Quem escreve nossas histórias? A luta por representatividade negra nas novelas brasileiras

30 de Setembro de 2025
representatividade negra novelas opiniao
Taís Araujo e Bella Campos , em "Vale Tudo" | Fabio Rocha/TV Globo

Partilhar

Será que já podemos dizer que temos representatividade negra nas telenovelas brasileiras?
É um audiovisual muito popular, um dos mais assistidos mundialmente, inclusive pela comunidade PALOP. Apesar de ser um produto cultural muito forte e presente no nosso dia a dia, ainda carregamos uma ausência gritante de personagens negros, principalmente protagonistas.


O que vemos representado nas novelas é um Brasil que poucos conhecem e acessam, contando histórias de pessoas brancas e ricas, moradoras e frequentadoras da zona sul do Rio de Janeiro, bairros nobres e elitistas da cidade, sem abrir espaço para histórias pretas e mais reais.

Num país onde 56% da população se autodeclara negra (pretos e pardos) (IBGE, 2022), apenas 7% dos atores negros fizeram parte de telenovelas entre 1990 e 2024 (CÁSPER, 2024). E ainda assim, tratava-se quase sempre de personagens caricatos e estereotipados: empregadas domésticas, traficantes, prostitutas. Sempre nesse lugar de servidão, física ou sexual, nos limitando até mesmo de ascender dentro das telas.

Esses números mostram o abismo entre o Brasil de fato e o Brasil que se quer vender nas novelas. Mostram também como a televisão insiste em nos colocar em papéis que reforçam desigualdades históricas e estereótipos negativos.

PUBLICIDADE

Fora do Centro - Gisela Mabel

“Artistas negros precisam negociar constantemente sua carreira com estigmas impostos pelo mercado. E se o mercado dita as regras, será que não está na hora de mudar essas regras?”

Karen Pacheco

representatividade negra novelas opiniao

Elisa Lucinda, Manu Estevão, Bella Campos, Sheron Menezzes e Che Moais em 'Vai na Fé' ©️ João Miguel Júnior/Globo

A TV Globo, maior emissora do Brasil, tem como meta atingir 50% de profissionais negros até 2030. Nos últimos anos, tivemos novelas com mais personagens negros, como Vai na Fé (2023), que contou com 70% do elenco negro em uma trama que não abordava escravidão; o remake de Renascer (2023); e agora o remake de Vale Tudo, que passa de 2 atores negros na versão original (1988) para mais de 15 (2025). Apesar disso, representatividade não é apenas presença em cena, mas também a forma como essas histórias são contadas.

A novela Vale Tudo, escrita pela autora Manuela Dias, vem recebendo muitas críticas, sobretudo em relação à personagem Raquel Acioli, vivida pela atriz Taís Araújo. A trama foi sucesso em 1988, período pós-ditadura no Brasil, quando se fazia uma crítica à sociedade sem valores bem definidos, onde valia tudo pela fama e dinheiro. Manuela Dias reescreve a novela agora em 2025, dando mais espaço a atrizes e atores negros, entre eles as protagonistas Raquel Acioli (Taís Araújo) e Maria de Fátima (Bella Campos), personagens vividas por Regina Duarte e Glória Pires, respectivamente, na versão original.

Raquel é uma mãe negra, batalhadora, honesta, que sempre quis passar bons valores para a filha, que por sua vez é bem diferente dela. Para Maria de Fátima vale tudo para obter sucesso, inclusive vender a casa da própria mãe para ir atrás dos sonhos no Rio de Janeiro.


A princípio, o público adorou ver esses papéis com duas mulheres negras, o que teria feito sentido desde aquela época, pela história contada e pela representação da mulher brasileira. O que não se esperava é que o texto seria mudado, levando a personagem a um lugar de mais humilhação e sofrimento, justamente por ser uma mulher negra.

Em ambas as versões, Raquel vende sanduíche na praia, batalha para subir na vida, abrir o próprio restaurante e ficar rica. Mas somente na versão de 2025, com Taís Araújo, a personagem volta a ficar pobre, tendo que vender sanduíche novamente na praia e sendo salva depois por uma mulher branca, justamente aquela que a havia traído. Essa narrativa repete um estigma que pesa sobre a mulher negra: a de que ela nunca pode permanecer no lugar da vitória por muito tempo, precisando ser salva por alguém branco.

"Representatividade não é apenas presença em cena, mas também a forma como essas histórias são contadas"

Karen Pacheco

representatividade negra novelas opiniao

Maria de Fátima e Raquel Acioli - Versão 1988/2025 ©️ Divulgação TV Globo

Havia uma chance de contar a história de uma mulher negra bem-sucedida, através do trabalho árduo e de boas escolhas na vida, dando esperança a quem assiste de que é possível sim. Mas ela foi desperdiçada. Taís Araújo concedeu uma entrevista à revista Quem, onde admitiu ter ficado frustrada com o desenrolar da trama da Raquel:

"Esse momento da Raquel voltar a vender sanduíches na praia, confesso que recebi com um susto. Porque não era a trama original. Então, para mim, a Raquel ia numa curva ascendente. Quando vi aquilo, falei: ‘Ué, vai voltar para a praia, gente’. É urgente que a gente se veja nesse lugar. E acho que a Raquel tinha todas as possibilidades da gente contar essa nova narrativa dessa mulher. E quando li, pensei: Ai, meu Deus, não vai ter? Não, não vai ter'. Tenho que lidar com a realidade que me cabe, que é a de uma intérprete de uma personagem que não é escrita por mim", falou.

A frustração da Taís não é só pessoal, mas coletiva. Representa a sensação de milhões de telespectadores negros que seguem sem se ver em narrativas positivas. Faltam pessoas negras em espaços de tomada de decisão. Profissionais negros, sobretudo mulheres, capazes de contar histórias que passem uma mensagem positiva a um público que cresceu com carência de representatividade, com falta de ver um semelhante nas telas, de acompanhar um personagem negro que não seja bandido ou que não viva sempre histórias de humilhação. Muitas vezes, mesmo quando há personagens negros, o foco acaba sendo deslocado para o personagem branco, que assume de fato o protagonismo.

O ator, diretor e escritor brasileiro Lázaro Ramos conta no seu primeiro livro Na minha pele (2017) que inicialmente recusou muitos papéis em que teria que segurar armas. Lázaro começou no teatro, no Bando de Teatro Olodum, em Salvador, e quando precisou entrar no mercado audiovisual encontrou muita dificuldade, pois quase sempre eram apresentados papéis em contextos de violência. Como ele mesmo falou em entrevista no Conversa com Bial:

“Eu percebi durante muito tempo, uma presença de homens negros na dramaturgia, com uma arma na mão, no seguinte contexto: um contexto de conforto, como se aquela arma fizesse parte do seu corpo e fosse o seu destino."

A partir daí, o início da carreira na dramaturgia tornou-se mais difícil por recusar esses papéis, mas essa foi uma escolha decisiva para tudo que ele viria a construir depois.
Nessa época, aceitou alguns personagens com arma em cena, mas sempre em contexto de erro ou desconforto, como nos filmes Madame Satã e O homem que copiava.

Esse posicionamento mostra como artistas negros precisam negociar constantemente sua carreira com estigmas impostos pelo mercado. E se o mercado dita as regras, será que não está na hora de mudar essas regras?

Para algumas pessoas, o audiovisual não passa de mera ficção. Mas a telenovela acompanha a vida de milhões de pessoas, principalmente no horário nobre. Amigos e famílias assistem juntos, se enxergam nos personagens, comentam no trabalho, em mesas de bar, no ônibus. A novela entra no imaginário social.

E se assim nos afeta, por que não dar espaço para histórias que inspirem, em vez de reforçar sempre a humilhação?

Enquanto não tivermos roteiristas, diretores e produtoras negras no comando, seguiremos vendo histórias que não nos pertencem sendo contadas em nosso lugar, num viés branco, classista e muitas vezes violento, inclusive para quem assiste.

É uma crítica às novelas brasileiras, mas que serve também à dramaturgia como um todo.

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para redacao@bantumen.com.

bantumen.com desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile