Cleo Diára e Welket Bungué refletem sobre o corpo, a autoria e o futuro do cinema negro no MIA

10 de Novembro de 2025
Welket Bungué Cleo Diára
Marisa Rodrigues, Welket Bungue e Cleon Diara, no MIA 2025 | @BANTUMEN

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Numa altura em que o cinema negro conquista novos espaços de visibilidade e desafia as estruturas de poder que moldaram o olhar durante décadas, pensar a imagem é também uma forma de pensar o mundo. O Mês da Identidade Africana (MIA), organizado pela BANTUMEN, tem vindo a afirmar-se nesse terreno de interrogação e criação, onde a arte se entende não apenas como expressão estética, mas como linguagem crítica.

Na edição deste ano, o MIA exibiu o filme Medida Provisória (2020), de Lázaro Ramos, e promoveu, após a sessão, uma conversa entre dois protagonistas incontornáveis do cinema lusófono contemporâneo: Welket Bungué e Cleo Diára. O diálogo, moderado pela jornalista Marisa Mendes Rodrigues, partiu da distopia imaginada por Lázaro Ramos para se abrir a uma reflexão mais ampla sobre o corpo enquanto ferramenta e território político, a herança africana no Brasil, partindo da experiência dos oradores, a representatividade dentro do audiovisual e, claro, e o futuro do cinema.

Cleo Diára, distinguida este ano com o Prémio de Melhor Atriz na secção Un Certain Regard do Festival de Cannes pelo filme O Riso e a Faca, de Pedro Pinho - atualmente em exibição nas salas nacionais - , descreveu a arte como um ato de resistência e imaginação. Para a atriz, “a realidade já é tão dura, tão repetida, que nada do que vemos aqui é novo ou estranho às nossas vidas”, e é por isso que escolhe “olhar através da arte, e não da dor”, procurando “uma utopia que, embora distante, represente a recuperação do nosso poder pessoal, um espaço onde não estejamos sempre submetidos ao racismo ou à opressão estrutural da sociedade”. Ao falar de utopia, Cleo não se distancia do real, mas redefine-o, vendo na criação um exercício de libertação e um modo de reescrever as condições da existência e de resgatar humanidade num sistema que insiste em negá-la.

Welket Bungué, atualmente em cena na série "Reencarne", da Globoplay, trouxe à conversa a sua experiência no Brasil e a complexidade identitária que o país encerra, citando a sua vivência no país e a multiplicidade de "Brasis" que existem. O ator explicou que “essa simplificação da identidade não existe no Brasil” e que, ao viver ali, descobriu “algo que chamo de simultaneidade identitária, essa multiplicidade que carregamos e que, ao chegarmos aqui, se transforma”. Bungué sublinhou ainda que a identidade vai além do fenótipo e da geografia, sendo uma construção complexa e em permanente transformação em que “muitas vezes somos vistos como estrangeiros africanos e, na tentativa de nos integrarmos, acabamos por negociar constantemente quem somos”, palavras que revelam a consciência de uma pertença em trânsito, moldada por deslocamentos, negociações e sobreposições de memória.

Cleo Diára complementou a ideia, revelando a sua própria procura por essa conexão “Pelo que leio e observo, sinto que muitos brasileiros procuram essa ponte com a África. Existe uma carência que eu também reconheço em mim, enquanto cabo-verdiana  de reencontro, de pertença. Mas, ao mesmo tempo, percebo que há uma certa ilusão em torno dessa ideia de África… uma África utópica, idealizada”, afirmou, destacando ainda que, para a diáspora,  África é um lugar de desejo e uma espécie de “fantasia” a ser reencontrada, quase como um gesto de resgate de uma história que foi roubada.

A discussão avançou naturalmente para o papel do corpo na arte, entendido como matéria, ferramenta de trabalho e território político. Diara recordou que “não quer emprestar o corpo a histórias que não dignifiquem a comunidade, e principalmente mulheres negras”, recusando perpetuar “estereótipos que foram e continuam a ser perigosos para a nossa existência”. Cada papel, para a atriz, é um ato de reparação e uma forma de reescrever o passado a partir do presente, de ocupar o espaço que durante tanto tempo lhe foi negado.

Welket completou a reflexão ao afirmar que o corpo é “um link para se comunicar, um instrumento que proporciona outros caminhos de comunicação” e que “quando o corpo fala, ou simplesmente quando chega a um determinado lugar, percebe-se a sua dimensão política, cultural e estética”. Nas suas palavras, o gesto, o silêncio e o movimento transportam uma memória coletiva que transcende o indivíduo e faz do corpo um território de significação.

Neste ponto, talvez o essencial seja reconhecer que o debate já não se esgota na retórica da representatividade e que está em jogo quem escreve, quem realiza, quem decide o que é financiado, programado e preservado, e de que modo as plataformas se responsabilizam por transformar estruturas e não apenas vitrines. Quando Cleo Diára recusa “emprestar o corpo” a narrativas que reproduzem estereótipos e quando Welket Bungué lê no corpo uma linguagem que “carrega” política, cultura e estética, ambos apontam para o âmago do problema: a autoria é a condição para que a memória se reconcilie com o futuro e para que os públicos encontrem complexidade onde antes eram oferecidas simplificações.

Se algo fica desta sessão é a ideia de que o cinema negro, quando assume a autoria e reivindica a sua gramática própria, propõe outras formas de ver e de se ver, reinstalando o corpo como território de enunciação e repondo a dignidade como critério estético.  O resto, leia-se mudança efetiva, depende da coragem de levar este compromisso para as salas, para os sets, para as grelhas de programação e para as decisões que se tomam quando não há câmaras a filmar.

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