Pocas Pascoal e o cinema como modo de habitar a memória e desafiar o esquecimento

24 de Novembro de 2025
Pocas Pascoal entrevista
DR

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Entre Angola, França e Portugal, a realizadora reflete sobre memória, exílio e o olhar negro no cinema. O seu percurso é o espelho de uma luta persistente por representação, justiça e liberdade criativa.


O percurso de Pocas Pascoal começa atrás de uma câmara e prolonga-se num gesto que é, em si mesmo, político, moldado pela persistência e pela necessidade de criar espaço num território que durante muito tempo lhe foi vedado. Nascida em Luanda, em 1963, e forçada a deixar Angola aos dezasseis anos por causa da guerra civil, tornou-se a primeira mulher a trabalhar como operadora de câmara na Televisão Angolana, ainda jovem, num tempo em que a técnica do olhar parecia reservada aos homens. Anos mais tarde, já em França, aprofundou a relação com a imagem e encontrou na montagem um modo de pensar o cinema por dentro, uma forma de organizar o mundo através da precisão. Estudou no Conservatoire Libre du Cinéma Français, em Paris, e integrou o grupo de artistas residentes da Cité internationale des arts. Passou quinze anos entre planos e cortes até perceber que queria contar as suas próprias histórias, e foi então que se estreou na realização, reunindo na criação aquilo que antes se dividia entre o trabalho técnico e o desejo de expressão.

O impulso de criar levou-a, em 1998, à sua primeira curta-metragem, e, alguns anos mais tarde, à realização de Por Aqui Tudo Bem (2011), também conhecido como Alda e Maria, a sua primeira longa-metragem de ficção. A obra, que regressa agora à Mostra de Cinema do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, marcou a afirmação de um olhar autoral centrado nas experiências do exílio e da sobrevivência. Mais do que um reencontro com o público, a exibição numa instituição deste peso simboliza a entrada de um cinema negro, feito a partir de dentro, num espaço historicamente distante dessas vozes. O filme acompanha duas irmãs angolanas que fogem da guerra e tentam sobreviver em Lisboa, no início dos anos 1980, numa cidade que é refúgio e fronteira, lugar de exclusão e de possibilidade. “É um filme que não envelhece, porque fala do exílio e da imigração. São temas que continuam presentes.” A história, construída a partir de fragmentos da própria juventude, tornou-se uma metáfora da diáspora e da persistência em nomear o que tantas vezes se omite. A obra valeu-lhe distinções internacionais em festivais como o FESPACO e o Los Angeles Film Festival, consolidando o seu nome entre as vozes mais relevantes do cinema africano contemporâneo.



Ao longo do seu repertório, o gesto de filmar confunde-se com o de resistir, e o cinema passa a ser extensão de uma luta por existência. A guerra, a travessia e o exílio atravessam as suas narrativas sem hierarquia entre o pessoal e o histórico, porque ambos se alimentam mutuamente. Pocas fugiu de Angola em busca de sobrevivência e encontrou em Portugal as mesmas desigualdades que conhecia do outro lado do mar, onde o passado colonial permanecia nas ruas e nos gestos. “Constatei as desigualdades e percebi que a história da colonização permanecia muito presente à minha volta. Não podia falar de uma coisa sem falar da outra.” Da experiência pessoal nasceu a consciência de que o cinema podia funcionar como um espaço de restituição, não apenas  como memória, mas também como reparação simbólica, dando lugar a histórias contadas por quem as viveu.

O olhar da realizadora não se confunde com o de quem observa à distância, porque nasce da experiência e da emoção de quem conheceu a guerra, o deslocamento e o racismo, e aprendeu a traduzir essas vivências em imagens que carregam o peso da história. “Quando não se vive uma história, há sempre uma distância no olhar. Pode haver imaginação e técnica, mas falta a emoção que vem da experiência.” É essa proximidade ao vivido que dá longevidade às suas obras e que faz com que Alda e Maria, com mais de uma década, continue a circular pelo mundo e a ser debatido em universidades e festivais, talvez porque traduz algo que resiste ao tempo - a necessidade de existir em cena.

A ideia de casa, física e emocional, atravessa toda a sua filmografia e prolonga a inquietação de quem vive entre geografias. A guerra separou-a do país onde nasceu e o tempo consolidou a distância, transformando a ausência num tema recorrente. “A pior coisa é perder todas as ligações culturais e familiares. Nunca se volta a encontrar o mesmo lugar. Quando voltamos, também já não é igual. Os países mudam, as pessoas mudam.” Quarenta anos depois, vive entre Angola e França, dividida entre pertenças que se tocam mas não se sobrepõem. “Continuo a sentir-me angolana, mas também francesa. Quando estou em Angola, sinto-me desenraizada. Este sentido de casa não regressa.” A distância, contudo, converteu-se em matéria criativa e em possibilidade de olhar. “É uma dor, mas também uma riqueza. A convivência entre culturas dá-me outra perspetiva. O meu imaginário é feito do que ficou e do que encontrei.”

O equilíbrio entre criação e sobrevivência tem marcado o modo como trabalha, num percurso frequentemente condicionado pela falta de apoio institucional. Durante anos trabalhou sem estruturas de apoio nem financiamento consistente, desenvolvendo um percurso persistente e atento às circunstâncias em que o cinema é produzido. “Os financiamentos são decididos por júris compostos maioritariamente por pessoas brancas e, muitas vezes, sem mulheres. Há travões quando o projeto vem de realizadores negros. Lê-se o projeto e, antes de se ver o lado artístico, vê-se a cor da pele.” As palavras, apesar da crítica, são ditas com a serenidade de quem vê na nova geração de realizadoras tempos menos sombrios do que aqueles em que começou. “Vejo mulheres negras em grandes festivais, como Alice Diop ou Denise Fernandes. As norte-americanas conquistaram mais visibilidade, mas nós continuamos a lutar para existir”, afirma numa alusão ao momento atual do setor.

A memória e a história coletiva formam o centro de um trabalho que também se constrói nas experiências de quem o produz. “Vivi durante a colonização, assisti ao sofrimento da minha família e depois vivi o exílio. Tudo isso está presente no meu cinema”, afirma, acrescentando que vê a reminiscência como um modo de corrigir o que foi contado de forma incompleta. “A história está mal contada, ou não é contada como deve ser. Em Portugal, existe uma visão romantizada da colonização. O cinema pode ajudar a recontar essa realidade e a provocar reflexão.” No seu entendimento, o cinema é uma forma de consciência e, por isso, inevitavelmente político. “Para mim, cinema só pode ser político. É o meio que tenho para denunciar o que acontece na sociedade onde vivo.” O gesto, porém, não se esgota na denúncia e filmar é uma forma de deslocar o olhar do espectador e de devolver-lhe a complexidade das histórias. “A intenção é fazer com que as pessoas pensem sobre o que veem. Mostrar que há realidades contadas apenas de um ponto de vista. É necessário abrir espaço ao outro.”

O exílio moldou a sua forma de ver e de filmar, permitindo-lhe observar o mundo a partir de dois lugares. Essa dupla pertença tornou-se motor de um olhar que interroga o modo como Portugal continua a lidar com o seu passado colonial. “Não vejo muitos filmes portugueses que retratem a experiência negra ou a colonização. Há exceções, mas continuam a ser raras. Falta olhar para a história a partir de quem foi afetado por ela.”

Quando fala sobre o reconhecimento do cinema africano e das vozes negras, é pragmática e admite que “tudo começa pelo financiamento. Ninguém faz bons filmes sem apoio. É preciso incluir pessoas negras nos júris e ter um olhar diferente sobre os projetos.” Alega que apesar da representatividade institucional definir o tipo de narrativas que chegam ao público e a forma como são recebidas, “há muitos filmes sobre África realizados por europeus, e isso pode acontecer, mas é necessário equilíbrio. Há público para ver cinema feito por africanos, pessoas interessadas em conhecer outras perspetivas e comunidades que querem ver como são representadas.”

Nos últimos anos, tem explorado o documentário como extensão natural da sua prática artística. Em Sopro (2021), distinguido com o Prémio Árvore da Vida no IndieLisboa, regressa à memória e à reconstrução das ausências, reafirmando o cinema como gesto de lembrança e gesto de futuro.

A apresentação de Alda e Maria na Gulbenkian tem, por isso, um significado que ultrapassa a exibição. Representa a abertura de um espaço simbólico para um cinema negro que raramente é mostrado em contextos institucionais, e a possibilidade de rescrever as relações entre quem filma e quem é filmado. “É importante que uma instituição como a Gulbenkian promova uma mostra de cinema negro. Significa abertura e reconhecimento. Espero que continue, porque há espaço e curiosidade para estas narrativas.”

O percurso de Pocas Pascoal reflete uma vida feita de deslocações e permanências onde filmar tornou-se a forma de compreender o que muda e o que persiste, de fixar no ecrã as vozes que o tempo afastou. “Não posso falar de uma coisa sem falar da outra.” É entre  esses dois mundos que o seu cinema se afirma, construindo um cinema que restitui visibilidade às histórias que o tempo tentou apagar e transforma o entrelugar num espaço de criação e de permanência.

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