“Não preciso dizer ‘sou antirracista’, isso é uma forma de estar”, Selma Uamusse

27 de Julho de 2025
selma uamusse entrevista
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Selma Uamusse é o tipo de artista a quem a música surgiu como um tropeço necessário, numa lógica em que o desvio se revelou caminho. Nascida em Maputo, em 1981, e vinda para Portugal aos sete anos de idade, cresceu entre geografias sobrepostas, línguas que se desencontravam e uma identidade que oscilava entre silêncios e pertenças múltiplas. Formou-se em Engenharia, acreditando que o seu contributo passaria por pensar o território e transformar, através do urbanismo, o país onde nasceu. Mas a vida — e talvez algo mais — empurrou-a noutra direção. “Achava que a minha missão enquanto moçambicana era transformar o meu país e poder fazer parte do ordenamento do território”, diz, com a serenidade de quem reconhece que a missão permanece, apenas mudou de forma.

Foi já em plena universidade que aceitou, quase por acaso, o convite para integrar um coro de gospel. Não havia plano, nem expectativa de carreira, mas “a música aconteceu. Foi como se tropeçasse.” Até então, não se via como cantora, embora amigas lhe sugerissem concursos televisivos, com os quais nunca se identificou. E foi no improviso desse primeiro passo que se abriu o território onde hoje habita.

Antes da afirmação em nome próprio, participou em projetos diversos, onde cofundou o Faith Gospel Choir e o Gospel Collective, integrou o Nu Jazz Ensemble, protagonizou um tributo a Nina Simone e passou pela banda WrayGunn, onde partilhou palcos com Paulo Furtado. Essa fase, marcada pela versatilidade e pela experimentação, permitiu-lhe testar linguagens e consolidar a presença de palco, mas a inquietação persistia. A determinada altura, deixou de procurar onde se encaixava enquanto intérprete e começou a questionar o que tinha para dizer. E sobretudo, em que língua queria dizê-lo.

“A forma como abraço a música está muito longe da ideia de indústria. Não me move a visibilidade. Interessa-me o que posso transformar”, conta, num gesto que afirma ter começado por si e pelas suas próprias convicções, ao reconhecer que o Moçambique que lhe habitava a memória e a voz era mais denso e luminoso do que aquele que os media europeus normalmente mostravam. “Percebi que o meu papel era mostrar um Moçambique que não fosse apenas associado à fome, às cheias ou à corrupção. Queria que se visse a riqueza cultural, a diversidade, a profundidade.”

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“A forma como abraço a música está muito longe da ideia de indústria. Não me move a visibilidade. Interessa-me o que posso transformar”

Selma Uamusse

Aquilo a que chama “espírito de missão”, fê-la regressar, tempos depois, à terra natal e esse (re)encontro entre o país que deixou e o país que lhe foi chegando enquanto imigrante representaram um novo começo, marcado pela escuta ativa e pelo “dessaber”. Estudou instrumentos tradicionais como a timbila e a mbira, mergulhou em sonoridades changana, chope e macua, e permitiu-se escutar com humildade. “Voltei de forma ingénua, sem saber nada. E esse não saber é fértil. Dá margem para muitas possibilidades.” Conta, a título de exemplo, que a decisão de cantar em línguas moçambicanas não foi motivada pela fluência, mas por compromisso e que, mesmo sem domínio total, optou por habitá-las musicalmente — como quem reclama uma herança e simultaneamente a reinventa. “Não faz mal não dominar. Estou a começar um caminho que outros, como a Assa Matusse vão explorar com outra propriedade.”


É desse processo que nasce Mati, o seu primeiro disco em nome próprio, lançado em 2018. O título significa “água” em changana, e o álbum é, ele mesmo, uma travessia — entre Maputo e Lisboa, entre o sagrado e o político, entre o ancestral e o experimental. Produzido por Jori Collignon, e apresentado em mais de 60 palcos internacionais, incluindo Rock in Rio Lisboa, FMM Sines, SummerStage (Nova Iorque) e MIL Paris, Mati confirmou Selma como uma voz singular no universo musical lusófono. Mas foi também, para a própria, um processo interno de revelação, ancorado em experiências pessoais. “Todas as minhas filhas foram responsáveis por canções, por decisões, por álbuns”, diz, referindo-se à forma como a maternidade moldou não só o seu tempo, mas a sua escuta. “Aquilo que eu fizer vai refletir-se na educação delas. Isso exige responsabilidade, atenção ao impacto.”

Liwoningo, lançado em 2020, que significa “luz” em chope, aprofunda esse percurso, expandindo as colaborações e abrindo-se a novas latitudes. Produzido por Guilherme Kastrup, e com participações de Bixiga 70 (Brasil), Mbye Ebrima (Gâmbia) ou Lenna Bahule (Moçambique), o disco junta afrobeat, rock, eletrónica e tradição num universo sonoro em permanente deslocação. “Não me interessa o lugar de conforto. Quero manter-me inquieta.”


O posicionamento, traz, invariavelmente, consequências práticas que acabam por traduzir-se na forma como a artista olha para a própria música. Com o passar do tempo, e com a maturidade que lhe está subjacente, algumas letras deixaram de fazer sentido, certos palcos perderam relevância e, num mundo em constante mudança, houve mensagens que acabaram por tornar-se mais urgentes que outras. Longe da censura interior, Selma encara o ato como uma consciência ampliada que a obriga a uma escuta mais rigorosa daquilo que quer deixar e daquilo que quer construir. “Não é que tenha atingido uma maturidade absoluta. Mas sei melhor o que quero dizer.”

selma uamusse entrevista

Fotografia de Ana Viotti

A conversa, conduzida num registo informal, permitiu a Selma discorrer com liberdade sobre uma dimensão menos visível do seu trabalho, a espiritualidade. A música que faz não é apenas artística, é também devocional, ancestral, curativa. Quando se questiona sobre a presença do sagrado na música contemporânea, num tempo acelerado e permeado por lógicas de produção mecânica, a resposta chega com a certeza de que "estamos a viver uma espiritualidade muito autocentrada. Meditar só para mim tem pouco interesse. Quero estar bem, mas para tocar a vida dos outros.” Cristã assumida, recusa a rigidez institucional das igrejas, mas cultiva uma fé baseada na compaixão e na escuta activa. Acredita que a espiritualidade deve ser vivida na vida comum, com os vizinhos, com a família, com as pessoas com quem se partilha o quotidiano. “A religião muitas vezes mata a espiritualidade. Eu acredito numa vida comunitária, onde nos olhamos com verdade e desejamos interdependência.” A sua prática espiritual, como a sua música, está centrada no outro. “Quero vomitar amor. Quero vomitar espiritualidade para quem está à minha volta. Não me interessa estar bem apenas para mim.”


Nos últimos anos, organizou e participou em vários concertos de solidariedade pelo povo sírio, pela Ucrânia, por Moçambique, como no caso do espetáculo Mão Dada a Moçambique, realizado após as cheias, sempre com uma abordagem que evita o panfleto e privilegia o gesto concreto. “Nem todos os músicos têm de ser ativistas. A arte já é, por si, um espaço de transformação. Mas no meu caso, quero que a música sirva também para agir.” Recentemente, no palco da última edição dos Cabo Verde Music Awards, onde foi convidada a, atuar reforçou essa ideia de ligação entre os povos da lusofonia e a urgência de reconhecer geografias frequentemente esquecidas no diálogo pós-colonial.


Não se revê nas grandes proclamações digitais, nem nas campanhas com slogans repetidos à exaustão e assume não sentir necessidade de se rotular para que o pensamento fique claro, sobretudo se as atitudes falarem por si. “Não preciso escrever ‘sou antirracista’, isso é uma forma de estar. Está nas escolhas, nos silêncios, nas relações. Está em saber comunicar com todos os meus vizinhos, sejam eles paquistaneses, angolanos, góticos ou com problemas mentais.” Para a artista, a coerência não se mede pelas palavras ditas, mas em gestos vividos. “Se falo em amor, tenho de o praticar em casa. Se defendo escuta, tenho de resolver as minhas questões de forma honesta. Não chega levantar bandeiras, é preciso ser a própria bandeira.”


As palavras ganham um tom mais suave quando se fala de Sara Tavares, cantora e compositora falecida em 2023, que foi homenageada no Festival Med, local onde decorreu a entrevista. Selma evoca a cantora como amiga, referência e como mulher que abriu caminho sem levantar slogans, sem se anunciar. “A Sara era. Isso é o que mais me marcou. Não era só uma voz, era uma presença.” Conta que as conversas entre ambas raramente passavam por questões técnicas ou por apreciações musicais, mas que estavam muitas vezes ligadas à espiritualidade e à forma como ambas encontravam no sagrado um ponto de encontro com as próprias vidas. “Falávamos sobre o que Deus nos estava a dizer naquele momento, sobre como estávamos a escutar o mundo.” A amizade entre ambas consolidou-se nos últimos anos de vida da cantora, e transformou-se numa referência afetiva e espiritual. "A Sara praticava o exercício diário de ‘deixar de ser’, e isso fez dela um ser muito maior”, afirma, acrescentando que foi também uma das primeiras mulheres negras a afirmar-se como cantautora em Portugal, e fê-lo com radicalidade estética, mas sem necessidade de proclamar causas. Para Selma, marcar presença num festival onde lhe é prestado tributo, é uma continuação silenciosa dessa relação espiritual.


Quando lhe é pedido que escolha uma canção que melhor a defina enquanto artista, a resposta é breve mas inequívoca: “Mati”. Não só por ser o primeiro trabalho em nome próprio, mas porque remete para equilíbrio, energia e cura, a síntese de uma artista que transformou o palco num espaço de encontro, escuta e consciência.

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