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Bantuloja

Uma criança sofreu um ato racista no festival MIL, em Lisboa

29 de Setembro de 2023
Uma criança sofreu um ato racista no festival MIL, em Lisboa

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A organização do MIL, conferência e festival a acontecer em Lisboa até esta sexta-feira, comunicou a sua posição sobre um ato racista, que aconteceu esta quinta-feira, 28, no espaço do evento. Um delegado internacional belga “agarrou e interpelou com violência uma criança negra de oito anos, filha de outro delegado , que brincava num espaço supostamente seguro”, avançou a organização. 

O delegado belga acusou a criança de mexer na sua mala e de alegadamente ter furtado algo que estaria no interior dessa mala.

A organização do evento explicou à BANTUMEN que várias pessoas assistiram ao ocorrido. “A criança estava perto dele a brincar e, pelo que se diz, ela tocou na mala mas aparentemente não mexeu, mas ele começou a fomentar toda uma conversa horrível e a insinuar que a criança tinha efetivamente furtado alguma coisa. A criança era filha de outro delegado e gerou-se ali uma situação muito chata e nós, enquanto organização, chamámos logo a polícia, que é o primeiro passo a dar nestas situações. A nossa produtora e diretor estiveram presentes na situação, o foco número um foi tirar a criança de uma situação daquelas. A nossa produtora tirou as crianças do espaço, levou-as para uma sala respirar, com a nossa equipa, e a nossa direção ficou a resolver o que estava a acontecer”.

Em conversa com Viviane Rodrigues, esta manhã ao telefone, a mãe da criança, com a voz ainda trémula de emoção contou o sucedido. “Estávamos na parte do restaurante, onde tem uma esplanada e encontrei uma outra mãe, também de uma criança negra, e elas estavam brincando. Elas estavam totalmente controladas, era um espaço seguro, pequeno, e toda a gente conhecia a gente. Elas estavam brincando pelas mesas. Num determinado momento, o garçom, que também um homem negro – e estou falando dos recortes raciais, porque eu acho que a gente só conseguiu perceber a tempo e rápido o que estava acontecendo, porque todas as pessoas foram muito sensíveis para entender que tinha alguma coisa errada. Eu não vi ele correndo atrás da minha filha. Ela estava brincando, com uma outra criança, e essa outra criança, num determinado momento, estava sozinha, conversando com o garçom, que é o Paulo. E ele, sem ainda entender a situação, até falou meio sorrindo, ‘tem um homem a correr atrás da sua filha’. Até aí eu pensei que era mais alguém conhecido, aí a menina falou “é, ele está acusando ela de pegar uma coisa que ela não pegou”. Quando ela falou isso eu pulei da mesa e saí gritando para achá-la e, antes ainda de ela me ver, eu escutei ela chorando e gritando “mãe”. Eu entrei num dos galpões da produção, ela estava ao redor de quatro adultos – esse cara e outras pessoas do evento.”

Nesse momento, o agressor – identificado por Viviane Rodrigues como Marc Van Eyck, músico e produtor belga – indica que a menina teria roubado um cartão de dentro da sua carteira. Viviane questionou o porquê de este confrontar uma criança ao invés de procurar os seus responsáveis ou os do evento. “Aí ele, para me ameaçar, um homem branco, belga, ‘eu vou chamar a polícia’. Porque eu vou para cima dele e falei para ele ‘não calma, eu vou chamar a polícia’ e falei para a produção ‘que aquele cara não saía dali enquanto eu não abrisse uma queixa’. Foi o tempo de o meu marido chegar e de eu pedir para ele não fazer nada porque ele ficou transtornado. Mas você imagina a situação, um homem belga, branco, europeu e o meu marido um homem negro, retinto, indo para cima desse belga… a culpa iria ser dele (do meu marido)”, explicou ainda Viviane.

Quando a mãe questiona “Maria” sobre o que aconteceu, a menina de oito anos responde: “ele me puxou pelo braço, eu corri muito mãe, eu estava me escondendo dele e ele vindo atrás”.

A polícia foi chamada ao local pela produção do festival e, ainda segundo a mãe, estavam ali reunidas cerca de 40 pessoas. “Todas indignadas. Ele não tinha uma pessoa do lado dele, muito pelo contrário. Um dos seguranças falou para mim ‘eu não posso falar o que eu gostaria de falar porque estou no meu trabalho’ e ele estava indignado. O policial olhou para mim e falou ‘eu não sei o que eu faria se estivesse no seu lugar'”, relembra Viviane.

Sobre o enquadramento legal, o advogado contactado pela família explicou que será necessário perceber de que forma a queixa será enquadrada porque, se for racismo, “não vai acontecer nada”, considerando a legislação portuguesa. De acordo com a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial, em Portugal, “a discriminação racial constitui crime, se preencher os requisitos previstos no Artigo 240º do Código Penal, que tipifica e pune o crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência. Nos restantes casos de ocorrência de práticas discriminatórias em que não estejam preenchidos os requisitos ali previstos a discriminação racial, étnica, em razão da nacionalidade, da ascendência ou do território de origem poderá ser punida como contraordenação.”

Viviane Rodrigues ressalva o momento avassalador vivido. “Foi desesperador o trauma e o choque que esse cara imprimiu na minha família, na minha filha, para o resto da nossa vida. Porque, para ele, não foi nada de mais. Ele já começou a falar ‘não, eu acho que…’ Mas tem testemunhas de todos os tipos, brancas, portuguesas, brasileiras, negros, todo o mundo falando ‘não ela não mexeu em nada, ela estava comendo uma batata’. E mesmo que ela tivesse mexido, nada justifica um adulto puxar uma criança pelo braço e arrasta-la. Para mim não tem cabimento”.

Posicionamento da organização do evento

“Mal a equipa toda de produção e comunicação teve conhecimento do que estava a acontecer, parámos todas as nossas comunicações e ficámos a aguardar ordens, para termos também noção legal de como é que nos poderíamos posicionar e porque queríamos claramente nos posicionarmos”, explicou-nos ao telefone uma das pessoas responsáveis pela produção do MIL.

Gonçalo Riscado, fundador e diretor da Cultural Trend Lisbon (CTL), empresa responsável pela produção do festival, confirmou à BANTUMEN a necessidade de a empresa ser a primeira a posicionar-se sobre o corrido e a necessidade de prestar todo o apoio às vítimas. “De facto o MIL, parece-me óbvio ter de se posicionar porque não é só trazer estes assuntos para se debater, não é dizer que trabalhamos por diversidade, por acesso e democratização. Quando conseguimos criar um espaço como o MIL – que este ano, a diversidade do ambiente que se estava a viver era qualquer coisa muito boa -, quando uma coisa destas acontece é óbvio que temos de nos posicionar, temos de agir, temos de dizer, independentemente das consequências que isto possa trazer. É, claramente, uma responsabilidade de uma organização, de um festival ou de um espaço, posicionar-se perante situações destas que, quanto a mim, foram claras. Não posso contar o filme do que aconteceu, porque há várias pessoas que viram bocadinhos do que aconteceu. O que não há dúvida nenhuma é que, de facto, uma criança foi perseguida, foi tocada, foi confrontada. E aquilo de que também não tenho dúvidas nenhumas é que foi uma atitude racista“, afirmou Gonçalo Riscado.

“Estive com o agressor, enquanto aguardávamos a chegada da polícia, de forma a que ele não abandonasse o recinto e, num discurso típico racista, consegui perceber a motivação. É algo que sabemos que está sempre a acontecer mas, quando vemos à nossa frente, é sempre chocante. Seria uma criança de rua, uma criança cigana que estava ali a roubar. Isto saiu da boca daquela pessoa. Isto está de facto entranhado. Quando falamos de racismo estrutural – isto está entranhado nas pessoas – é disto que estamos a falar,” sublinhou ainda o responsável.

No comunicado divulgado nas redes sociais, a organização do MIL condenou veementemente a agressão e confirma terem tomado medidas imediatas, ao acionar as autoridades competentes e oferecer apoio à família afetada.

BANTUMEN, membro do conselho consultivo do MIL

Em abril deste ano, a BANTUMEN, enquanto plataforma de comunicação e uma organização focada na promoção e divulgação da comunidade negra lusófona, foi convidada para integrar o conselho consultivo do festival MIL. O objetivo seria “reunir um grupo de pessoas com experiência profissional ou vivida em cada uma das áreas de programação da convenção para partilha de ideias, formatos, tópicos e pensamentos de referência”. Nas reuniões tidas, um dos pontos destacados pelos diferentes membros do conselho foi a necessidade de a organização criar maior diversidade e equidade dentro do evento. Tanto diretamente na equipa de profissionais, como no cartaz e nas diferentes iniciativas de promoção do evento.

Tendo a organização sido a primeira a assumir o ocorrido e a manifestar o seu posicionamento, que defende de forma a assertiva as vítimas do ato racista, a CTL assume a sua responsabilidade e compromisso em garantir que o MIL continue a ser um espaço de todos e para todos. Os debates, mesas redondas e os demais eventos que potenciam a reflexão sobre racismo, diversidade e equidade, em Portugal, são de extrema importância, mas raramente são observados momentos em que as ações são efetivas.

É vital lembrar que, independentemente da nacionalidade ou origem dos agressores, a batalha contra o racismo é complexa e multifacetada. Não se trata apenas de um evento isolado, mas de um problema sistémico e estrutural enraizado, como bem sublinhou Gonçalo Riscado. O festival MIL, ao tomar uma posição política clara, reafirmou a importância de agir além das palavras. Ações concretas e medidas transformadoras são essenciais para desmantelar os pilares que sustentam o racismo e cruciais quando a vítima é uma criança que transportará na linha do tempo a experiência traumática.

A indignação não pode apenas circular nas palavras e nas redes sociais, tem de ser transformada em ação concreta.

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