"Não é sobre ser o melhor, mas sim sobre por cá para fora a minha verdade", Soraia Tavares

20 de Julho de 2025
soraia tavares entrevista
Soraia Tavares ©︎BANTUMEN

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No próximo dia 24 de julho, Soraia Tavares sobe ao palco do Lux Frágil, em Lisboa, para um momento que além de marcar uma nova fase da sua carreira, adquire um tom simbólico - será o seu primeiro concerto em nome próprio na cidade. Embora já tenha apresentado o espetáculo noutras localidades do país, é nesta sala da capital que cumpre a vontade de reencontrar-se com o seu público num espaço que represente não apenas o regresso a casa, mas também um novo posicionamento artístico, mais próximo de um circuito alternativo e de novas possibilidades de escuta.

Nascida em Lisboa e filha de pais cabo-verdianos, Soraia cresceu em Carnaxide, num quotidiano atravessado pelo cruzamento diário entre as duas culturas. Em casa, local que descreve em tom de brincadeira como a “Embaixada de Cabo Verde”, ouvia-se crioulo e a cultura cabo verdiana era um elemento vivo; na escola e noutros contextos, impunha-se o português e as tradições locais. Sem rótulos, assume-se filha dos dois mundos e vê nesse equilíbrio de referências familiares, linguísticas e sociais um dos alicerces da sua identidade pessoal e profissional. Após frequentar a Escola Profissional de Teatro de Cascais, concluiu a licenciatura na Escola Superior de Teatro e Cinema. A visibilidade pública chegou em 2015, com a participação no programa The Voice Portugal, onde integrou a equipa da cantora Áurea. À época, explicou que o objetivo era ganhar visibilidade enquanto atriz, numa tentativa de abrir portas num meio, muitas vezes, marcado pela dificuldade de aceder a castings e, por consequência, a papéis - durante algum tempo, persistiu a ideia de que os personagens tendem a estar reservados a quem já é reconhecido.

Desde então, construiu uma carreira multifacetada e, sob alçada de Filipe La Féria, destacou-se em musicais como Zorro, Godspell e Rapunzel - O musical, em séries e novelas como A Única Mulher, Paixão, Abandonados, A Lista ou A Fazenda (2024), e venceu o concurso A Tua Cara Não Me É Estranha em 2019. No universo da dobragem, deu voz a personagens como Nala em O Rei Leão (live action, 2019) e Ariel em A Pequena Sereia (2023), consolidando o seu lugar como uma das artistas mais versáteis da sua geração. O reconhecimento desse percurso valeu-lhe a inclusão na PowerList 100 da BANTUMEN, sendo reconhecida como uma das 100 personalidades negras mais influentes da lusofonia.

No campo musical, lançou em 2023 o álbum de estreia A Culpa é da Lua, com canções em português e crioulo que exploram temas como memória e pertença. Faixas como “Dona Joana”, “Tu Não Mentes” e “As 5 Coisas que Nunca Te Disse” somam milhares de reproduções nas plataformas digitais. Em julho de 2025, contava com mais de 19 mil ouvintes mensais no Spotify, com destaque para “Esta Noite o Amor Chegou”, com mais de 590 mil streams e “Tu Não Mentes”, com mais de 120 mil.

Dias antes do espetáculo, a BANTUMEN conversou com a artista, que, entre ensaios e compromissos, refletiu sobre o percurso que a trouxe até aqui, o significado de cantar em crioulo, o percurso que começou no teatro, passou pela televisão e encontrou na música um espaço de expressão própria. Sobre o concerto, confessa que “ainda não o tinha feito na minha cidade” e reconhece o peso simbólico de ocupar esse lugar no circuito cultural lisboeta.

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“Os meus olhos estão mais no público que eu estou a chegar do que no público que já me ouve”

Soraia Tavares, atriz, cantora e compositora

Para a ocasião, Soraia procurava um espaço que refletisse o caminho musical que tem vindo a construir, algo que fosse além do reconhecimento conquistado na televisão e nos musicais. O Lux, com a sua programação e ambiente, surgiu como lugar ideal para essa fusão entre linguagens, públicos e sensibilidades. “Queria principalmente começar ali por causa deste circuito cool e alternativo”, explicou. Trata-se também de reposicionar o seu trabalho num cenário mais aberto à diversidade de vozes e propostas estéticas. “Os meus olhos estão mais no público que eu estou a chegar do que no público que já me ouve”, reconhece, expressando a vontade de ser escutada sem filtros, para lá dos rótulos mediáticos.

Antes de se tornar presença habitual na televisão ou de subir a qualquer palco, foi o teatro que lhe serviu de casa fundadora. Aos 15 anos, enfrentou o dilema, na altura comum a muitos jovens, de seguir a via académica convencional ou arriscar uma escola profissional de artes. “Achava que ir para as escolas profissionais era deitar ao lixo todas as boas notas que eu tinha”, admite. Foi a mãe quem reconheceu, com clareza, a energia criativa que nela habitava e deu o impulso necessário. “Tu tens que ir experimentar, porque tem tudo a ver contigo”, disse-lhe. A visita à Escola Profissional de Teatro de Cascais revelou-lhe um mundo desconhecido que acabou por funcionar como ponto de encontro. Fez os testes de admissão, foi aceite e rapidamente percebeu “que aquilo era realmente o que queria fazer para a vida” e o palco, até então distante, tornou-se lugar de elaboração da complexidade que trazia dentro.

Não tardou a explorar todas as possibilidade que a formação ofereceu e, em 2015, apresentou-se no The Voice,  onde se manteve até à segunda gala ao vivo, naquela que conta ter sido uma escolha estratégica. “Fui ao The Voice com o intuito de crescer enquanto atriz. Cantar era uma característica que tinha enquanto atriz”, explica, lembrando que não se via, na altura, como cantora de originais, mas como intérprete com voz moldada para a cena. Acreditava que a visibilidade poderia trazer personagens mais desafiantes. Não esperava, no entanto, que essa experiência viesse a abrir uma nova frente criativa que ganharia centralidade nos anos seguintes. A música, que começara como ferramenta performativa, passou a ser também território de criação.

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Soraia Tavares | ©︎ BANTUMEN

Durante a pandemia, com o setor cultural em pausa, Soraia teve espaço para explorar novos caminhos. E foi nessa altura que, desafiada pelo seu manager, Vasco Sacramento, que decidiu experimentar a composição. Participou num writing camp e encontrou ali um prazer inesperado, numa experiência pontual que viria a tornar-se hábito e a servir de repto para o que viria na sequência. “Não é sobre ser o melhor, mas sim sobre por cá para fora a minha verdade”, diz acerca da composição, que assume não ter que vir necessariamente da dor - e escrever a partir da experiência pessoal abriu espaço a questões antigas, nunca antes verbalizadas.

Uma dessas questões era a relação com o crioulo, que sempre ouviu em casa, mas que recusava falar. “O meu sotaque não era igual e eu sentia receio em falar mal.” E se a vergonha e o medo de errar adiaram esse reencontro linguístico, a viagem a Cabo Verde, feita sozinha e sem a mediação familiar, revelou-se transformadora. Andou pelas ilhas, conheceu pessoas, lugares e a acabou por se rever nas gentes que, de certa forma, também sempre foram suas. O tempo que passou em terras de Cesária, obrigou-a a falar diariamente o crioulo que antes achava não estar à altura e esse encontro com o lado cabo-verdiano acabou por materializar-se em canções - não como adereço identitário, mas como extensão legítima da sua expressão. A canção “Dona Joana”, dedicada à mãe, nasceu desse gesto. O refrão, escrito em crioulo, foi pensado para que a mãe se "reconhecesse na língua que melhor entende, na língua que é dela.”


A reflexão sobre pertença - social, política e cultural - abrange direta e indiretamente o seu trabalho, mas ganhou contornos mais concretos quando integrou o elenco de A Fazenda, atualmente em exibição na TVI e onde dá vida a Daniela Cunha, num elenco que conta com nomes como Cláudia Semedo, Hoji Fortuna, Rita Cruz e Ângelo Torres. “O ambiente é totalmente diferente”, afirma a propósito da experiência de contracenar com outros colegas negros - a última vez que participou em produção semelhante foi há cerca de uma década em A Única Mulher.

Apesar da alegria e de reconhecer que o setor está um pouco mais sensível a questões de representatividade, o trabalho em A Fazenda implicou uma camada adicional: contribuir para a construção da narrativa. Tanto a artista como os colegas sentiram a responsabilidade de intervir nos guiões sempre que consideraram que as situações retratadas não refletiam as suas vivências. “Tivemos que explicar o porquê daquilo não estar bem representado.” A ideia, esclarece, não era sobreporem-se ao que estava escrito, mas partir das experiências e conhecimento da realidade angolana, local onde é ambientada a novela, para tornar a trama verosímil. 

“Penso três ou quatro vezes quando dou um passo. Porque sei que posso desiludir ou não outras pessoas”

Soraia Tavares

Ao longo dos anos, Soraia tem reconhecido que o seu percurso individual carrega implicações coletivas. Mulher, negra e artista em Portugal, sabe que ocupa um lugar onde raramente corpos semelhantes chegam. “Penso três ou quatro vezes quando dou um passo. Porque sei que posso desiludir ou não outras pessoas”, admite. A exposição pública implica vigilância, expectativas e uma responsabilidade acrescida, mas não a impede de escolher o silêncio quando necessário. “Prefiro calar quando não tenho nada a acrescentar”, afirma.

Acredita que o ativismo não é, nem deve ser performativo, e embora o contexto muitas vezes obrigue o artista a assumir esse papel, isso só deve acontecer quando há algo a dizer. Numa altura em que o debate público está cada vez mais polarizado, opta pelo discurso consciente em vez do panfletário e assume, sem reserva, que, não dominando um assunto, prefere estudar em vez de contribuir para a desinformação. Ainda assim, reconhece o impacto da sua presença. “Inspiro outras pessoas e, para mim, isso não é indiferente.”

Antes de avançar para novas produções, decidiu lançar mais um single de A Culpa é da Lua, prolongando o diálogo com quem continua a descobrir a sua música. Nem dei por acontecer nasceu num momento pessoal mais leve, distinto do tom emocional dos temas anteriores. “Antes eu escrevia sempre numa bolha de tristeza”, admite. Desta vez, compôs de forma mais espontânea, quase como um gesto íntimo. Sem videoclipe nem plano estruturado de lançamento, conta que o novo tema "foi quase um libertar daquilo que tinha ali guardado.”

Com a dinâmica imposta pelas redes sociais e crescimento das plataforma de streaming, a urgência de produzir dita o tempo da criação e isso faz com que sinta uma pressão constante por novidades, algo a que tenta resistir, dentro do possível, embora isso não a impeça de reconhecer que “hoje em dia já não dá para lançar um álbum de cinco em cinco anos.” Significa isso que teremos disco em breve? Não necessariamente. Soraia acredita que o seu primeiro álbum não foi suficientemente vivido nem partilhado e quer “cantá-lo mais, rodá-lo mais, dar-lhe o tempo que ele merece”, numa recusa consciente da lógica produtivista e onde mantém o foco em aprofundar o que já construiu, permitindo que cada canção encontre verdadeiramente quem a escuta.

Com agenda cheia até ao final do ano, a artista divide-se entre dois palcos: o da música, onde seguirá com os concertos, e o do teatro, onde se prepara para protagonizar Alice no País das Maravilhas, no Teatro da Trindade, que estará em sala de setembro a dezembro. Entre a música, o teatro e a composição, Soraia Tavares tem construído um percurso atento às possibilidades da linguagem, da presença e da escuta, recusando leituras simplistas e preferindo pensar a sua prática artística como um lugar de relação com quem a vê e com quem a ouve.

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