio passou a valorizar como parte essencial do seu processo criativo. Admite que essa tomada de consciência só foi possível por estar rodeado de pessoas que souberam reconhecer o seu valor. “Estive com quem me dizia ‘isso é fixe, aposta nisso’.” Firmino destaca a importância desse suporte no momento em que ainda duvidava do seu caminho. “Às vezes desmoralizamos e guardamos as coisas só para nós. É importante ter em ti naturalmente, mas também é importante estares rodeado das pessoas certas.” O apoio certo, na altura certa, foi determinante para que continuasse a desenvolver a sua identidade artística com confiança.

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sons da luusofonia - retirar a 7 de maio

Cabo Verde está um bocadinho fechado e formatado para certos géneros, para certos nomes

Luís Firmino

Luís Firmino entrevista

📸 BANTUMEN/Eddie Pipocas

É com essa visão pessoal que chega também a crítica ao panorama musical cabo-verdiano. Se no seu círculo havia espaço para a autenticidade, nem sempre o mesmo se aplica ao contexto mais alargado. Para Firmino, a indústria continua demasiado fechada sobre si própria, com os mesmos nomes a ocupar sistematicamente os mesmos espaços. “Cabo Verde está um bocadinho fechado e formatado para certos géneros, para certos nomes.” Essa repetição, defende, impede a entrada de vozes novas, vindas da diáspora ou com abordagens menos convencionais. “Há festivais sempre com os mesmos nomes. Parece que Cabo Verde não tem talento… e Cabo Verde tem talento à vontade.”

A crítica não é exclusiva da nova geração: também Tito Paris, um dos maiores nomes da música cabo-verdiana, partilha da mesma inquietação. Em entrevista recente à BANTUMEN, afirmou que “a música cabo-verdiana é ouvida em todo lado, menos em Cabo Verde”, sublinhando a importância de preservar o tradicional como base para novas sonoridades. Tanto Firmino como Paris defendem a fusão de géneros musicais, desde que essa liberdade criativa não afaste a ligação às raízes. Mais do que isso, apelam à necessidade de se olhar para a cultura como um todo. “Não limitemos o povo”, diz Firmino a propósito da questão.

Esse é um dos pontos onde a sua visão artística se cruza com uma ambição clara: a de ver o crioulo tratado com a dignidade de uma língua oficial e elevado “a um patamar de respeito”. “Penso muito na exportação da nossa língua e dar-lhe a dignidade que merece”. A favor da oficialização do crioulo, Firmino assume que reduzir a língua a dialeto é também diminuir o povo e criar barreiras que, mesmo não sendo vistas, são sentidas. “Se os cabo-verdianos são gente, o crioulo é língua”. No ano em que se assinalam os 50 anos da independência do país, esta é uma das questões que têm vindo a ser discutidas e é uma possibilidade já equacionada, embora as opiniões não sejam unânimes. Para Firmino, a valorização da música e da cultura cabo-verdiana passa, inevitavelmente, pela forma como o país olha para a sua própria língua. “Não vamos chamá-lo de dialeto, não vamos diminuí-lo, porque se não estamos a diminuir-nos”. Para quem escreve, pensa e sente em crioulo, impedir que a língua seja utilizada em certos espaços, sobretudo institucionais, é “como se te dissessem que não podes entrar”.

“Acácia é estar enraizado sem estar preso”

Luís Firmino

A sua própria prática artística espelha essa convicção. Faz música em crioulo, em português e tem interesse em explorar outras línguas, mas o ponto de partida é sempre a raíz. “Sou muito camaleão. Se estiver num sítio, começo a escrever a partir daí. Mas é o crioulo que me leva mais longe.” E lembra que não está sozinho: Cesária Évora, Mayra Andrade e outros nomes que cantam na língua cabo-verdiana são, para si, exemplos claros de que é possível afirmar-se internacionalmente sem abrir mão da identidade.

É com esse espírito que surge o coletivo Acácia Maior. Criado com Luís Henrique, o grupo é, nas palavras de Firmino, mais do que uma parceria musical. É uma estrutura colaborativa que se alimenta da diversidade entre os seus membros e da vontade de fazer diferente. “Acácia é liberdade. Liberdade de fazer arte, de não limitar nada. É estar enraizado sem estar preso”.

A complementaridade entre ele e Henrique é evidente: um com uma abordagem mais tradicional, outro com influências mais psicadélicas. Mas o resultado, garante, é equilíbrio e partilha. “O que ele traz, o que eu trago, é sempre bem recebido pelos dois”. A sintonia é comprovada através da música: juntos lançaram em 2023 Cimbrom Celeste, álbum de estreia do grupo, e mais recentemente o single “Mãe d’Melodia”, em parceria com Cristina Clara e Berlok. Mas a química entre ambos estendeu-se a outros artistas. 

Hoje, os Acácia contam com oito intérpretes, entre os quais Eliana Rosa, autora do single “Manga d’Terra”, recentemente premiado nos Prémios da Academia Portuguesa de Cinema. O futuro do projeto passa por aí: dar continuidade a esse trabalho de formação e promoção de novos talentos, aliado  à  possibilidade de transformar os Acácia numa label e tendo como prioridade consolidar o coletivo em Cabo Verde antes de expandir a sua presença fora do país. “Quero que os Acácia sejam muito mais do que eu e o Henrique, que sejam um feeling. Que as pessoas digam ‘ouvi falar, é uma boa vibe’. Quero que seja mais do que um grupo, mais do que um coletivo, um sentimento.”

À medida que o grupo cresce, cresce também a ambição de Firmino enquanto artista e produtor. “Vejo-nos a crescer aqui em Cabo Verde. Vejo-me com 40 anos a ser um nome que toda a gente já ouviu, de alguma forma.” Para já, a prioridade é continuar a fazer música com consistência, e garantir que o crioulo - tal como a cultura que representa - tem o espaço que merece.

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