Marco Mendonça e a visão de quem vê o palco como lugar de desconforto, afeto e responsabilidade

12 de Julho de 2025

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Em 2023, o Presidente da República declarou que Portugal devia assumir os erros cometidos durante o período colonial. A frase, simbólica, não teve tradução concreta em políticas públicas, nem gerou um debate estruturado sobre o legado histórico, mas foi o mote para o que veio a seguir.

Tempos depois, o Teatro Nacional D. Maria II convidava Marco Mendonça para uma nova criação. O encenador, que decidiu escrever de raiz, partiu daquela afirmação institucional e da sua vacuidade prática para imaginar um espetáculo em registo de game show, com três concorrentes a disputar respostas sobre colonialismo, memória e reparações. Assim nasceu Reparations Baby!, uma peça que tira partido da linguagem do entretenimento para desconstruir narrativas e testar o desconforto.

Nos últimos anos, Marco impôs-se como uma das vozes mais ativas do teatro português. Ator, dramaturgo e encenador, recusa compartimentações e move-se entre linguagens com a convicção de que o palco é espaço de pensamento, intervenção e encontro. A sua trajetória, marcada por deslocações geográficas e simbólicas, desenhou-se entre Moçambique e Portugal, entre o impulso de estar em cena e o desejo de pensar a cena como um lugar de liberdade criativa. Descreve esse percurso como acidental, não por ausência de mérito, mas porque reconhece nele o peso das circunstâncias, dos encontros e das escolhas feitas em momentos decisivos. “Foi muita sorte e conhecer as pessoas certas nos momentos certos.”

O primeiro contacto com a cena aconteceu ainda em criança, em peças escolares e eventos cívicos em Moçambique, onde começou a experimentar o gesto de comunicar com um público. “Já sentia muito prazer em estar em palco, por fazer coisas à frente de pessoas”, recorda. Esse impulso foi acolhido e incentivado pelos pais, a quem continua a dedicar parte do seu trabalho, reconhecendo nesse apoio um ponto de partida da sua prática artística. A mudança para Portugal, aos doze anos, trouxe um período de adaptação exigente, marcado pela interrupção de vínculos e pela reconstrução de um lugar num território que desconhecia. “Senti que tive assim uma pré-adolescência um bocadinho mais solitária do que seria expectável para uma criança de 12 anos”, afirma, descrevendo um tempo de ajustamento, em que teve de reaprender a posicionar-se e a construir relações.

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“Há uma representatividade que se quer mostrar, mas que não se reflete nos lugares onde se tomam decisões”

Marco Mendonça, ator, encenador e dramaturgo

Foi já em Lisboa que ingressou, em 2012, na Escola Superior de Teatro e Cinema, sem plano definido e sem certezas sobre o que seguir após o ensino secundário. “Foi muito acidental”, diz. As provas não correram particularmente bem, mas a entrada aconteceu, e a escola tornou-se um ponto de viragem. Ali encontrou, pela primeira vez, um grupo com quem partilhava afinidades criativas, formas de ver o mundo e formas de o pensar em cena. Conheceu João Pedro Mamede, Catarina Salgueiro e Nuno Gonçalo Rodrigues, com quem iniciou colaborações e com quem começou a construir um pensamento artístico sustentado em trocas contínuas. Embora a representação fosse o objetivo inicial, depressa percebeu que queria escrever, dirigir, organizar discursos a partir de um ponto de vista próprio. “Sempre gostei muito de escrever e, na adolescência, já escrevia assim poemas, histórias, contos, histórias pequenas.” A convivência com colegas que cruzavam áreas deu-lhe liberdade para assumir essa prática. “Foi um ponto de partida para eu assumir essa liberdade criativa, inspirado por colegas que faziam várias coisas e sem terem nenhuma espécie de pudor de partirem para a criação.”

Terminada a formação, enfrentou os obstáculos habituais de quem começa a trabalhar na área, a ausência de agenciamento, escassez de castings, precariedade estrutural. No seu caso, a estes somava-se uma barreira adicional, o modo como a sua identidade era lida dentro do sistema. “Existe ainda aquele obstáculo final que é preciso saltar”, afirma, referindo-se aos estereótipos que persistem sobre artistas negros e à tipificação de personagens que lhes são atribuídas. Fala de convites para castings em que percebia de imediato que a personagem “não ia ter um nome” e que estaria associada a categorias como “bandidos, drogados, DJs, marginais”. Essa repetição produziu um padrão de exclusão que o obrigou a tomar consciência do que significava participar num sistema que não o via com complexidade.


A luta, hoje, passa por desmontar essa lógica e recusar personagens moldadas à partida por códigos redutores. Quando compara a realidade portuguesa com contextos como o britânico ou o norte-americano, sublinha que ali a diversidade nos elencos atingiu “outro nível”, enquanto em Portugal continua a haver uma distribuição desigual de lugares de fala e de protagonismo. Os artistas racializados, observa, são frequentemente remetidos para papéis de suporte, o que contribui para a sua invisibilização. “Há uma representatividade que se quer mostrar, mas que não se reflete nos lugares onde se tomam decisões.”

marco mendonça entrevista

©︎ Eddie Pipocas | BANTUMEN

É com essa consciência que nasce o Reparations Baby!, uma criação da sua autoria, escrita e encenada no âmbito de uma encomenda do Teatro Nacional D. Maria II, sob direção de Pedro Penim. O novo projeto surge tempos depois de Blackface, obra escrita e encenada pelo autor para explorar os os limites do que pode, ou não, ser representado num palco, partindo de experiências pessoais e da história do blackface como prática teatral racista.

Sem pretensões de lição ou moral, o espetáculo propõe uma encenação que desafia os modos tradicionais de abordar o passado. A estrutura do jogo serve de dispositivo dramatúrgico, abrindo espaço para perguntas reais sobre o que Portugal esconde, esquece ou contorna. “Tento não entrar muito na mágoa. O humor é uma forma saudável de olhar para temas difíceis”, diz o autor. Ao escolher a sátira como linguagem, Mendonça e a equipa definiram uma metodologia que envolve "ter o máximo de subjetividade dentro do projeto", incorporando o máximo de olhares e perspetivas diferentes sobre o mesmo tema. “Se uma piada parecia ir longe demais, sentávamo-nos e pensávamos porquê”, explica acrescentado que não se tratava apenas de gosto ou sensibilidade, mas de garantir que o humor não reproduzia, ainda que involuntariamente, os mesmos discursos que o espetáculo procurava desmontar.

“Há piadas que validam crenças ofensivas. É uma batota esconder isso atrás do ‘estamos só a brincar’.” Para o encenador, ainda que o humor possa ser uma ferramenta útil, a sua utilização exige precisão, contexto e responsabilidade. A colaboração com Bruno Huca (apoio à criação), Everton Mariano (com quem já trabalhou em Blackface) e Mestre André (música) permitiu balizar essa ética, distinguindo o humor que parte de um lugar de reflexão e tem uma mensagem fundamentada, daquele que se escuda na desculpa.

Já apresentado em Sintra, Barcelos e Ílhavo, o espetáculo prepara-se agora para uma temporada em Lisboa, onde terá quinze sessões. Para Mendonça, essa continuidade é uma exceção num panorama marcado por programações rotativas e curtas. “Fazer quinze espetáculos na mesma cidade é o maior luxo que se pode ter neste momento a fazer teatro em Portugal.” A receção, que afirma positiva até ao momento, tem permitido ajustar o ritmo e cortar excessos. “Tirei cerca de cinco minutos. Já tinha mais de duas horas, o que é um tempo difícil de ver.” A ideia, explica, é que o público se envolva, se divirta e se confronte com o que está a ser proposto, sem perder o fio à reflexão.

Questionado sobre se teme tornar-se alvo, à semelhança do que aconteceu recentemente com o ator Adérito Lopes, e tendo em conta a proposta confrontacional da peça responde sem hesitação que seria um sinal de que “as pessoas que escolhem os alvos, estão a escolhê-los mal”. O que aconteceu na Barraca é, diz, “inexplicável”, expressão de uma frustração mal direcionada, “um total desfoque destas pessoas que estão a aderir a extremismos e que não sabem pelo que estão realmente a lutar”. A solução, lembra, nunca passa por silenciar os artistas. “Se não gostas do espetáculo, não vais. O debate acontece sempre fora do teatro.”

“[A arte] É muito mais sobre as pessoas do que sobre os conceitos”

Marco Mendonça, ator, encenador e dramaturgo

Num contexto em que a cultura deixa de ter ministério próprio, e passa “a dormir no mesmo quarto com outras pastas”, Marco sublinha que o papel da arte na sua vida e na sociedade não é acessório, nem meramente decorativo. “É o que me inspira a continuar a fazer”, afirma. Admite ver na criação uma forma de estabelecer distância em relação às frustrações do quotidiano, um instrumento para provocar o pensamento e uma oportunidade de partilha.

Há nela, diz, uma dimensão relacional que é também política e assume que recomendar uma obra, propor um espetáculo, partilhar uma leitura não é apenas um gesto cultural, “é um ato de afeto”, uma forma de ligação com o outro. O teatro, nesse sentido, oferece condições para esse trabalho sobre o afeto e a escuta, porque permite uma vivência coletiva que não se resume à receção passiva de uma ideia. “É um espaço para trabalhar o afeto, a empatia, promover ligações de afeto entre as pessoas.” Acredita que o teatro, e, por extensão, toda a criação artística, é uma ferramenta que opera sobretudo na relação. “É muito mais sobre as pessoas do que sobre os conceitos”, resume, apontando essa dimensão como central no seu modo de estar em palco e de pensar o mundo.

Em relação à forma como é lido - e, por vezes, reduzido - no meio artístico, reconhece que a associação à temática do racismo tem sido recorrente. “Sou lido como o dramaturgo e encenador que trabalha sobre o racismo”, constata. Não rejeita essa categorização, até porque reconhece que o tema atravessa a sua experiência e continua a ser incontornável, mas recusa que isso o defina por inteiro. “Não me importo com essa leitura inicial, porque sei que tenho mais coisas para falar.” Sublinha que o modo como os temas surgem nos seus projetos resulta de um processo orgânico, inevitavelmente ligado às discussões que vive, às experiências que carrega e às relações que constrói. “É um processo natural.” Apesar de o racismo e a representatividade continuarem a ser questões estruturantes do seu trabalho, há outros assuntos que o mobilizam. A saúde mental é um deles, até porque, como refere, não está desligada da discriminação e da violência simbólica que se vive no quotidiano e “está diretamente ligada ao tema do racismo e à discriminação social e política que sentimos em Portugal.” O que deseja, neste momento, é poder escolher.

“Ter poder de decisão, ter poder de escolher que temáticas vou trabalhar.” Para si e para outros artistas negros, essa liberdade ainda não é uma evidência. Por isso, quer procurar novos formatos, explorar o audiovisual, a literatura, o documentário, e não se deixar restringir pelo rótulo de “encenador negro” ou “criador da causa”. Mas também não foge daquilo que o constitui. “Sou um homem negro bi-racial, a viver em Portugal desde os 12 anos”, diz. E, nesse sentido, trabalhar a partir de um lugar autobiográfico é uma escolha que não é apenas íntima, mas também crítica. “É um bocado inevitável”, remata. “Sirvo-me daquilo que me inspira e das pessoas que me inspiram para perceber que ideias fazem mais sentido.”

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