“O coletivo é mais forte do que qualquer dor individual”, Alcides Estrela e a forma como tem transformado Chelas através do Surfskate

18 de Julho de 2025
Alcides Estrela entrevista
Alcides Estrela, fundador da Sk8 Brothers

Partilhar

No centro de Chelas, um bairro frequentemente associado a estigmas sociais e dificuldades económicas, o Skate Park emerge hoje como um espaço de encontro e transformação, graças ao trabalho desenvolvido por Alcides Estrela. Através do Sk8 Brothers, projeto que lidera, o agente cultural tem vindo a criar uma realidade onde o surfskate serve de ponte entre pessoas de origens sociais, culturais e económicas distintas, diluindo barreiras e promovendo a inclusão.

O que começou por ser uma ideia de negócio rapidamente revelou-se algo muito mais abrangente. No primeiro dia em que conduziu as suas aulas no skatepark, percebeu que aquela ligação com a comunidade de Chelas não era passageira e que o bairro, apesar das dificuldades e dos preconceitos que enfrenta, tinha nas suas gentes uma força e uma resistência humanas que o impressionaram e o cativaram. A partir desse momento, tornou-se claro que queria permanecer e investir naquele espaço.

Essa escolha rapidamente se traduziu na forma como o skatepark passou a ganhar vida. Ali, o ambiente revela-se transformador, não apenas pelo desporto em si, mas pela possibilidade de reunir mundos aparentemente distantes. Movidos pelo mesmo amor por uma tábua de skate, ali é comum assistir a encontros improváveis, onde um advogado de uma grande sociedade lisboeta partilha o mesmo espaço com jovens em situação vulnerável, alguns deles a enfrentar problemas básicos como a falta de alimentação. Estas partilhas espontâneas são um testemunho da capacidade do skatepark para criar pontes de entendimento e empatia. “Ali, o que desaparece são as hierarquias”, observa. “Não há estatuto quando alguém cai e outro vai lá levantar. Essa horizontalidade é transformadora”, explica Alcides.

Apesar de não ter nascido nem crescido em Chelas, a presença de Alcides foi sendo construída com respeito e escuta ativa. Evitou impor-se e, ao invés disso, posicionou-se como alguém que quer somar ao que já existe. Hoje, a relação com a comunidade é de proximidade e confiança mútua, alicerçada na regularidade da sua presença e na forma como valoriza os parceiros locais. “Eu estou aqui como aliado, não como salvador. Há pessoas que fazem trabalho real há anos. Eu só estou a usar o skate como ferramenta”, sublinha ao reconhecer que o verdadeiro trabalho no terreno é feito por quem vive no bairro todos os dias. Figuras como Nuno Varela, da Associação Kriativu, Sam The Kid, do coletivo Chelas é o Sítio, e Maria, da Batica Amigo, pessoas e organizações com quem colabora de forma estreita. “Eles é que fazem o trabalho a sério”.

É esse paralelo entre escuta e ação que serve de base à dimensão social do projeto, acabando por se refletir em iniciativas como o “Skate e Cachupa”, evento que combina a prática desportiva com momentos de convívio e celebração comunitária. Este ano, durante a edição realizada a 25 de Abril, crianças, adultos e pessoas de diversas origens étnicas e sociais juntaram-se num ambiente de festa e partilha, evidenciando a importância destas iniciativas para a promoção da inclusão e da diversidade, algo que para Estrela é  exemplo vivo do impacto positivo que o skate pode ter numa comunidade.

PUBLICIDADE

universal cubita

Andei anos com um BI que dizia ‘residente estrangeiro’. E eu nasci aqui. Isso mexe contigo, na forma como te vês

Alcides Estrela

Os eventos acabam por trazer uma nova dinâmica à zona, mas é nas aulas regulares que se encontra o verdadeiro pulsar do Sk8 Brothers. As sessões decorrem exclusivamente no skatepark de Chelas e estão abertas a todas as idades, dos “6 aos 66+”. Ao contrário de outras escolas que circulam entre vários locais, o projeto mantém-se enraizado no bairro, numa escolha deliberada que visa fortalecer os laços comunitários. A metodologia é marcada por uma abordagem onde se trabalha o equilíbrio, a concentração e a superação do medo, mas também a confiança, a escuta e o apoio mútuo. “Às vezes, o skate é só o pretexto. O que realmente acontece ali é que a pessoa sai diferente de como entrou”, conta. “Quando alguém vence o medo de cair, percebe que é capaz de enfrentar outras quedas na vida.”

Por detrás deste trabalho está uma trajetória pessoal que ajuda a compreender o seu compromisso e paixão. Alcides nasceu em Angola, filho de pais cabo-verdianos, e cresceu na Moita, junto ao Tejo. Desde muito jovem, enfrentou perdas familiares significativas, com a morte dos pais ainda durante a infância, uma circunstância que moldou o seu percurso. “Éramos sete irmãos. Ficámos sozinhos, mas nunca nos deixámos cair. Isso ensinou-me que o coletivo é mais forte do que qualquer dor individual.”

A experiência de viver grande parte da sua vida com documentos estrangeiros, sem nacionalidade portuguesa, influenciou não só as suas possibilidades práticas, mas também a construção da sua identidade. O sentimento de pertença dividida entre várias culturas - sem se sentir totalmente integrado em nenhuma delas - ofereceu-lhe uma perspetiva particular sobre as complexidades da inclusão. “Andei anos com um BI que dizia ‘residente estrangeiro’. E eu nasci aqui. Isso mexe contigo, na forma como te vês, mas também na forma como os outros te olham.”

Alcides Estrela entrevista

DR

Antes de abraçar o surfskate como missão, construiu um percurso profissional diversificado. Trabalhou durante doze anos no setor bancário, na Caixa Geral de Depósitos, e mais tarde tornou-se comissário de bordo na TAP. A pandemia obrigou-o a repensar o caminho, e foi nesse momento de pausa que descobriu no skate não apenas uma atividade física, mas uma via para comunicar, incluir e cuidar. “Foi quando tudo parou que percebi que podia começar de novo e começar diferente.”

Aos 35 anos, numa altura em que muitos abrandam o ritmo, encontrou no surfskate um ponto de partida. Percebeu que não era apenas um desporto, mas uma linguagem com potencial transformador, capaz de gerar sentido comunitário e pertença. Conciliar essa missão com a exigência dos turnos na aviação continua a ser um desafio, mas a convicção no valor do que faz sustenta o esforço. “Eu voo para pagar as contas. Mas o que me dá chão é o que faço ali em Chelas.”

Olhando para o futuro, sonha com a expansão do projeto para outras comunidades e com o crescimento dos eventos sociais que organiza, como o “Skate e Cachupa”, esperando que se tornem verdadeiros festivais capazes de envolver mais pessoas e derrubar ainda mais barreiras. Quando lhe perguntam qual é a essência do seu trabalho, responde sem hesitação que usa “o skate como desculpa para criar encontros, escuta e empatia. A técnica vem depois. O mais importante é criar espaço para o outro existir”, concluiu.

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para redacao@bantumen.com.

bantumen.com desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile