Paraíso em Braga: arte, independências e o desafio de descentralizar a cultura

6 de Setembro de 2025
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Paraíso edição de 2024 | ©Laís Pereira

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“Porque é que se chama Paraíso?” A pergunta abre a conversa com Nuno Abreu, Curador e Coordenador de Comunicação do Theatro Circo e transporta-nos de imediato para o ponto de partida de um festival que regressa a Braga entre 18 e 20 de setembro de 2025. A resposta encontra-se na própria história da arte. Ao longo das suas pesquisas pessoais, Abreu foi reparando que em muitas representações do paraíso apareciam apenas figuras brancas. Essa ausência tornou-se um sinal claro de exclusão e ligou-se ao desejo de criar um espaço onde artistas afrodescendentes pudessem ter visibilidade e onde se trabalhassem de forma direta os temas da afrodescendência. Foi dessa constatação que nasceu o Festival Paraíso, um projeto que este ano se inscreve também na programação de Braga 25 – Capital Portuguesa da Cultura.

A ideia foi sendo amadurecida a partir da experiência de Nuno enquanto programador do Theatro Circo. O contacto com outras estruturas culturais mostrou-lhe que havia uma lacuna evidente na forma como se programava em Portugal. Apesar do número crescente de artistas afrodescendentes, vindos da música, da dança, do teatro ou da investigação, estes continuavam a ter pouca ou nenhuma presença em instituições públicas. “Havia uma força gigantesca que não estava a ser acolhida. As estruturas culturais pertencem a todos, mas não refletiam essa diversidade”, recorda. Foi nesse contexto que decidiu avançar com uma proposta dedicada a essas vozes. Desde a primeira edição, em 2023, contou com a BANTUMEN como parceira responsável pela curadoria do eixo do pensamento. Essa colaboração foi determinante para trazer ao festival investigadores, artistas e debates que ampliam a reflexão crítica e garantem que a programação é construída a partir das próprias comunidades.

A escolha de Braga para acolher o festival também não surgiu por acaso e desde início houve intenção de afirmar o Paraíso fora da capital, algo que o curador considera uma necessidade concreta e urgente. Em Lisboa, a discussão sobre colonialismo e afrodescendência já tinha algum espaço, mas isso não significava que o norte pudesse ser ignorado. A presença do festival em Braga tornou-se assim uma forma de reconhecer a existência de comunidades afrodescendentes na região e de lhes dar palco nas instituições locais. Um estudo do Instituto Nacional de Estatística, recorda, mostrava que apenas 16% dos afrodescendentes da primeira geração vivem a norte. Para si, esse dado não reduz a pertinência do debate, pelo contrário, reforça a importância de levá-lo a outros territórios.

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“É um tema fraturante, com muitas feridas abertas, e a arte é a melhor forma de o abordar”

Nuno Abreu

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Paraíso edição de 2024 | ©Laís Pereira

O Theatro Circo, que serve de base à programação, desempenha um papel central mas também levanta questões de acesso. O edifício é reconhecido como um dos espaços mais imponentes da cidade e essa imponência contribui para que muitas pessoas não se sintam à vontade para entrar. Abreu lembra que, no passado, a existência de um café no teatro tornava-o um espaço mais próximo da população e que a sua ausência acentuou a ideia de distância. “Há quem ache que não é um espaço para elas, seja por motivos económicos ou sociais. O Paraíso procura desconstruir essa ideia e abrir as portas”, afirma. A preocupação com o acesso levou também à utilização de outros espaços da cidade, como o gnration, a Livraria Centésima Página e a Biblioteca Pública, além da ocupação das ruas. O futuro do festival passará cada vez mais por sair das salas tradicionais e encontrar o seu lugar na rua, onde é possível alcançar públicos mais diversos.

A mediação é entendida neste contexto como um dos pilares do festival. A edição de 2025 inclui, por exemplo, uma visita guiada pelo investigador Chisoka Simões, que percorre Braga revelando símbolos coloniais ainda presentes no espaço urbano. São marcas que muitos atravessam diariamente sem reconhecer o seu significado, mas que vistas à luz da investigação expõem a forma como a cidade esteve ligada ao colonialismo. Abreu considera que iniciativas como esta permitem olhar para o espaço de forma diferente e estimulam aprendizagens que vão para além do espetáculo. O trabalho de Simões inscreve-se também num projeto europeu de investigação, o Conciliare, coordenado pela professora Rosa Cabecinhas, da Universidade do Minho, que estuda o património colonial no espaço público e propõe formas de o desconstruir. A ligação académica reforça o caráter crítico da programação e abre o festival a outras redes de colaboração.

O tema escolhido para este ano foi inevitável e centra-se nos cinquenta anos das independências dos PALOP. Depois das comemorações do cinquentenário do 25 de Abril, esta é a outra data incontornável da história portuguesa recente. “É um tema fraturante, com muitas feridas abertas, e a arte é a melhor forma de o abordar”, defende. A programação começa com o documentário Independência (2015), de Fradique, que revisita a luta angolana pela autodeterminação. A escolha deste filme, bem como do debate “E depois da independência? Das lutas de libertação às lutas de hoje”, resulta da curadoria da BANTUMEN no eixo do pensamento. Para Abreu, a inclusão destas propostas tem também uma função pedagógica. “O 25 de Abril não pode ser dissociado das lutas de libertação em África. Grande parte da força que levou à revolução em Portugal começou nas guerras coloniais. Um documentário como o do Fradique ajuda-nos a olhar para a história a partir de outras perspetivas, que muitas vezes são desconhecidas do público português.”

A ópera Adilson, criada por Dino D’Santiago, que segue para norte a 19 de setembro, depois da estreia no Centro Cultural de Belém a 12 de setembro, traz outra leitura artística sobre a memória. A música marca também presença, com a estreia em Braga da histórica Banda Monte Cara e com o concerto de Fidju Kitxora, que apresenta o projeto Racodja. Paralelamente, as Conversas do Paraíso juntam investigadores e moderadores para discutir os legados das independências e a forma como estes continuam a atravessar os dias de hoje.

“O 25 de Abril não pode ser dissociado das lutas de libertação em África. Grande parte da força que levou à revolução em Portugal começou nas guerras coloniais”


Nuno Abreu

As edições anteriores mostraram que o festival precisava de se enraizar mais no território onde acontece. “Percebemos que era importante integrar mais artistas e investigadores locais. Não se trata apenas de trazer nomes nacionais ou internacionais, o Paraíso tem de dialogar com o lugar em que acontece”, afirma Abreu. Outra aprendizagem foi a necessidade de garantir continuidade no sentido de assegurar que o festival não se restringe apenas a três dias por ano. “Queremos criar residências artísticas, ações distribuídas ao longo do calendário, cruzamentos entre disciplinas e geografias. Só assim conseguimos aproximar as comunidades das instituições culturais”, acrescenta. O curador admite que existe atualmente a sensação de vazio entre edições, como se tudo se concentrasse em setembro. A intenção é precisamente contrariar essa perceção e fazer com que o Paraíso seja um ponto alto de um trabalho desenvolvido ao longo de todo o ano.

À ambição de continuidade junta-se também com o momento político que atravessa o setor cultural em Portugal. Nuno sublinha que o trabalho de programação terá de ser ainda mais sólido para resistir a leituras simplistas que procuram enquadrar a cultura em categorias ideológicas rígidas. O Paraíso, diz, deve crescer como espaço de desconstrução artística e crítica, capaz de oferecer alternativas a discursos que tendem a reduzir a complexidade da cultura a slogans.

Quando se coloca a questão de como avaliar o impacto de um evento desta natureza, responde que não existe uma métrica única. O sucesso mede-se pela conjugação de vários fatores, desde a adesão do público à repercussão mediática e digital, mas sobretudo pela forma como quem participa leva consigo novas referências e novas perguntas. Para o curador, o mais relevante não são os números em si, mas o efeito da partilha e da reflexão nos encontros que o festival proporciona.

Entre cinema, música, conversas e caminhadas pela cidade, o Paraíso de 2025 procura abrir espaço a leituras plurais da história e a novas possibilidades de futuro. E se tivesse de resumir a essência do projeto, Nuno Abreu formula-a baseado na certeza de que “Programar com os outros, e não apenas para os outros, é talvez o objetivo mais importante.

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