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A relação que nós - mulheres africanas e negras - temos com o nosso cabelo é complexa, íntima e, muitas vezes, carregada de peso. Vai muito além da aparência. O nosso cabelo fala por nós quando as palavras falham. Carrega marcas de história, tradições entrelaçadas ao longo de gerações, resistência moldada em tranças, sobrevivência escondida sob lenços. Para muitas de nós, é ao mesmo tempo uma arma e uma ferida.
Na infância, os rituais em torno do cabelo eram familiares. O cheiro forte dos alisadores (os populares desfrisos), o puxar apertado das tranças, as horas passadas a perseguir uma imagem que aprendemos a acreditar ser a mais próxima da beleza: mais liso, mais comprido, mais disciplinado. Eu não fui exceção. Lembro-me de querer que o meu cabelo natural se comportasse de formas impossíveis, do couro cabeludo a arder, das lágrimas engolidas no salão, e do orgulho que surgia depois que a dor passava. Entre cada um desses momentos, acreditava que estava apenas a fazer o normal – o que todas nós fazíamos.
Mas talvez esse fosse justamente o problema. Tornou-se normal. Rotina. Aprendemos a aguentar e até a rir disso, trocando desconforto por aquilo que pensávamos ser dignidade. Extensões, perucas, tranças, alisadores químicos: tudo parte da nossa linguagem e do quotidiano. Mas quantas vezes paramos para fazer as perguntas mais difíceis?
De onde vem este cabelo? O que contêm os produtos que usamos? E por que razão tantos deles são prejudiciais e até dolorosos?
A indústria da beleza, especialmente o comércio de extensões, permanece em grande parte sem regulamentação. Isso cria um espaço onde preocupações éticas - como a exploração de mulheres pobres na Ásia ou na América do Sul - são facilmente descartadas. Usamos o cabelo, mas raramente vemos o quadro completo: pobreza, peso emocional, falta de consentimento. E quando olhamos para os produtos que nos são vendidos, a história não melhora.
Décadas de relatos pessoais, agora confirmados por investigação científica, expõem uma realidade clara: as mulheres negras estão desproporcionalmente expostas a químicos tóxicos nas suas rotinas de cuidados pessoais. Desfrisos, champôs, óleos, condicionadores, géis - produtos que fizeram parte do nosso crescimento - contêm ingredientes capazes de perturbar o sistema hormonal e comprometer silenciosamente a saúde.
Tamarra James-Todd, epidemiologista e especialista em saúde pública em Harvard, tem estudado esta questão durante anos. Segundo a investigadora, e como destacou a jornalista Linda Villarosa no New York Times, os produtos capilares mais agressivamente comercializados para mulheres negras estão cheios de desreguladores endócrinos: químicos associados a problemas que vão da menstruação precoce e miomas à infertilidade e a formas agressivas de cancro, incluindo mama, ovário e útero.
Mas afinal, o que é o sistema endócrino? O Instituto de Medicina Johns Hopkins explica: “O sistema endócrino é uma rede complexa de glândulas e órgãos. Usa hormonas para controlar e coordenar o metabolismo, os níveis de energia, a reprodução, o crescimento e o desenvolvimento, bem como a resposta a lesões, stress e humor.”
Quando os produtos que usamos contêm desreguladores endócrinos, interferem nesse equilíbrio delicado. Com o tempo, esta perturbação pode levar a sérios problemas de saúde.
E aqui está um dado que agrava ainda mais a situação: enquanto apenas 7% dos produtos capilares destinados a mulheres brancas contêm esses químicos tóxicos, no caso das mulheres negras o número sobe para 50%. Não é uma diferença pequena, mas sim um padrão sistémico que transmite uma mensagem implícita: a nossa saúde não é considerada digna de proteção e que consequentemente estamos inseridas em um sistema que conta com o nosso silêncio.
As estatísticas são inegáveis. As mulheres negras enfrentam taxas significativamente mais elevadas de cancro da mama, miomas uterinos, complicações na gravidez e doenças cardiovasculares. Ainda assim, as causas profundas destas disparidades continuam frequentemente ignoradas. Muitas vezes, apontam-se explicações simplistas como “desigualdade económica” ou analfabetismo, mesmo quando não se aplicam totalmente. O que está em jogo são fatores sistémicos mais profundos e ainda pouco examinados.
Um deles é a exposição constante e prolongada. Embora o uso de cosméticos seja comum em todos os grupos demográficos, as mulheres negras são particularmente impactadas por uma combinação de fatores económicos, culturais e sociais. Desde cedo sentimos a pressão de corresponder a padrões estreitos de beleza - sociais e profissionais - o que multiplica não só a variedade de produtos utilizados, mas também a frequência da sua aplicação.
Essa intensidade de uso aumenta a vulnerabilidade à exposição a dois grupos de substâncias especialmente nocivas, muito comuns em produtos destinados a mulheres negras:
Parabenos: conservantes sintéticos que imitam o estrogénio no corpo e podem interferir com a função hormonal, afetando a saúde reprodutiva, a gravidez e aumentando o risco de cancros relacionados com hormonas;
Ftalatos: químicos usados para flexibilizar plásticos ou preservar fragrâncias, associados a riscos que vão desde cancro da mama e infertilidade até doenças cardiovasculares e condições raras como o osteossarcoma (um tipo de cancro ósseo).
O mais preocupante é como estas substâncias estão disseminadas: presentes em tudo, desde desfrisos e tratamentos de óleo quente até séruns, condicionadores leave-in e champôs aparentemente inofensivos de uso diário. Essa exposição repetida, muitas vezes sem rótulos claros ou avisos transparentes, acumula-se ao longo dos anos e contribui para desigualdades de saúde profundas.
Até que haja mais regulamentação, transparência e consciência, as mulheres negras continuarão a carregar o peso de um sistema que coloca a aparência acima da saúde e o lucro acima da segurança.
E muitas de nós seguimos a usar esses produtos, mesmo conhecendo os riscos - eu incluída. Mesmo com locs, já recorri a extensões ou a estilos protetores para parecer “arrumada” e corresponder às expectativas de asseio moldadas pelos padrões de beleza brancos. Escolhi a conveniência, o visual, a possibilidade de mudar o estilo. E, apesar de saber dos impactos ambientais, das preocupações éticas e dos riscos químicos, muitas vezes preferi não olhar de perto. Porque saber implica responsabilidade e isso pode ser esmagador quando nos encontramos num espaço que nos lembra constantemente que não pertencemos.
Em 2018, Tamarra James-Todd, em colaboração com o Silent Spring Institute - organização dedicada ao estudo da saúde ambiental -, analisou 18 produtos capilares usados frequentemente por mulheres negras. Os resultados foram alarmantes: dezenas de substâncias nocivas, incluindo desreguladores hormonais conhecidos, estavam presentes. Ainda mais grave: 84% dos químicos tóxicos identificados nem sequer constavam na embalagem.
Pesquisas posteriores confirmaram que as mulheres negras estão desproporcionalmente expostas a estes ingredientes perigosos. Testes de urina revelaram, de forma consistente, níveis mais elevados de desreguladores endócrinos em mulheres negras do que em mulheres brancas. Essa exposição existe independentemente do preço pago ou de o produto ser vendido como “natural”, “orgânico” ou especificamente formulado para cabelo afro. A dura realidade é que os consumidores permanecem no escuro. Muitas marcas não oferecem transparência, deixando-nos vulneráveis a riscos de saúde a longo prazo - muitas vezes sem sequer termos consciência disso.
Apesar do crescente corpo de evidências científicas, os consumidores continuam desprotegidos. O sistema regulatório é lento, e muitas destas descobertas permanecem confinadas a artigos científicos, sem chegar às conversas públicas. Assim, as mulheres negras seguem a usar produtos potencialmente nocivos, acreditando que sintomas comuns - como irritação no couro cabeludo, queda de cabelo ou calvície localizada - são apenas parte “normal” do processo de cuidado.
Mas isto não é apenas uma questão de segurança do consumidor; é uma questão de desigualdade sistémica e um resultado do capitalismo racial. Grandes empresas de beleza lucraram durante décadas com produtos destinados às comunidades negras, frequentemente com pouca preocupação pela segurança ou pelo bem-estar. Estas práticas refletem problemas enraizados que cruzam raça, género e capitalismo. Empresas como L'Oréal, Revlon, Dabur International e Namastê Laboratories enfrentaram recentemente processos judiciais, acusadas de contribuir para graves problemas de saúde. O caso do famoso alisador químico Dark’n’Lovely, do grupo L'Oréal, é ilustrativo: quase 10 mil processos foram reunidos após consumidoras denunciarem cancro uterino e outros problemas sérios.
No fim das contas, para além de cuidados pessoais, estamos a falar de saúde pública, equidade e justiça. Os nossos corpos não podem ser danos colaterais na busca pelo lucro. Os produtos que usamos diariamente deveriam sustentar o nosso bem-estar – não colocá-lo em risco.
Por isso, se procuras formas diferentes de agir, tanto individual como coletivamente, aqui estão alguns pontos de partida:
Escolher produtos veganos e que indiquem claramente estar livres de parabenos, ftalatos, chumbo e outros químicos tóxicos;
Investir e apoiar empresas de propriedade negra que priorizem ingredientes seguros, de base vegetal e transparentes; marcas como Ruka Hair (Nigéria/Zimbabwe), Cheveux Organique (Uganda) e Dosso Beauty (EUA) são exemplo disso;
Ler cuidadosamente as listas de ingredientes e procurar informações sobre substâncias desconhecidas;
Apoiar políticas e campanhas que pressionem por maior regulamentação dos produtos de cuidados pessoais;
Merecemos transparência, produtos que nos nutram (e não nos prejudiquem) e a liberdade de abraçar o nosso cabelo - natural ou estilizado - sem termos de sacrificar a nossa saúde ou os nossos princípios. Portanto, temos de começar a desaprender, a questionar as rotinas que herdámos e a exigir mais: sabendo que a nossa beleza nunca deve vir à custa do nosso bem-estar.
Referências:
The New York Times Magazine, The Disturbing Truth About Hair Relaxers, 2024
The New York Times Magazine, What to Know About Chemical Hair Relaxers and Health, 2024
The Root, Black Women Ask 'Are They Trying to Kill Us Through Our Hair?' New Report Says 'Maybe', 2025
The Guardian, Black women’s hair products are killing us. Why isn’t more being done?, 2021
Consumer Reports, Dangerous Chemicals Were Detected in 100% of the Braiding Hair We Tested, 2025
Johns Hopkins Medicine, Anatomy of the Endocrine System.
Black Ballad, No More Lyes: The Group Campaigning Against Toxic Products In Hair Relaxers, 2022
Black Ballad, Are Our Beauty Products Killing Us?, 2025
Science Direct, Measurement of endocrine disrupting and asthma-associated chemicals in hair products used by Black women, 2018
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