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Entre os dias 18 e 20 de setembro de 2025 acompanhei em Braga a terceira edição do Festival Paraíso. Foram três dias em que a cidade se tornou espaço de encontro entre arte, política, memória e pensamento, atravessada pelas comemorações dos cinquenta anos das independências africanas e pelo prolongamento das celebrações do 25 de Abril. A programação esteve organizada em torno de três eixos; performance, pensamento e mediação, e distribuiu-se pelo Theatro Circo, pelo gnration, pela Livraria Centésima Página, pela Biblioteca Municipal e pelas próprias ruas. Nada foi pensado ao acaso; tudo foi concebido como oportunidade de interrogar o passado e o presente, de dar voz a artistas afrodescendentes e de inscrever a cidade na reflexão sobre o que ainda permanece do império e das lutas de libertação.
Na noite de quinta-feira, 18 de setembro, o gnration recebeu a sessão inaugural. Foi exibido Independência, documentário de 2015 realizado por Fradique (Mário Bastos) e produzido pela Geração 80, com argumento assinado em colaboração com Paulo Lara e Maria da Conceição Neto. A obra, com cerca de cento e cinco minutos, resulta de dezenas de entrevistas a combatentes da luta angolana, a ex-presos políticos e a protagonistas anónimos, cruzadas com fotografias, jornais, cartas e outros registos de arquivo. O filme compôs uma polifonia de memórias individuais que, em conjunto, revelam a complexidade da luta de libertação e da transição para a independência a 11 de novembro de 1975. Nomes como Jonas Savimbi, Mário Pinto de Andrade e outros percursores da UNITA e do MPLA aparecem ao longo da trama, espelhando as nuances de um processo de libertação que também se fez fora de fronteiras. Lá e cá, na então Metrópole com a Casa de Estudantes do Império a servir como cenário, as lutas eram pautadas por uma visão progressista assente na soberania popular. A escolha desta sessão, curada pela BANTUMEN, como abertura do festival funcionou como o gesto claro de começar pelo testemunho direto das lutas anticoloniais e fazer dele chave de leitura para o resto da programação.
Na tarde seguinte, sexta-feira, 19 de setembro, às dezoito horas, a Livraria Centésima Página foi ocupada pela primeira mesa de conversas do festival, com o título E depois da independência? Das lutas da libertação às lutas de hoje. Sheila Khan, Tiago Vieira da Silva e Marta Machado, moderados por mim, prolongaram o eco da sessão da véspera. O debate percorreu os desafios dos novos Estados africanos, a forma como as independências foram vividas e narradas em Portugal e as continuidades de desigualdade e exclusão que atravessam o presente. A livraria, normalmente lugar de silêncio, tornou-se espaço de reflexão partilhada, com um público que ia de estudantes universitários a leitores habituais e curiosos locais. Foi talvez aqui que se percebeu mais claramente a intenção do festival: juntar saber académico, experiência pessoal e criação artística para recolocar a memória colonial no centro da vida cultural.
À noite, às vinte e uma e trinta, o Theatro Circo recebeu a ópera Adilson, de Dino D’Santiago. A obra, encomenda da BoCA – Bienal de Artes Contemporâneas, foi apresentada em Braga depois de se estrear no Centro Cultural de Belém. Durante cerca de cem minutos, em cinco atos, construiu-se em palco a história de Adilson Correia Duarte, nascido em Angola, filho de cabo-verdianos, residente em Portugal desde bebé, que ao longo de mais de quarenta anos nunca viu reconhecida a sua cidadania portuguesa. O libreto de Rui Catalão dramatizou esse percurso de identidades fragmentadas - D’afonsa entre amigos, Nuno na família, Adilson nos documentos -, marcadas pela repetição de processos adiados, pela espera e pela invisibilidade burocrática. A música, assinada por Dino D’Santiago em colaboração com Djodje Almeida, foi interpretada por uma orquestra juvenil reforçada por músicos da Sinfónica Juvenil de Lisboa, da Sinfonietta de Braga, com direção de Martim Sousa Tavares e arranjos de João Martins. No elenco vocal estiveram Michelle Mara, Cati, NBC, Soraia Morais, Koffy, Rebeca Reinaldo e Rúben Gomes. A cenografia de Pedro Azevedo, a luz de Rui Monteiro, o som de Bruno Lobato e o guarda-roupa de José António Tenente completaram a produção. A frase final “Eu não sou português. Eu sou Portugal. Um país à espera” condensou a dimensão simbólica de toda a obra. Não era apenas a história de um homem, mas a representação de um problema coletivo, exposto num palco de ópera como denúncia e como afirmação de pertença.
O sábado de manhã trouxe o festival para o espaço público. Às dez e meia, Chisoka Simões conduziu a visita guiada O Império Ainda Mora Aqui? Memórias, marcas e caminhos da descolonização em Braga. Durante duas horas e meia, percorremos ruas e praças, observando elementos da cidade que a rotina tende a naturalizar. A estátua dos Irmãos Roby que celebra dois bracarenses envolvidos em campanhas coloniais em África, foi um dos exemplos analisados. Símbolos como a esfera armilar surgiram repetidamente em fachadas, recordando o imaginário dos “descobrimentos” e a sua permanência até ao presente. Braga, tantas vezes apresentada apenas como cidade religiosa e barroca, revelou-se também como espaço de inscrição colonial, a partir do qual partiram missionários e onde se perpetuaram representações imperiais. A visita representou uma leitura do espaço urbano enquanto arquivo vivo de um passado que não desapareceu com a independência das colónias.
Às dezassete horas, já de novo no gnration, realizou-se a segunda conversa do programa, Memórias anoitecidas (Quantos mundos há numa biblioteca, para parir o sol?). O artista e investigador Ruben Zacarias apresentou o trabalho que desenvolveu em residência na Biblioteca Municipal de Braga, em diálogo com a investigadora Rosa Cabecinhas. A conversa deteve-se na forma como arquivos e bibliotecas funcionam simultaneamente como lugares de preservação e de esquecimento. Foram evocados documentos riscados, registos não catalogados, histórias guardadas em silêncio. A reflexão mostrou como a decisão sobre o que se arquiva, o que se expõe e o que se oculta é sempre um ato político, com impacto na construção das memórias coletivas.
À noite, o festival encerrou com música. Às vinte e uma e trinta, a Banda Monte Cara apresentou-se no gnration. O nome remete para o clube fundado por Bana em Lisboa em 1976, espaço de referência da música africana em Portugal, e o concerto trouxe essa herança ao presente. O repertório, marcado pelas mornas e funanás cabo-verdianas, foi apresentado em versão renovada, com arranjos contemporâneos. A sala encheu-se de dança e de celebração, num ambiente em que a memória da diáspora se transformou em experiência coletiva. Não muito tempo depois, subiu ao palco Fidju Kitxora, coletivo criado entre Lisboa e Cabo Verde. O concerto apresentou Racodja, trabalho editado em 2024, construído com gravações de campo, camadas vocais sobrepostas, spoken word e batidas fragmentadas que atravessaram hip-hop, dub e eletrónica experimental. O público foi envolvido por uma paisagem sonora, que funcionou como homenagem às vozes da diáspora cabo-verdiana e como afirmação de uma estética contemporânea, em diálogo com tradições mas assumidamente projetada para o futuro.
No final destes três dias, Braga tinha sido atravessada por cinema, debates, ópera, visitas, arquivos e música. Ao longo da programação, a cidade revelou as suas marcas coloniais, as salas de espetáculo acolheram narrativas invisibilizadas e as bibliotecas abriram-se como espaços de disputa da memória. O regresso constante ao Paraíso, de sessão em sessão, foi também um apelo à consciência de que a cultura pode ser instrumento de crítica e de transformação. Voltar quantas vezes forem necessárias é, afinal, a única forma de impedir que as histórias e as vozes que aqui se ouviram sejam novamente silenciadas.
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