“Na Bahia nós crescemos sabendo que somos africanos”, Nara Couto entre criação, tempo e conexão

7 de Setembro de 2025

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Num cenário cultural marcado por tensões identitárias, deslocamentos históricos e disputas em torno da memória, o percurso de Nara Couto impõe-se não apenas pela coerência artística, mas pela forma como articula experiência, território e herança simbólica. Nascida no bairro do Curuzu, em Salvador da Bahia, no Brasil, construiu-se num ambiente em que os blocos afro, o candomblé e a pedagogia do corpo faziam parte do modo de vida.



Recorda-se de uma infância protegida, onde era acompanhada à escola e voltava para casa para brincar com as irmãs. "Eu cresci com mulheres. Fui criada dentro de casa, muito guardada”, conta. A proteção, no entanto, contrastava com o mundo exterior e partilha, entre risos, que "era a mais escura” das irmãs e, embora em casa tenha crescido sempre com sentimento de igualdade e pertença, foi na rua que começou a  perceber o peso dessa diferença. “Eu sou mais retinta, mas nunca ouvi que a minha cor era feia. Isso foi o mundo que tentou me dizer depois. Dentro de casa, sempre foi valorizado que cada uma tinha a sua beleza.

Bailarina desde os 17 anos, assume a modalidade como o primeiro lugar de afirmação estética e política, mas não esconde que aprendeu muito mais dentro de casa do que em qualquer outro espaço. E foi a partir desse contexto que se sentiu preparada para entrar no Balé Folclórico da Bahia, encontrando ali uma ponte entre a herança e a criação. O ambiente não lhe era estranho, pelo contrário, era muito mais familiar do que se possa pensar. O seu pai, José Carlos Arandiba - conhecido como Zebrinha - é uma das figuras mais influentes da dança no Brasil. Coreógrafo de referência, Zebrinha dirigiu tanto o Balé quanto o Teatro Olodum e construiu uma carreira marcada pelo rigor técnico, pensamento político e estética afro-baiana. Para Nara, a presença do pai como referência foi além da esfera familiar e transformou-se em ferramenta pedagógica, estética e ética. “Meu pai é meu professor de dança, é meu coreógrafo. É a referência mais viva que eu tenho.”

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Retinta foi a primeira vez que eu entendi que o que eu faço é música preta mesmo, sem pedir licença"

Nara Couto

Ainda durante o percurso no ballet, iniciou colaborações como backing vocal e trabalhou com nomes como Daniela Mercury, Gilberto Gil e Ivete Sangalo. A viragem para o percurso a solo deu-se com o convite para integrar a Orquestra Afrosinfônica, em 2009, desafio que, numa primeira fase, recebeu com estupefação. "Nunca imaginei ser cantora de orquestra. Quando o Ubiratan me chamou, eu perguntei: 'Eu posso mesmo?'" A hesitação deu lugar à descoberta de um novo campo expressivo e a orquestra funcionou como “continuação do ballet”, transpondo para a voz o mesmo rigor e densidade que a dança em tempos exigiu.

O trabalho autoral viria a ganhar forma a partir de 2017, com o lançamento do single “Linda e Preta”, seguido do EP Contipurânia em 2018. A primeira obra de longa-duração, Retinta (2021), consolidou o seu lugar numa cena onde a ancestralidade já não se apresentava como retórica, mas como método. Produzido por Ellen Oléria e Faustino Beats, Retinta articula afetividade negra, corporalidade baiana e uma estética de resistência sem dramatismo. Canções como “Dança” ou “Cura”, esta última em parceria com Ary, de Angola, e Eduardo Brechó, revelam a elasticidade da sua voz enquanto meio e mensagem. "Retinta foi a primeira vez que eu entendi que o que eu faço é música preta mesmo, sem pedir licença. Foi um lugar em que eu me permiti falar 'é assim que eu sou, é isso que eu quero cantar, é isso que eu quero falar'.”

Em 2024, lançou Ori, um segundo álbum que, embora gravado anos antes sob a direção musical do maestro Letieres Leite, só ganharia o mundo após a sua morte. O disco amplia a paleta estética do trabalho anterior e inclui vozes como Luedji Luna, Maria Rita, Mateus Aleluia e Vovó Cici. É também um álbum que expande a geografia do repertório: inclui faixas em crioulo guineense, evoca a tradição da capoeira (com “Badauê”, de Moa do Katendê) e abre com um texto de Carla Akotirene, que opera quase como um manifesto de abertura ritual.

O trabalho insere-se num contexto mais amplo de reaproximação entre artistas afrodescendentes no Brasil e os países africanos de língua portuguesa, num momento em que o debate sobre herança, diáspora e restituição ganha novas formas. A Bahia, enquanto território simbólico e político, ocupa aí um lugar singular por ser um espaço onde múltiplas matrizes culturais africanas foram forçadas a coexistir, mas também onde se consolidaram linguagens próprias, nem sempre compreendidas pelo continente. A tensão entre familiaridade e distância, pertença e ruptura, atravessa muitos dos discursos contemporâneos sobre identidade negra - e está claramente presente na obra e na fala de Couto.

Nara Couto entrevista

Nara Couto fotografada durante a entrevista com Marisa Rodrigues, para a BANTUMEN. Julho de 2025.

O projeto Outras Áfricas, "primeiro espetáculo solo", ainda sem músicas gravadas, marca o início de uma aproximação efetiva aos países africanos de língua portuguesa que teve Os Tubarões e Gil Semedo como ponto de partida. Lembra-se de ouvir a banda lendária de Cabo Verde e de se emocionar porque, alega, "parecia que já conhecia. Parecia que já tinha ouvido aquilo antes." O gatilho emocional acabou por condicionar a escolha do repertório, que passou a incluir temas de Cabo Verde, Angola e África do Sul, escolhidos por afinidade afetiva e instintiva. "Tinha alguma coisa que pulsava ali dentro de mim que dizia que eu precisava cantar aquelas músicas", conta e acrescenta que o momento foi um ponto de viragem: a partir daí, deixou de pensar a relação com África apenas como referência e passou a encará-la como presença, partilha e escuta ativa. “Entendi que precisava me aproximar, não só musicalmente, mas afetivamente, espiritualmente, culturalmente.”


A artista baiana não se apresenta como representante de uma causa ou como intérprete de uma identidade coletiva. O seu trabalho é construído a partir de um lugar situado, informado por uma escuta atenta ao que permanece e ao que se perdeu. “As pessoas querem muito que a gente se defina. Eu não quero ser definida. Quero estar em movimento.” A recusa à fixação é não uma fuga, mas uma metodologia de criação onde o trabalho é atravessado pela dúvida, pela escuta, pelo compromisso com uma herança que não é estática nem conclusiva. "Se eu fosse definir o meu trabalho, talvez dissesse que ele é um exercício contínuo de não esquecer."


Mais do que procurar origens fixas ou respostas definitivas, opera com a consciência de que o que está em causa é um processo. Entre a música, a dança e a oralidade, Nara propõe uma prática que se afirma pela persistência com que mantém certas perguntas em aberto: o que pode ser, hoje, um reencontro entre África e Brasil que não ignore as assimetrias nem repita os erros do passado?


A artista admite que essa reconexão não se constrói como retorno ao passado ou tentativa de recomposição identitária. "Sou baiana. Sou do Curuzu." A Bahia, para Nara, é um território concreto onde a presença africana se inscreve no quotidiano com densidade simbólica e força estrutural. “Na Bahia, nós crescemos sabendo que somos africanos. Isso muda tudo.” A consciência dessa herança não elimina, no entanto, a complexidade da distância. “Mesmo sentindo África muito perto, eu reconheço que o que temos aqui é uma síntese, uma sobreposição de várias Áfricas que chegaram ao Brasil e se misturaram. Nunca tivemos o privilégio de manter tudo intacto”, afirma e cita o candomblé, religião de matriz africana, como exemplo prático da africanidade que se vai tentando resgatar e que, mesmo não sendo 100% fiel “ao que ficou”, não deixa de ser uma “forma de existir.”


Ao viajar, procura ajustar o seu tempo ao dos lugares, sem impor-se. “Se vou a Cabo Verde, preciso escutar o sotaque, o silêncio, o ritmo. Porque não é o mesmo que o meu.” A língua, outro lugar de ambivalência, é vivida com consciência crítica e, se por um lado, “a língua portuguesa chegou até nós pela violência”, por outro, é também nela que pensa, escreve e reza. Reconhece o paradoxo sem negá-lo e sublinha “sonhar em português.”


A passagem recente por países como Guiné-Bissau e Cabo Verde aprofundou essa percepção de pertença vs distância. Contou que na Guiné-Bissau lhe deram um nome balanta e que esse gesto, embora simbólico, teve um peso íntimo. "Disseram que eu era balanta. Me deram um nome. E foi muito forte ouvir isso." No entanto, o acolhimento não ofusca a consciência da distância e Nara reconhece o gesto afetivo da nomeação, mas recusa qualquer romantização do reencontro. O modo de estar, de andar, de habitar o mundo não é igual e a diferença, não sendo negativa, antes real e complexa, precisa ser reconhecida com maturidade. "É preciso parar de romantizar. Nós não somos iguais. E isso não é um problema. Isso é parte do que nos permite colaborar de verdade”, explicou.


Nomeada recentemente embaixadora do Projeto Marimba, ao lado de Paulo Flores e Manecas Costa, vê na distinção um reconhecimento do seu trabalho como ponte. O projeto, dedicado à preservação dos instrumentos musicais tradicionais dos países africanos, é também uma forma de inscrever a oralidade e a criação ancestral no registo digital. “O artista pode morrer. A obra fica. E é através dela que resistimos ao apagamento.” Paralelamente, Nara tem levado a sua digressão a diversos palcos internacionais – no dia 5 de julho e a convite de Dino d’Santigo atuou no Jardim de Verão da Gulbenkian -  numa tentativa de amplificar não só a sua voz, mas as vozes de quem atravessa o seu caminho. “Não quero protagonismo. Quero estar com. O palco não é um lugar de hierarquia, mas de comunhão”, sublinha. Atualmente, desenvolve um novo álbum com artistas de cinco países africanos lusófonos, onde a escuta vem antes da voz. "Eu só gravo depois de viver. Depois de sentir. Depois de comer a comida. De ver as crianças. De ver o tempo das pessoas." A vivência anterior à música é assumida como método de alguém que “não quer ocupar, quer colaborar”. A obra, diz-nos,  "é sobre o que eu escuto. É sobre o que eu me permito aprender com quem está ali." 


A postura reflete também a recusa em aceitar o ritmo acelerado e industrializado da arte contemporânea."Eu não produzo uma música em um mês", diz, sem rodeios. O processo criativo exige-lhe escuta, pausa e maturação. "Preciso de silêncio, preciso de tempo, preciso de consulta." E por consulta, entenda-se, - de forma concreta - os seus mais velhos, os seus guias, os seus ancestrais. “Quando começo a compor, eu preciso entender o que os meus passos significam, o que os meus mais velhos diriam, o que o lugar exige.” Para quem vive “no tempo do tempo”, a pressa dá lugar à maturidade e o silêncio é tido como resposta por si só. “Eu pergunto e quando não tenho resposta, eu espero. O silêncio também fala”, prova disso é o seu álbum mais recente, que levou sete anos para ser concluído.

No final da conversa, partilha uma memória que se tornou símbolo do seu destino. “Tenho um sinal na testa. Quando nasci, pensaram que era um tumor. Descobriram que era só um sinal. Anos depois, num jogo de búzios, disseram-me que isso é sinal de quem foi apontada para nascer. Eu acredito nisso.” Dos alto dos seus 1,59cm, como gosta de frisar com ironia, nunca se viu pequena e cresceu com a ideia clara de que a sua missão não se cumpre sozinha, nem se esgota na sua voz “Eu sou só um instrumento. Mas prometi aos meus ancestrais que faria tudo com toda a força que tiver”, conclui.


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