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Num encontro raro entre memória, criação e pensamento, Mário Lúcio partilhou, ao longo de quase uma hora, o seu percurso enquanto músico, compositor e figura incontornável da cultura cabo-verdiana. Nascido no Tarrafal, em outubro de 1964, foi condecorado com a Ordem do Vulcão, em 2006, pelo Presidente da República de Cabo Verde, ao lado de Cesária Évora, sendo o artista mais jovem de sempre a receber tal distinção.
Ainda durante a infância, que descreve como “solitária e imaginativa”, começou a experimentação musical. Miúdo, recorda-se de percutir superfícies, cantarolar e escutar durante horas o tic-tac de um velho despertador. "Ficava horas a ouvir o tic-tac do relógio e a brincar, a tentar driblar o tic-tac. Isso deu-me um grande sentido de polirritmia muito cedo", conta. Essa musicalidade intuitiva cedo se traduziu em gesto performativo e aos cinco anos, começou a improvisar com os irmãos um grupo musical, onde uma latinha de Compal fazia de microfone e o fio de um violão imaginário atravessava a parede como se fosse um amplificador.
Aos dez anos, o encontro com um violão transformou-se num momento fundacional. "Foi como se fôssemos velhos amigos. À noite, eu já estava a tocar." A facilidade com que dominou o instrumento fê-lo perceber que a música poderia ser o caminho e consolidou-se na formação de grupos como Abel Djassi, do qual fez parte em conjunto com Carlos Modesto, Karim Duarte, Dedas Fernandes, Jorge Pimpa e Totinho. O grupo, cuja denominação remete para o nome de guerra de Amílcar Cabral, esteve em atividade entre 1977 e 1990, num percurso marcado por entradas e saídas: à medida que alguns jovens iam ganhando idade e deixando o grupo, entravam rostos novos.
Foram essas idas e vindas que fizeram com que, mais tarde, Mário Lúcio passasse a integrar o grupo Simentera, com o qual iniciou a carreira internacional e se entregou integralmente à música. Em atividade de 1992 a 2003, o coletivo composto por Mário, Quimm Bettencoutr, Teresinha Araújo, Body, Tété Alhinho e Nicola Soares, surgiu com o propósito de fazer música tradicional com novos arranjos, num registo quase acústico onde o destaque recaía sobre a voz. Juntos, representaram Cabo Verde na Expo Sevilha, em 1992, e anos mais tarde, em Portugal, repetiram o feito ao marcar presença na Expo 98. O músico não esconde que à data, tanto a cidade da Praia como outras, igualmente efervescentes e cosmopolitas, acolheram essa fase formativa em que o repertório incluía tanto Pink Floyd como Carlos Santana, sinal de uma abertura que moldaria a sua própria abordagem estética.
As minhas músicas são inteiramente a expressão da minha alma
Mário Lúcio
As suas referências musicais são vastas e transversais, exemplo vivo daquilo que designa como “intercâmbio de sonoridades”. Cresceu a ouvir discos na mercearia de um vizinho, sentado sobre sacos de arroz, entre a voz de Luiz Gonzaga, a expressividade de James Brown, a melodia de Roberto Carlos e a sonoridade da Voz de Cabo Verde. Em Cuba, local onde estudou Direito depois de receber uma bolsa de estudos em 1984, mergulhou na nova trova de Silvio Rodríguez e Pablo Milanés, e descobriu a música popular brasileira. A música clássica, escutada e estudada ao longo de décadas, complementou esse universo. Mesmo com todo esse repertório, foi nas raízes que encontrou nomes que deixaram marcas determinantes: Paulino Vieira ensinou-lhe o cuidado no trato do violão, enquanto Kaká Barbosa, também poeta, ofereceu-lhe o norte melódico e rítmico de que precisava para compor uma música ancorada nas raízes, mas projetada no tempo.
Os elementos por trás da sua música, fazem-no recusar a ideia de fusão musical enquanto princípio estético. Admite não ter reservas quanto ao género e cita Tito Paris, amigo com quem diz ter tido o prazer de trabalhar, como exemplo concreto dessa possibilidade, mas considera o seu estilo uma síntese. Não de géneros, mas de experiências, memórias e saberes. "As minhas músicas são inteiramente a expressão da minha alma. [...] Em vez de ter influências, tem a confluência." Essa singularidade tornou-se reconhecível ao ponto de, em Cabo Verde, se falar no "estilo Mário Lúcio". Ainda que a sua música convoque elementos como o batuque, a morna ou o funaná, estes surgem desconstruídos e reconfigurados numa linguagem própria, que escapa à rotulação.
Essa ruptura estética ficou evidente no seu primeiro disco a solo, “Mar e Luz”, onde abandona o aparato orquestrado do Simentera e aposta no estilo trovador, uma configuração intimista de voz e violão. A receção inicial foi de estranhamento, mas rapidamente o disco se revelou inspirador e abriu caminho para uma nova geração de trovadores cabo-verdianos que hoje fazem carreira em palcos e festivais. "Hoje já se pode fazer concertos e encher salas com voz e violão." À parte do disco inaugural, lançou também Ao Vivo e outros (2006), Badyo (2008), Kreol (2010) e Funanight (2016).
O seu mais recente disco "Independance", lançado por ocasião dos 50 anos da independência de Cabo Verde, foi concebido como celebração sonora e corporal. Remete para os bailes dos anos 70 e 80, onde a juventude cabo-verdiana descobria o continente africano através da música do Senegal, da Guiné, do Congo ou da Nigéria. "Foi a grande descoberta da nossa vida", afirma. Ao reunir músicos como Jery Bidan, Ricardo Campos e Dilson Groove, Mário Lúcio reconstrói esse universo musical, criando uma obra precedida de uma simbiose entre música, literatura e tempo.
Composto durante um período fértil que se seguiu à publicação de um dos seus livros, o álbum foi construído com base em composições espontâneas e de estrutura simples, assentes em dois ou três acordes. Mário Lúcio descreve-as como tendo uma "toada muito africana", em que a melodia e o ritmo emergem de forma orgânica, quase intuitiva. A sonoridade do disco transporta para as pistas de dança de outrora, mas traz também uma carga de memória e celebração colectiva. A escolha do nome foi intencional desde o início do processo criativo. Mais do que um álbum para evocar, é um trabalho que pretende fazer dançar, lembrar e reconhecer as raízes sonoras que alimentaram os sonhos de emancipação e liberdade. Nas palavras do autor, trata-se de uma homenagem viva ao tempo em que "as nossas músicas ainda não estavam estilizadas", e em que a conexão com África se fazia com espanto, alegria e reinvenção permanente.
"Independance", não pode, assim, dissociar-se do seu caráter político e cultural. É no contraponto entre passado e presente que assume que a música foi sempre um instrumento de emancipação. Durante o período colonial, canções, compositores e géneros como o batuku eram censurados. Esse gesto de proibição teve um efeito inverso: alimentou a consciência crítica e fortaleceu a identidade. "Hoje, a música é a nossa maior expressão de liberdade. É liberdade mental, criativa e corporal".
Convidado a traçar um retrato breve dos últimos 50 anos salienta que a independência de Cabo Verde não se limitou ao plano político. Foi também cultural, social e simbólica. O país deixou para trás a fome cíclica, o analfabetismo estrutural e o silêncio imposto. Cabo Verde tinha, em 1975, uma taxa de analfabetismo de 75%, apenas dois liceus para nove ilhas habitadas e nenhuma universidade. Hoje, são mais de duas dezenas de liceus, onze instituições de ensino superior e uma taxa de alfabetização a rondar os 98%, que contrasta de forma contundente os números de outrora. No campo da digitalização o arquipélago tem sido um dos poucos países africanos a marcar presença em eventos como a Web Summit e inaugurou, em 2025, dois pólos tecnológicos nas cidades do Mindelo e da Praia. A saúde é universal e gratuita. "O mesmo acesso de saúde que é dado ao primeiro-ministro é dado a um cidadão que vive na rua", recorda.
Este percurso de superação materializa-se na paisagem social, mas também no modo como Cabo Verde é visto no mundo. "Nenhum país ocidental olha hoje para Cabo Verde de cima", afirma com segurança. E reforça que se trata de uma mudança de paradigma alimentada por conquistas concretas e, sobretudo, por uma consciência de dignidade reconquistada. No plano internacional, destaca duas figuras como emblemas da nação: Amílcar Cabral e Cesária Évora. O primeiro pela luta política, a segunda pela afirmação cultural. "Cabral levou Cabo Verde à independência. Cesária mostrou ao mundo esse país esquecido." A música, enquanto linguagem comum, tornou-se meio de exportação da identidade e ferramenta de projecção simbólica.
Fotografia de Clelvy Cruz
Ministro da Cultura entre 2011 e 2016, não esconde que a pasta teve um papel determinante na conquista da independência. Longe de ser apenas embelezamento da história, foi força propulsora, estratégia e afirmação de um povo que se recusava a aceitar o silêncio como destino. "O fundamental foi a cultura que nos levou à independência", declara. Através da música, da literatura, da dança e da oralidade, Cabo Verde afirmou a sua singularidade e rejeitou a ideia de inferioridade cultural, convocando a sua identidade para o centro da luta emancipadora.
Ao olhar para a nova geração de artistas cabo-verdianos, reconhece uma efervescência constante, com centenas de jovens a renovar a música do arquipélago. Considera que a cultura é um organismo em movimento, que não atinge um "ponto máximo" porque está em permanente reinvenção. Nesse contexto, sente a responsabilidade de ser referência, sobretudo quando jovens lhe dizem que a sua música lhes salvou a vida ou lhes mostrou um caminho. Essa dimensão simbólica exige-lhe coerência ética e integridade: "Provavelmente nunca haverá um grande artista sem ser um bom ser humano".
Para Mário Lúcio a arte deve ser acompanhada por uma conduta ética coerente. O artista, diz, é espelho e mediador e as suas palavras, ações e pensamentos devem conter a mesma integridade que sustenta a criação, porque é dessa verdade interior que nasce a credibilidade da obra.
Amante da literatura, paixão que divide com a música, vê nas duas áreas mundos que não se excluem, antes se alternam em ciclos férteis e contínuos. Autor de obras como " Os Trinta Dias Do Homem Mais Pobre do Mundo", distinguida em 2000 com o Prémio do Fundo Bibliográfico da Língua Portuguesa, e “O Diabo Foi Meu Padeiro”, publicado em 2019, descreve períodos intensos de escrita, seguidos por uma estação musical, em que as composições se revelam de forma orgânica. "A música nasce sozinha. Ela vem já com a sua letra, sua melodia", diz. Para lá da composição, assume essa dinâmica como interpretação sensível do que lhe chega como sopro e matéria. Depois, cabe-lhe a tarefa de acolher essa presença, moldá-la e dar-lhe forma com a delicadeza de quem sabe que o essencial nasce feito e pede apenas cuidado, “como se fosse um recém-nascido” que o autor tem a obrigatoriedade de nutrir e fazer crescer.
Com a mesma dedicação com que investiu na cultura como instrumento de transformação coletiva, Mário Lúcio cultiva agora um tempo de introspeção e escrita. Dedica-se à literatura e prepara o lançamento de um novo romance. Encontra-se numa fase de pausa ativa, em que contempla o tempo com a mesma intensidade com que sempre viveu a criação. O conselho que deixa às novas gerações é direto e sem concessões: "A arte não aceita fingimento. Exige engajamento sincero e muito sacrifício".
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