Sheila Khan: pós-memória, colonialidade e a urgência de uma cidadania plural

29 de Setembro de 2025
sheila khan entrevista
Sheila Khan | © Laís Pereira

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Sheila Khan é uma das vozes mais consistentes na reflexão sobre colonialidade, pós-memória e cidadania no espaço lusófono. Socióloga, investigadora e professora, tem construído ao longo das últimas décadas um percurso que articula a experiência pessoal de pertença a múltiplas diásporas com uma investigação académica que nunca se fecha sobre si própria. A sua intervenção pública, seja no debate científico, cultural ou mediático, tem procurado interrogar as permanências coloniais, pensar as lutas de hoje à luz das do passado e propor caminhos de hospitalidade e equidade.

A sua formação começou na Universidade do Minho, em Sociologia das Organizações, e foi aí que consolidou a vontade de dedicar-se à investigação. Seguiu-se o mestrado em Psicologia Social no ISCTE, integrado num projeto coordenado por José Machado Pais sobre a juventude em Portugal. Dentro dessa linha de investigação, surgiu uma vertente dedicada aos jovens imigrantes de segunda geração, os afrodescendentes, que marcaria decisivamente o rumo da sua carreira. “Foi nesse contexto que comecei a trabalhar narrativas de vida e de identidade, a partir da pergunta sobre o que significa sermos africanos e portugueses no quotidiano”, recorda.

A dissertação de mestrado abriu caminho ao doutoramento na Universidade de Warwick, centrado nas vivências dos chamados assimilados que, após a independência de Moçambique, vieram para Portugal e mais tarde emigraram para o Reino Unido. Esse trabalho permitiu-lhe estudar a interseção entre contextos históricos e trajetórias pessoais, analisando de que modo a experiência colonial e pós-colonial moldou destinos individuais e coletivos. “Foi nesse momento que decidi aprofundar de forma sistemática o que significa pensar o pós-colonialismo a partir da experiência portuguesa”, explica. O pós-doutoramento em Manchester consolidou essa linha de trabalho e abriu-lhe espaço para lecionar, além de lhe permitir colaborar com investigadores em vários países, do Reino Unido a Itália, do Brasil a Moçambique. “Fui privilegiada por poder trabalhar com alguns dos maiores especialistas nesta área, o que me deu uma visão alargada e comparativa.”

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“As entidades deviam mapear pessoas na sociedade civil que possam servir de inspiração. Se tivéssemos esse sistema oleado, os ativistas não precisariam ser vistos apenas como reivindicativos.”

Sheila Khan, Socióloga, Professora e Investigadora

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Sheila Khan durante o debate "E depois da independência? Das lutas de libertação às lutas de hoje", no âmbito do Festival Paraíso © Lais Pereira

De regresso a Portugal, lecionou na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e hoje é professora auxiliar na Universidade Lusófona, no Porto, onde integra um centro de investigação. Paralelamente, há mais de uma década que participa no programa Debate Africano, da RDP África. “Nunca imaginei que essa colaboração tivesse a duração que acabou por ter, mas tornou-se uma parte fundamental do meu exercício de cidadania. Ali não falo apenas como investigadora, falo também como cidadã de uma diáspora, ou de várias diásporas.”

No centro da sua reflexão estão os conceitos de pós-colonialidade e de pós-memória. Para a investigadora, o “pós” não pode ser entendido apenas como corte histórico até porque, pontua, “significa a continuidade de um colonialismo disfarçado de multiculturalidade, de diversidade ou de cosmopolitismo. É um disfarce que, em determinados contextos sociais, políticos e económicos, se torna mais evidente. E implica que aqueles que foram colonizados continuem a ser vistos de forma periférica e marginal.” A sua perspetiva aproxima-se de uma crítica à ideia de que o colonialismo terminou com as independências: a matriz colonial permanece ativa, ainda que sob roupagens diferentes, reproduzindo hierarquias e exclusões.

A permanência destas lógicas manifesta-se no quotidiano, muitas vezes em gestos ou perguntas aparentemente inocentes. A propósito, recorda um episódio recente, em que um desconhecido lhe perguntou qual era a sua nacionalidade. “Respondi que a minha nacionalidade é portuguesa e a minha naturalidade moçambicana, mas acrescentei que sou uma cidadã do mundo. Ele ficou surpreendido. Esta é uma das nossas lutas: desconstruir perceções e preconceitos que continuam a insistir em colocar-nos como outros.”

É precisamente neste ponto que a investigadora introduz o conceito de pós-memória. Para os afrodescendentes que cresceram em Portugal, trata-se de viver um passado que não se experienciou diretamente, mas que entrou nas casas, nas escolas, no quotidiano. “Nós não vivemos o passado colonial, mas esse passado esteve presente todos os dias, na forma como nos olhavam, na forma como nos interpelavam. Muitas vezes perguntavam-me onde tinha aprendido a falar um português tão bom, como se isso fosse algo inesperado. A pós-memória traduz-se nesse legado que atravessa gerações e nos lembra constantemente que a história não terminou.”

“Nós não vivemos o passado colonial, mas esse passado esteve presente todos os dias, na forma como nos olhavam, na forma como nos interpelavam"

Sheila Khan, Socióloga, Professora e Investigadora

A diferença entre gerações é, na sua opinião, uma questão central e reflexo daquelas que são as suas experiências pessoais. Os pais viveram o pós-independência num registo de sobrevivência e silêncio. “Fomos educados para a discrição, para não falar de política, para não criar problemas. Essa contenção magoou muito a nossa autoestima. Portugal beneficiou desse silêncio, porque adiou o reconhecimento e a reparação histórica.” Hoje, contudo, novas vozes conquistam espaço no debate público. “Nos anos oitenta não havia uma Sheila no Debate Africano, nem uma Marisa que estivesse aqui a conversar comigo. Agora temos artistas como Dino D’Santiago ou os Calema a encher estádios. É um sinal de evolução, embora saibamos que há ainda um longo caminho a percorrer.”

Ao refletir sobre os cinquenta anos das independências africanas, não esconde a ambivalência. Reconhece o papel fulcral desse marco, mas sublinha as promessas por cumprir. “Percebe-se que houve avanços, mas também que muito ficou por concretizar. Basta olhar para Angola, Moçambique ou Guiné-Bissau, onde a cidadania continua fragilizada pela corrupção, pela exclusão e pela falta de oportunidades. Recordo um jovem em Maputo que me disse: ‘O nosso maior colono são os nossos.’ Essa frase devia fazer-nos pensar sobre o que falhou.” Exemplos como Cabo Delgado, em Moçambique, ou Cabinda, em Angola, ilustram como décadas de independência não impediram novas formas de marginalização e esquecimento.

Admite que esse mecanismo de exclusão encontra-se presente em Portugal, ainda que sob outras formas e lembra que a persistência de preconceitos é visível no quotidiano, mas também confirmada por estudos que apontam para uma larga maioria de afrodescendentes a relatar episódios de discriminação, sobretudo no acesso ao emprego e à habitação. “Estas desigualdades estruturais mostram que o passado não ficou para trás. Ele infiltra-se no presente, define oportunidades e marca fronteiras invisíveis.” Do mesmo modo, a questão geracional ganha corpo nas estatísticas sobre educação: a taxa de abandono escolar precoce entre jovens descendentes de imigrantes continua a rondar o dobro da média nacional, evidenciando como as barreiras de ontem se prolongam, ainda que em moldes distintos, na vida das novas gerações.

“As nossas universidades continuam a reproduzir currículos que privilegiam uma visão hegemónica. Precisamos de coragem para introduzir outras vozes, outros saberes, sem cair na arrogância de substituir uns por outros”

Sheila Khan, Socióloga, Professora e Investigadora

É neste diagnóstico que Sheila introduz a necessidade de um papel mais ativo da academia e da cultura. “As nossas universidades continuam a reproduzir currículos que privilegiam uma visão hegemónica. Precisamos de coragem para introduzir outras vozes, outros saberes, sem cair na arrogância de substituir uns por outros. A equidade faz-se com empatia e hospitalidade, mesmo quando isso nos incomoda.” Para a investigadora, descolonizar o pensamento académico implica reconhecer que preconceitos e representações sociais entram também na sala de aula e moldam as relações pedagógicas. “Nós não deixamos a nossa educação e os nossos preconceitos à porta da sala. Eles entram connosco. Por isso temos de ter consciência de que o racismo estrutural contamina também as universidades.”

A consciência desta realidade levou-a a experimentar novas formas de ensino. Conta que levou uma convidada afrodescendente a uma das suas aulas de publicidade e que os alunos, já no terceiro ano de curso, lhe disseram nunca ter tido contacto com uma perspetiva afrodescendente na disciplina. “Isso não pode acontecer apenas no fim da universidade. A cidadania não pode ser um suplemento tardio. Tem de estar presente desde o início.”

No olhar da investigadora, os caminhos urgentes passam por quebrar a persistência de visões marginais do outro. “Dói-me a forma como continuamos a tratar o outro como periférico. O episódio recente no bairro do Talude mostrou que permanecemos presos a uma visão dos anos oitenta. É urgente trazer mais diversidade para os meios de comunicação, dar espaço a vozes plurais e reconhecer que a história de Portugal não se compreende sem estas histórias.”

A cidadania, insiste, não se aprende apenas numa disciplina escolar. “Constrói-se nas ruas, entre vizinhos, nas relações quotidianas. Se desde cedo trouxermos para a escola experiências da sociedade civil, os alunos crescerão com uma visão mais plural.” Mas alerta também para os riscos da doutrinação, defendendo que é preciso criar espaços de inspiração partilhada. “As entidades deviam mapear pessoas na sociedade civil que possam servir de inspiração, figuras discretas que tragam ensinamentos e abram horizontes. Se tivéssemos esse sistema oleado, os ativistas não precisariam de ser vistos apenas como reivindicativos. Seriam cidadãos a inspirar outros cidadãos, num movimento contínuo de partilha, hospitalidade e compaixão.”

No fecho da sua reflexão, evoca a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, sublinhando a necessidade de recusar a armadilha da história única. “Temos de reivindicar a pluralidade das narrativas, porque é dessa pluralidade que se faz a nossa história maior.” Ao longo de décadas de investigação e intervenção pública, Sheila Khan tem-se afirmado como uma voz que não cede ao silêncio, mas que transforma a memória, pessoal e coletiva, em matéria de reflexão crítica. Uma voz que insiste na urgência de construir um futuro mais equitativo, onde a hospitalidade e a compaixão sejam tão centrais como a análise rigorosa do passado.

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