De "filha da Florinda" a banda sonora de uma série na Netflix: a trajetória de Lurdes Miranda

18 de Agosto de 2025

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Durante anos, Lurdes Miranda foi reconhecida sobretudo como “a filha da Florinda”, título que lhe chegou antes de qualquer intenção de se apresentar como artista em nome próprio. A projeção mediática era consequência direta do nome da mãe, figura da dança angolana, mas cedo percebeu que o peso desse apelido não seria suficiente para que o público a visse pelo que queria realmente construir. “Fiquei com um público nas minhas redes sociais e não sabia o que fazer com aquilo”, recorda, descrevendo um período de indefinição que acabaria por funcionar como ponto de partida. Em plena pandemia, num momento em que o tempo e a atenção das pessoas se concentravam nas redes, começou a partilhar a sua história, não para relatar um percurso fechado, mas para dar forma a uma identidade em construção, transformando a visibilidade inesperada num canal de reconhecimento e ligação com quem a seguia.

Muito antes desse momento, a construção da sua identidade artística já estava em marcha. Aos sete anos, a mãe inscreveu-a em aulas de dança, numa tentativa de prolongar o legado familiar, mas, apesar da proximidade com o universo da performance, o impulso vinha de outro lugar. Enquanto muitas crianças se entretinham com bonecas, Lurdes imitava cantoras no quarto e inspirava-se em programas como o Idolos, que alimentavam o seu imaginário e lhe ofereciam modelos para a projeção de um futuro possível. Os quartos eram palcos improvisados e, ainda criança, percebeu que queria “ser star” e afirmar algo que nascia de dentro, não apenas por herança.

O percurso, contudo, nem sempre pareceu viável, sobretudo pela percepção de que, para uma mulher iniciar-se na música, o acesso a oportunidades dependia mais de relações de poder e contactos do que do próprio talento. As histórias que ouvia de outras artistas confirmavam essa realidade e deixavam-na reticente quanto ao futuro que imaginava para si. “Fui ouvindo histórias e fui meio que matando esse sonho”, admite, referindo-se às barreiras que encontrou e às limitações impostas pelo próprio mercado. O impulso para mudar surgiu com um convite de Diboba para participar na faixa “Mimosa”, que, conta, nem correspondia ao seu estilo. Acabou por aceitar, o público respondeu bem e a experiência em palco trouxe-lhe a certeza de que havia chegado o momento de “aproveitar esta fama e mostrar o meu talento real.”

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“Eu sou artista, gosto de expressar a minha arte”

Lurdes Miranda

Lurdes miranda entrevista

Lurdes Miranda fotografada por Eddie Pipocas/BANTUMEN

A chegada a Portugal e a assinatura com a New Wave marcaram o início de uma fase mais estruturada. A editora investiu em aulas de canto, em produção de qualidade e na construção de uma imagem artística coerente com as suas ambições. Lurdes passou a integrar os projetos desde a fase inicial, participando na criação de letras, propondo alterações para aproximar as canções do público português e recusando a posição passiva de simples intérprete. “Chego, dou sempre uma ideia. Se no meio da música me ocorre usar uma palavra mais usada em Portugal, para atingirmos esse mercado, também propomos isso”, explica.

O envolvimento ultrapassou a componente técnica e levou-a a explorar também a autoria, enfrentando bloqueios criativos que, durante algum tempo, a impediram de escrever letras próprias. Com o incentivo da equipa e, em particular, do produtor Mad Superstar, que a desafiou a perder o receio, acabou por desbloquear e contribuir de forma ativa na escrita das suas canções. “Ele foi-me dando uns puxões de orelha. Disse-me que tinha de lançar umas barras, e pronto, desbloqueei”, afirma e acrescenta que esse processo formativo tornou-se parte essencial da consolidação da sua identidade como artista.

Musicalmente, mantém-se versátil, com predileção pelo afrobeat, mas aberta ao soul, r&b e pop. Prefere a fusão de estilos à rigidez de um único género, explorando combinações como a do single “Proibido”, gravado com XuxuBower, ou o afro pop de outros lançamentos, sempre com a intenção de manter uma base afro que considere a sua essência. “Eu sou artista, gosto de expressar a minha arte”, afirma, recusando a ideia de se prender a um só registo.

A ambição internacional que a move começou, aliás, a dar sinais concretos e tangíveis. Em 2024, a música AMG foi escolhida para integrar a banda sonora da série brasileira Afro-descendentes, da Netflix. A canção, que junta ritmos angolanos com funk brasileiro, passou por ajustes pedidos pela produção para reforçar a sua raiz africana, um convite inesperado que Lurdes leu como sinal de que o seu trabalho estava a atravessar fronteiras.

Fora do domínio musical, a sua projeção pública tem-se estendido ao universo da moda. No início de 2024, foi convidada pela Prada para uma sessão de fotos privada da coleção Re-Nylon, experiência que descreve como “a concretização de um sonho”. Para a artista, este tipo de visibilidade contribui para a construção de uma marca pessoal que vai além da música e dialoga com o imaginário visual e estético que cultiva nas redes.

A equipa que a acompanha tem sido determinante para transformar notoriedade digital em credibilidade artística. Ainda assim, admite que essa notoriedade implica limites e a perda de privacidade levou-a a repensar a forma como se expõe, a escolher com cuidado os locais que frequenta e a reservar as aparições públicas para contextos estratégicos. “Hoje prefiro manter a minha imagem privada, porque para aquilo que eu quero, para a artista que eu quero ser, é preciso reserva.” As saídas deixaram de ser espontâneas e assume já não saber “o que é ir a uma discoteca se não for para cantar”.


“Hoje prefiro manter a minha imagem privada, porque para aquilo que eu quero, para a artista que eu quero ser, é preciso reserva”

Lurdes Miranda

Lurdes miranda entrevista

Lurdes Miranda | Foto ©BANTUMEN


O reconhecimento público é, para Lurdes, um território ambivalente, porque traz-lhe tanto validação como desconforto. Há dias em que a ausência de reações a entristece - “fico do tipo: xé, o people não tem internet?” - já que considera natural que quem faz arte queira ser reconhecido, e outros em que a atenção excessiva a leva a procurar refúgio. Gerir esse equilíbrio instável entre a necessidade de visibilidade e o desejo de resguardo exige-lhe escolhas diárias, desde recusar convites que não acrescentam valor à carreira até limitar a exposição a momentos estratégicos. Essa disciplina, diz, é tão importante quanto o trabalho em estúdio.

Portugal, embora tenha sido o ponto de partida para a sua carreira formal, apresenta-se como um contexto de contrastes. A presença de artistas africanos na música local é cada vez mais visível, mas o acolhimento nem sempre acompanha essa exposição. E a artista reconhece a existência de racismo, mas não o encara como barreira intransponível. “Gosto de desafios”, diz. Recentemente, um episódio de discriminação que tornou público acabou por lhe trazer apoio inesperado, com novos fãs portugueses a elogiarem o seu posicionamento. Vê no sucesso de nomes como Plutónio ou Yasmine sinais de uma mudança lenta, mas significativa, na forma como artistas africanos são recebidos em Portugal e considera que cada conquista destes colegas abre pequenas brechas num mercado ainda marcado por barreiras, mas cada vez mais permeável a novas sonoridades e narrativas.

A colaboração com o artista português Waze ilustra a sua estratégia para se enraizar também no mercado nacional. A escolha foi feita em conjunto com a label e alinhada com a necessidade de dialogar com referências locais. “Já acompanho o trabalho do Waze há muito tempo, e quando o conheci pessoalmente, percebi que era alguém com quem valia a pena construir algo”, explica. Juntos lançaram o tema "Baza", cuja estreia ao vivo aconteceu no festival Só Trap, no Super Bock Arena, onde se tornou a segunda artista africana e a primeira luso-angolana a atuar. Foi um momento que confirmou não apenas a sua capacidade de transitar para palcos de maior dimensão, mas também a de dialogar com um público diversificado, conquistando atenção para além da comunidade que já a seguia.

No plano pessoal, enfrenta os desafios comuns a muitos artistas em início de carreira: ansiedade com os resultados, necessidade de validação e gestão das expectativas. Confessa que acompanha de perto as métricas de cada lançamento. “Lancei o videoclipe, já estou no YouTube a ver quantas visualizações tem... às vezes ligo à equipa e digo: 'não pode ser, já atingi 100 mil em 24 horas!'” Reconhece que essa atenção constante aos números está ligada à ansiedade e à necessidade de obter feedback. Nas redes, especialmente no TikTok, construiu uma comunidade robusta, com mais de um milhão de seguidores, o que amplia o seu alcance e o potencial de viralização.

O apoio da família, sobretudo da mãe, tem sido um pilar. No início, havia ceticismo quanto à viabilidade da música como carreira, mas o reconhecimento e os resultados mudaram a perceção. “No pico da emoção tu pensas ‘quero muito isto, é o meu momento’, mas pode ser algo que destrói a tua carreira”, aconselha-lhe a mãe, lembrando-a da importância de avaliar cada passo. Lurdes procura seguir essa orientação e manter uma trajetória que respeite o que está a construir.

Para 2025, o foco é manter um ritmo de trabalho constante, expandir o repertório, investir em novos conteúdos e melhorar a performance ao vivo, preparando o caminho para a internacionalização e aponta os Grammys como sonho e possibilidade. Recusa atalhos, consciente de que o reconhecimento exige tempo, persistência e rigor. “Ainda vem muita coisa boa no que se trata da Lurdes como artista”, conclui.


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