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Fala com a tranquilidade de quem já ouviu muito e com a urgência de quem já viu demais ser esquecido. Paulo Lobo Linhares é produtor musical, crítico atento à história sonora de Cabo Verde e diretor artístico da InSulada, uma editora que se dedica à distribuição, produção, agenciamento e encontros musicais com base nas sonoridades menos comerciais do arquipélago.
Nascido numa família com tradição musical, Paulo cresceu entre referências cabo-verdianas, mas foi em Portugal que começou a sua jornada profissional na música. “Passei por tudo”, diz. Da produção à curadoria de lojas de discos, foi construindo um percurso que o aproximava cada vez mais da criação sonora e da pesquisa cultural. Mas o regresso a Cabo Verde era inevitável, tanto por uma inquietação identitária como por uma urgência política: fazer da música um instrumento de memória, resistência e transformação.
Ao regressar ao país, Paulo trocou os estúdios lisboetas pela construção de um projeto de raiz: a editora InSulada. Com quase uma década de existência, a editora afirma-se como um espaço de experimentação, documentação e reinterpretação da música cabo-verdiana não comercial. “Fundámos a InSulada para trabalhar a música que não está nos tops. Aquela que tem história, mas que muitas vezes é tratada como coisa do passado. A música que não foi feita para vender, mas para viver”.
Para Paulo, a definição de “tradicional” não se limita a géneros consagrados como a morna ou o funaná. O seu entendimento é mais profundo e abrange práticas ancestrais que nasceram da necessidade, da opressão, da criatividade dos que ficaram com pouco ou quase nada. “Quando nos foram tirando os instrumentos, fomos inventando outros. O batuque feito com o corpo, o ferrinho improvisado, a gaita que virou melodia de resistência. Isso também é música cabo-verdiana. E precisa de ser respeitada”.
É essa sonoridade que a InSulada quer preservar e reinventar, apostando em artistas que recusam o caminho fácil do mainstream, e que preferem mergulhar nas raízes para encontrar novas formas de expressão.
Paulo Lobo Linhares faz questão de reforçar: o problema não está na falta de talento. Está na forma como o sistema cultural, interno e externo, gere o acesso às oportunidades. “É ótimo que figuras como o Dino D’Santiago ou a Mayra Andrade abram portas. Mas temos de olhar para quem está cá, para quem está a criar todos os dias com poucos meios e pouca visibilidade. Se não há estrada que ligue essas portas abertas ao que se faz nas ilhas, ficamos sempre com os mesmos nomes em destaque, e o resto na prateleira”.
É uma crítica recorrente: a dependência da validação externa para legitimar artistas locais. As instituições culturais e políticas preferem apostar em nomes que já circulam na Europa, esquecendo os que trabalham a partir de dentro. “É mais barato apoiar alguém que já tem aceitação lá fora do que investir numa carreira a partir do zero”, resume.
Este desequilíbrio resulta num paradoxo. Cabo Verde é uma das culturas africanas mais presentes em Portugal, mas continua a ser tratada como produto de exportação. A música cabo-verdiana é celebrada, desde que seja exótica, dançável, vendável. Não como indústria, nem como pensamento.
Para ilustrar o apagamento das contribuições fundamentais à música do país, Paulo cita Bulimundo, um dos grupos mais importantes na evolução do funaná contemporâneo. Com entusiasmo quase académico, descreve como a banda conseguiu transformar instrumentos tradicionais em linguagem de banda de palco: “O ferrinho virou tarola. A gaita virou baixo. Eles transcreveram sons de raiz para instrumentos modernos. Criaram uma ponte entre o passado e o presente com um rigor que devia ser estudado em escolas de música”.
Mas, em vez disso, os Bulimundo são pouco lembrados. A nova geração conhece pouco, ou nada, do impacto que tiveram. “Essa história não está a ser contada. E quando o passado não é contado, o futuro torna-se cópia mal feita.” Paulo defende que o problema é estrutural. Falta acervo, falta documentação, faltam entrevistas, documentários, livros que expliquem como se fez, quem fez e porquê. A ausência de uma política de memória musical deixa o país vulnerável à superficialidade e à repetição.
Paulo Lobo Linhares
Ao falar sobre apropriação cultural, Paulo é frontal. Identifica um ciclo vicioso em que criadores africanos e afrodescendentes acabam por ceder aos moldes europeus para obter algum reconhecimento, mesmo que simbólico ou mal pago. “Há uma apropriação enorme sobre nós. E muitas vezes somos nós que a permitimos, porque é a única forma de entrar no circuito. Cedemos por pouco, porque sabemos que os lucros grandes nunca vão ser nossos”.
Essa cedência, segundo Paulo, não acontece apenas no plano financeiro, mas também na linguagem, na estética, no som. A música africana, para ser exportável, tem de ser transformada, diluída, embrulhada num pacote que agrade aos ouvidos do mercado europeu.
Por isso, para ele, o verdadeiro desafio é político: como resistir a essa moldagem cultural? A resposta está nas alianças. “Temos de criar redes entre nós. Praia, Luanda, Maputo, São Tomé. Não precisamos de um intermediário europeu para nos conectarmos”.
E sobre a importância de transportarmos a cultura na linha do tempo: “Não conseguimos fazer o futuro se não compreendermos o passado”. É uma das frases que repete com mais insistência. Paulo acredita que a desvalorização do passado musical cabo-verdiano é uma forma de violência simbólica. Quando não conhecemos a origem de um ritmo, não entendemos a força que ele carrega. Quando não sabemos quem inventou um estilo, estamos a dar créditos a quem chegou depois. “A nova geração precisa de saber de onde vem. Não basta ouvir o beat. É preciso saber o que está por trás. O que foi feito para aquele som existir. Isso muda tudo”.
Para o diretor artístico, a educação musical não é um luxo: é uma necessidade estratégica. Propõe a criação de arquivos sonoros, programas escolares, festivais que tragam ao palco os que fizeram história, sem esperar que seja a Europa a valorizar primeiro.
O seu trabalho com a InSulada já se tem cruzado com essa missão: promover encontros musicais intergeracionais, fazer gravações de campo com músicos mais velhos, resgatar arranjos quase perdidos, e abrir espaço para artistas que têm algo novo a dizer com o peso da tradição nas costas.
Paulo Lobo Linhares
Ao refletir sobre a integração cultural entre os países africanos lusófonos, Paulo lamenta a falta de um circuito próprio. “Há um potencial enorme. Temos públicos festivos, temos juventude, temos estética. Mas falta-nos estrutura, políticas culturais comuns e sobretudo vontade política para agir fora da lógica da dependência”.
Cita o exemplo de como projetos de intercâmbio artístico têm sido quase sempre liderados ou financiados por instituições europeias. “Não é mau ter apoio. Mas por que é que não há uma rede africana para isso? Por que é que não há uma plataforma que una criadores de Angola, Cabo Verde, Moçambique e Guiné-Bissau sem que seja Portugal a fazer o convite?”
Acredita que a resposta está em nós. E, por isso, insiste: é preciso teimosia. É preciso juntar músicos, jornalistas, produtores e promotores culturais para desenhar alternativas que não passem pela cedência, mas pela criação de novas linguagens, modelos e narrativas.
A visão de Paulo Lobo Linhares transcende a música. Para ele, cultura é política e, por isso, afirma que “a cultura não é só festa. É estratégia, é poder, é território”. É o que permite a um povo existir para além do seu mapa. É o que resiste ao apagamento, à assimilação, ao exílio simbólico. E é por isso que insiste em falar, produzir, arquivar e provocar. “Enquanto continuarmos a tratar a música só como festa, não vamos sair do mesmo lugar. Precisamos de tratar a cultura como estratégia, como poder, como território simbólico. E a música é o melhor lugar para começar”.
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