No Musicbox, a BANTUMEN encontrou uma casa (e a parte boa é que a história continua)

26 de Agosto de 2025
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Fotografia ©BANTUMEN, Musicbox 2024

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Há notícias que não se esgotam na esfera informativa. O encerramento do Musicbox, após 19 anos de atividade, inscreve-se nesse domínio da experiência que não se resume à crónica factual. O anúncio poderia ser lido como mais um capítulo da gentrificação lisboeta - e há quem não resista a essa leitura fácil - mas neste caso trata-se de uma transição. O projeto não desaparece, muda-se para a Casa Capitão, no Beato, onde a equipa encontra melhores condições, mais valências e espaço para crescer.

É o fecho de um ciclo que não pode ser resumido a uma nota de rodapé. O Musicbox não foi um clube qualquer, desses que abrem com grande aparato e fecham discretamente quando o entusiasmo arrefece. Foi, desde o primeiro dia, um espaço de experimentação, um palco de estreia, uma plataforma que deu visibilidade a quem ainda não tinha onde pousar os pés. Se Lisboa se habituou a reconhecer novos talentos antes de eles explodirem, deve em muito àquele espaço.

Ali passaram nomes que, entretanto, se tornaram incontornáveis. O espaço deu palco a artistas como Buraka Som Sistema, que ali encontraram parte do caminho para transformar o kuduro em fenómeno global, e acolheu concertos de artistas internacionais que de outra forma dificilmente teriam pisado uma sala lisboeta, do hip hop underground às sonoridades eletrónicas mais arriscadas. Por ali desfilaram ainda as vozes de MCK e Luaty Beirão, em noites que foram também declarações políticas. Scuru Fitchádu levou o funaná a territórios punk, Nigga Poison regressaram lá para um concerto que foi reencontro geracional. E isto é apenas uma amostra, a lista completa seria tão vasta quanto a própria história cultural da cidade nestas duas últimas décadas.


Festa da Kazukuta com a BANTUMEN, em março de 2024. Foto ©BANTUMEN

No que à BANTUMEN diz respeito, o Musicbox foi casa, numa parceria que se estendeu ao longo dos últimos anos e que saiu reforçada pelas recentes celebrações do nosso 10.º aniversário, acabando por tornar-se cúmplice da nossa própria história.

Foi naquele palco subterrâneo da Rua Cor de Rosa, aos pés do Cais do Sodré, que organizámos o primeiro grande evento após a pandemia com a Kazukuta de Djeff, numa noite em que a sala se encheu até ao limite, e a música reencontrou a energia do público. Seguiu-se Monagambé, fruto de um desafio de Gonçalo Riscado e Pedro Azevedo, que nos convidaram a reinterpretar o 25 de Abril sob o prisma africano, recordando que a liberdade portuguesa também tem raízes no continente – e que é importante (e necessário) saber celebrá-las. Mais recentemente, foi ali que celebrámos Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, e todas as sonoridades e vozes que compõem o cenário cultural sob o qual regemos o nosso trabalho. “Por vezes menos alternativo, mas sempre independente”, o Musicbox acolheu, em média, mais de 200 concertos e 500 Dj sets por ano. Simultaneamente, foi um marco na gestão cultural ao ser palco de programas e projetos como Club Docs, Festival Silêncio, Lisboa Capital República Popular!, Poetas do Povo, MIL, numa lógica onde as expressões culturais tinham lugar à multidisciplinaridade. 

Na conversa connosco, Gonçalo Riscado falou da dificuldade da decisão, mas também da sua inevitabilidade e admitiu que “a ideia era manter os dois espaços, mas percebemos que não era possível”, acrescentando que “a Casa Capitão é um projeto com mais valências” por permitir “concentrar cem por cento da atividade e pensar a programação com outra escala”. Ciente de que “seria insustentável manter os dois lugares abertos” e consciente de que “o centro da cidade começa a ficar desprovido destes sítios que são referência”, não esconde que o próprio Musicbox contribuirá para esse vazio, mesmo na sua despedida.

A ambivalência entre a perda e o recomeço fazem com que a reflexão se estenda, invariavelmente, à situação da cidade, que tem vindo a perder os seus espaços culturais, sendo na maioria das vezes substituídos por hóteis, alojamentos locais ou espaços que desvirtuam a capital da sua essência. “O que está a acontecer aos centros urbanos é gravíssimo. Bairros inteiros são engolidos pela gentrificação e pelo turismo. Já não há como negar, porque os encerramentos sucedem-se sem pausa”, afirmou, sublinhando a urgência de “medidas políticas claras, de todos os partidos e candidatos, porque este problema atravessa diferentes responsabilidades e não pode ser ignorado”.


Festa de 10 anos BANTUMEN, com Phedilson, maio de 2025 ©BANTUMEN.

O percurso do Musicbox, contudo, não se confunde com o de outros espaços que sucumbiram à pressão imobiliária. Riscado recordou que “há vinte anos foi possível comprar o edifício numa altura em que o crédito era acessível. Se tivéssemos de pagar renda, já não estaríamos aqui há cinco ou seis anos”. Essa circunstância permitiu a longevidade do projeto e tornou possível o investimento agora em preparação. “O facto de termos conseguido comprar permitiu resistir e, hoje, arriscar num espaço novo”, acrescentou, enfatizando que “não queremos que o nosso exemplo seja usado para dizer que não há problema nenhum em Lisboa, porque o problema existe e é grave”.

Para nós, na BANTUMEN, o encerramento do Musicbox nos moldes em que o conhecemos, representa um adeus agradecido a um lugar onde se concretizaram encontros e se escreveram histórias que nos definem. Foi ali que a nossa missão encontrou palco, que a cultura negra e afrodescendente se fez ouvir com clareza, que celebrámos comunidade sem concessões.

O ciclo que agora termina deixa a cidade sem um dos seus símbolos subterrâneos. Mas não deixa Lisboa órfã. Como sublinhou Gonçalo Riscado, “há nostalgia, mas também entusiasmo por aquilo que vamos construir a seguir”. E, se é certo que a cidade se torna menos hospitaleira para quem ousa criar, é também certo que espaços como este demonstram que a cultura persiste, mesmo quando tudo parece conspirar contra ela.

Se é para a Casa Capitão que a cultura segue, então é para lá que iremos. Juntos. 

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