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No centro de Chelas, um bairro frequentemente associado a estigmas sociais e dificuldades económicas, o Skate Park emerge hoje como um espaço de encontro e transformação, graças ao trabalho desenvolvido por Alcides Estrela. Através do Sk8 Brothers, projeto que lidera, o agente cultural tem vindo a criar uma realidade onde o surfskate serve de ponte entre pessoas de origens sociais, culturais e económicas distintas, diluindo barreiras e promovendo a inclusão.
O que começou por ser uma ideia de negócio rapidamente revelou-se algo muito mais abrangente. No primeiro dia em que conduziu as suas aulas no skatepark, percebeu que aquela ligação com a comunidade de Chelas não era passageira e que o bairro, apesar das dificuldades e dos preconceitos que enfrenta, tinha nas suas gentes uma força e uma resistência humanas que o impressionaram e o cativaram. A partir desse momento, tornou-se claro que queria permanecer e investir naquele espaço.
Essa escolha rapidamente se traduziu na forma como o skatepark passou a ganhar vida. Ali, o ambiente revela-se transformador, não apenas pelo desporto em si, mas pela possibilidade de reunir mundos aparentemente distantes. Movidos pelo mesmo amor por uma tábua de skate, ali é comum assistir a encontros improváveis, onde um advogado de uma grande sociedade lisboeta partilha o mesmo espaço com jovens em situação vulnerável, alguns deles a enfrentar problemas básicos como a falta de alimentação. Estas partilhas espontâneas são um testemunho da capacidade do skatepark para criar pontes de entendimento e empatia. “Ali, o que desaparece são as hierarquias”, observa. “Não há estatuto quando alguém cai e outro vai lá levantar. Essa horizontalidade é transformadora”, explica Alcides.
Apesar de não ter nascido nem crescido em Chelas, a presença de Alcides foi sendo construída com respeito e escuta ativa. Evitou impor-se e, ao invés disso, posicionou-se como alguém que quer somar ao que já existe. Hoje, a relação com a comunidade é de proximidade e confiança mútua, alicerçada na regularidade da sua presença e na forma como valoriza os parceiros locais. “Eu estou aqui como aliado, não como salvador. Há pessoas que fazem trabalho real há anos. Eu só estou a usar o skate como ferramenta”, sublinha ao reconhecer que o verdadeiro trabalho no terreno é feito por quem vive no bairro todos os dias. Figuras como Nuno Varela, da Associação Kriativu, Sam The Kid, do coletivo Chelas é o Sítio, e Maria, da Batica Amigo, pessoas e organizações com quem colabora de forma estreita. “Eles é que fazem o trabalho a sério”.
É esse paralelo entre escuta e ação que serve de base à dimensão social do projeto, acabando por se refletir em iniciativas como o “Skate e Cachupa”, evento que combina a prática desportiva com momentos de convívio e celebração comunitária. Este ano, durante a edição realizada a 25 de Abril, crianças, adultos e pessoas de diversas origens étnicas e sociais juntaram-se num ambiente de festa e partilha, evidenciando a importância destas iniciativas para a promoção da inclusão e da diversidade, algo que para Estrela é exemplo vivo do impacto positivo que o skate pode ter numa comunidade.
Andei anos com um BI que dizia ‘residente estrangeiro’. E eu nasci aqui. Isso mexe contigo, na forma como te vês
Alcides Estrela
Os eventos acabam por trazer uma nova dinâmica à zona, mas é nas aulas regulares que se encontra o verdadeiro pulsar do Sk8 Brothers. As sessões decorrem exclusivamente no skatepark de Chelas e estão abertas a todas as idades, dos “6 aos 66+”. Ao contrário de outras escolas que circulam entre vários locais, o projeto mantém-se enraizado no bairro, numa escolha deliberada que visa fortalecer os laços comunitários. A metodologia é marcada por uma abordagem onde se trabalha o equilíbrio, a concentração e a superação do medo, mas também a confiança, a escuta e o apoio mútuo. “Às vezes, o skate é só o pretexto. O que realmente acontece ali é que a pessoa sai diferente de como entrou”, conta. “Quando alguém vence o medo de cair, percebe que é capaz de enfrentar outras quedas na vida.”
Por detrás deste trabalho está uma trajetória pessoal que ajuda a compreender o seu compromisso e paixão. Alcides nasceu em Angola, filho de pais cabo-verdianos, e cresceu na Moita, junto ao Tejo. Desde muito jovem, enfrentou perdas familiares significativas, com a morte dos pais ainda durante a infância, uma circunstância que moldou o seu percurso. “Éramos sete irmãos. Ficámos sozinhos, mas nunca nos deixámos cair. Isso ensinou-me que o coletivo é mais forte do que qualquer dor individual.”
A experiência de viver grande parte da sua vida com documentos estrangeiros, sem nacionalidade portuguesa, influenciou não só as suas possibilidades práticas, mas também a construção da sua identidade. O sentimento de pertença dividida entre várias culturas - sem se sentir totalmente integrado em nenhuma delas - ofereceu-lhe uma perspetiva particular sobre as complexidades da inclusão. “Andei anos com um BI que dizia ‘residente estrangeiro’. E eu nasci aqui. Isso mexe contigo, na forma como te vês, mas também na forma como os outros te olham.”
DR
Antes de abraçar o surfskate como missão, construiu um percurso profissional diversificado. Trabalhou durante doze anos no setor bancário, na Caixa Geral de Depósitos, e mais tarde tornou-se comissário de bordo na TAP. A pandemia obrigou-o a repensar o caminho, e foi nesse momento de pausa que descobriu no skate não apenas uma atividade física, mas uma via para comunicar, incluir e cuidar. “Foi quando tudo parou que percebi que podia começar de novo e começar diferente.”
Aos 35 anos, numa altura em que muitos abrandam o ritmo, encontrou no surfskate um ponto de partida. Percebeu que não era apenas um desporto, mas uma linguagem com potencial transformador, capaz de gerar sentido comunitário e pertença. Conciliar essa missão com a exigência dos turnos na aviação continua a ser um desafio, mas a convicção no valor do que faz sustenta o esforço. “Eu voo para pagar as contas. Mas o que me dá chão é o que faço ali em Chelas.”
Olhando para o futuro, sonha com a expansão do projeto para outras comunidades e com o crescimento dos eventos sociais que organiza, como o “Skate e Cachupa”, esperando que se tornem verdadeiros festivais capazes de envolver mais pessoas e derrubar ainda mais barreiras. Quando lhe perguntam qual é a essência do seu trabalho, responde sem hesitação que usa “o skate como desculpa para criar encontros, escuta e empatia. A técnica vem depois. O mais importante é criar espaço para o outro existir”, concluiu.
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