Afrofuturismo, resistência e identidade: a trajetória sonora de XEXA

12 de Junho de 2025
xexa entrevista
📸 XEXA | La Casa Encendida, 2024

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Filha da diáspora santomense, XEXA, produtora musical, cresceu no bairro da Quinta do Mocho, em Lisboa, num ambiente em que o som estava impregnado no quotidiano como uma extensão da própria memória familiar e comunitária. Desde cedo, foi exposta ao ato de escutar como prática quase ritual, cultivado pelo pai, que embora não fosse músico, acumulava cassetes, discos e gravações com uma devoção quase curatorial. "O meu pai tem um amor imenso pelo som. E quando eu digo som é mesmo ouvir música", partilhou, sugerindo que esse gesto repetido de escuta moldou a sua sensibilidade artística de forma determinante.


A infância foi atravessada por festas de família, sessões de música caseira e momentos de convívio em que o som era, simultaneamente, companhia e celebração. Não obstante esta imersão sensorial, o impulso para a produção musical só se manifestaria mais tarde, após um percurso inicial no piano clássico. Durante um período estudou formalmente, mas abandonou a via tradicional ao perceber que as estruturas rígidas do repertório clássico entravam em conflito com a sua necessidade de experimentar. "Percebi que eu não podia fazer muita pesquisa sonora nesse aspecto, porque o clássico, seja na música ou no visual, é algo que aconteceu no passado e tem de se manter assim. Senão não é clássico", afirmou com lucidez, revelando desde logo uma consciência sobre os limites da tradição e os seus próprios desejos de transgressão criativa.


Ainda adolescente, ingressou na Escola António Arroio, motivada pela curiosidade por processos manuais meticulosos, e escolheu estudar ourivesaria. A arte de transformar metal em pequenas esculturas fascinava-a não só pela delicadeza exigida, mas também pela lógica que governa a construção do detalhe. "É muita lógica. Todo o esforço físico que tens de ter para fazer uma peça bastante pequena, um anel. Estás com martelos enormes para fazer uma martelada mínima ali", recorda.

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"Sabia que queria desenvolver a cultura africana com as minhas técnicas, mas não sabia que nome é que isso tinha. E para mim, acho que o afrofuturismo é o chapéu perfeito atualmente para a minha pesquisa"

XEXA

Foi nesse ambiente artístico e urbano que começou a rodear-se de jovens criadores, muitos deles já a explorar caminhos na música e nas artes visuais. Apesar de o panorama estar maioritariamente ocupado por homens - sobretudo nas rodas de rap e nos estúdios -, não se inibiu, "sei que todas as pessoas que estão aqui a fazer rap e a entrar nas rodas de som são homens, mas acho que consigo." Partindo desse contexto, começou a experimentar produção musical de forma autodidata, primeiro explorando sintetizadores e texturas sem ritmo, depois integrando batidas e voz, num processo progressivo de autoformação.


Ao terminar o secundário, sentiu que os cursos disponíveis em Portugal não respondiam à sua vontade de ir mais longe na experimentação sonora. Foi então que, numa pesquisa simples no Google, onde colocou "melhor escola de música eletrónica Europa", encontrou a Guildhall, uma instituição inglesa especializada em arte sonora. Candidatou-se e foi aceite, tornando-se a primeira mulher a concluir o curso de Study Production Arts, onde expandiu consideravelmente as suas ferramentas técnicas. "A escola deu muitas ferramentas, experimentei com surround. Foi a primeira vez que pude trabalhar com sistemas de som envolventes e entrar nisso." Ao mesmo tempo, percebeu que os seus interesses não eram partilhados por todos: "O que me cismava não o cismava aos outros, e estava tudo bem. Tinha interesses bastante específicos."


Foi já em atuação, durante a Bienal de Coimbra, mais precisamente na edição de 2022 , que teve o primeiro contacto direto com o termo que viria a balizar a sua prática estética e conceptual, o afrofuturismo. Recorda que o momento foi quase fortuito, durante uma sessão de fotografias com Rafa de Oliveira, com quem trocava ideias sobre o significado e o potencial simbólico desse universo. "Estávamos a falar sobre afrofuturismo, sobre o termo, e eu descobri o afrofuturismo com as suas fotografias", conta. Na verdade, a intuição estética e política já existia e a prova disso é que desde o início procurava articular a sua linguagem sonora com referência às culturas africanas, nomeadamente são-tomense, palop e afro-diaspórica. O que faltava era uma palavra que abarcasse a amplitude da sua visão. "Sabia que queria desenvolver a cultura africana com as minhas técnicas, mas não sabia que nome é que isso tinha. E para mim, acho que o afrofuturismo é o chapéu perfeito atualmente para a minha pesquisa."


Para XEXA, o termo trata-se de um exercício crítico, que interroga o próprio conceito de África: "É África, o continente? É África, os africanos? É África, a diáspora? África, o passado? África, o futuro?". O afrofuturismo surge assim como um dispositivo de libertação que lhe permite pensar, ao mesmo tempo, herança, descolonização, emancipação estética e autonomia imaginativa. "É visualizar o futuro, sendo o futuro o desenvolvimento, a independência, a identidade e também podermos afastar-nos um bocadinho da vinculação que temos com o colonialismo."


A consciência crítica acaba por se estender à forma como os discursos e as práticas culturais negras são frequentemente rotulados por um léxico que, longe de ser neutro, é condicionado por uma necessidade de categorização. XEXA aponta com clareza o incómodo provocado pelo uso do prefixo "afro" como um marcador quase obrigatório para validar expressões culturais africanas ou da diáspora, sobretudo quando estas se afastam da imagem cristalizada do "tradicional". "Algo para ser africano não precisa de ter esse 'afro' antes", afirma com convicção.

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📸 XEXA fotografada por Renato Miranda

Assume que a rotulagem não é apenas redutora, mas revela uma tentativa, ainda que muitas vezes inconsciente, de legitimar sons e estéticas negras por via de uma nomenclatura que se conforma às expectativas do olhar europeu. Trata-se, na sua visão, de um esforço de tradução que serve mais à recepção do que à origem. O exemplo do "afrofado" serve-lhe de provocação e denúncia: "Então diz-me que o fado sem um 'afro' não era nosso, ou não foi para nós, quando o fado é um género estilístico com bastantes influências africanas, tanto do norte de África, como arábicas, como de África em si." O problema não está apenas na apropriação ou exotização, mas na forma como se traça, de forma acrítica, uma fronteira entre o que é 'nosso' e o que é 'outro', ignorando as camadas históricas de mestiçagem e enraizamento.


Entre os projetos mais significativos da sua trajetória encontra-se o "Calendário Sonoro", uma iniciativa que começou em 2020, em plena pandemia, e que redefiniu a sua prática artística e o seu lugar no ecossistema da música eletrónica experimental. O ponto de partida foi a pergunta, inocente mas potente o suficiente para mudar o chip, de uma amiga "why don’t you release music?", recorda. Mas o verbo "release" ressoou-lhe com outra carga semântica, não tão relacionada com o “lançar”, mas muito ligada ao "deixar ir".


Foi então que decidiu romper com as convenções da indústria musical e libertar-se dos constrangimentos técnicos e burocráticos que normalmente antecedem o lançamento de um tema - a mixagem, a masterização, a aprovação dos níveis, os filtros editoriais e promocionais. "Nós, músicos, temos bastantes constrangimentos e limitações e métricas à volta do lançamento de uma música", observou. Inspirada pela liberdade dos artistas visuais que podem expor esboços como obras, quis criar um modelo que lhe permitisse experimentar, errar e partilhar, sem amarras.


Assim nasceu o "Calendário Sonoro": um compromisso com a criação cíclica, em harmonia com os ciclos lunares. A cada lua cheia, XEXA produzia uma nova faixa inteiramente de raiz, da composição à masterização, e acompanhava-a de uma imagem visual pensada para a peça. Entre uma lua cheia e a seguinte, tinha cerca de três semanas para conceber, produzir, finalizar e partilhar. "Produzia a música from scratch, misturava, masterizava, tirava a ideia e depois fazia uma imagem visual para a música e lançava com o intuito de pesquisar sobre mim os sons que eu tinha aqui", explicou.


O projeto revelou-se um processo de autodescoberta. Ao revisitar os lançamentos, passou a identificar padrões e estéticas recorrentes, ganhando clareza sobre a sua linguagem sonora. "Acho que quando tu fazes algo várias vezes diferente, mas com o mesmo intuito de procurar algo, e voltas para trás, consegues ver ali um padrão."


"Calendário Sonoro" tornou-se um gesto político e curatorial. A decisão de libertar músicas fora do circuito comercial gerou efeitos e foi através desse projeto que captou a atenção da editora Príncipe, que a convidaria para colaborações futuras. "Todo o meu trabalho como artista atualmente surgiu devido ao Calendário Sonoro", conclui.


Daí para os palcos foi uma questão de tempo e esse ponto levou-nos a outras perguntas: quem é a XEXA no palco e o que é que esse espaço representa? Para a artista, o palco é uma extensão quase litúrgica da sua relação com o som, onde mais do que performar, procura construir atmosferas imersivas que envolvam o público numa espécie de transe contemplativo. "Gosto bastante da ideia de criar uma experiência. As pessoas muitas vezes usam a palavra hipnose", admite. Essa noção de experiência total, que transcende o simples alinhamento de faixas, assenta naquilo a que chama “o triângulo” que estrutura a sua prática artística: o momento performativo (o corpo em palco, a criação em tempo real), o espaço institucional e educativo (onde partilha conhecimento e constrói arquivo), e a colaboração (comunidade, projetos transdisciplinares, cruzamentos entre linguagens).


É precisamente esta lógica de interdependência entre os três vértices; performance, arquivo e comunidade, que lhe permite alimentar de forma orgânica e contínua o seu processo criativo. Cada dimensão repercute-se nas outras através da construção de uma lógica onde as performances informam os debates nos espaços académicos, os diálogos com outras artistas reverberam nas composições, e os desafios propostos por instituições alimentam novas hipóteses de pesquisa e som. "Estou sempre a fazer música. Porque estou no palco, ou em institutos e academias a fazer algo que contribui para a cultura, ou em colaborações que desafiam e renovam a minha prática", explicou, descrevendo esse equilíbrio como um circuito em movimento contínuo.

"Nós mulheres somos uma força autêntica da natureza. Duvidarmos é mesmo algo social"

XEXA

Entre os seus projetos recentes encontra-se "Síncopes", uma instalação sonora inspirada em mulheres negras que atravessaram a cidade de Lisboa no início do século XX, desenvolvida em colaboração com Cristina Roldão e Zia Soares, e que está em exibição até ao dia 30 de junho no Centro de Arte Moderna Gulbenkian. O projeto, que teve várias fases de pesquisa, criação e partilha pública, explorou a escuta intergeracional como prática artística, histórica e afetiva. Através da figura de mulheres negras de diferentes tempos e geografias, o trio propôs uma reconstrução da memória africana e afrodescendente em contexto lusófono.


XEXA foi responsável pela composição sonora da peça, tendo mergulhado numa pesquisa aprofundada sobre ritmos tradicionais - desde o batuque ao funaná, da puita à morna - para incorporar elementos que evocassem tanto os territórios de origem como as travessias atlânticas. Parte desse trabalho teve por base referências do livro “Tribuna Negra”, da qual Cristina Roldão é co-autora em parceria com Pedro Varela e José Augusto Pereira. "Fiz bastante pesquisa e quando digo pesquisa é ouvir o som, perceber como é que se faz, tentar fazer igual, depois tentar fazer igual com outro instrumento", explicou. Essa escuta ativa e transcriação rítmica teve como base não apenas os instrumentos, mas também os espaços sonoros que os evocam, o mar, as casas, os corpos, os silêncios.


A experiência com Síncopes foi também reveladora no plano humano, ao permitir o encontro entre três mulheres com formações, vozes e visões distintas, mas unidas por um compromisso comum com a escuta, a memória e a reinvenção estética. Esse diálogo intergeracional, pautado tanto pela diferença quanto pela disponibilidade para o confronto criativo, resultou numa partilha que não se esgotou nos ensaios ou nas apresentações públicas e que, de certo modo, se alargou à forma como cada uma passou a pensar o seu próprio lugar na criação e na sociedade.


"Nós mulheres somos uma força autêntica da natureza. Duvidar-nos é mesmo algo social", afirmou XEXA, numa reflexão que sintetiza o que viveu nesse processo coletivo: a consciência de que muitas das inseguranças e bloqueios impostos às mulheres negras nas artes não são naturais, mas moldados por dinâmicas sociais de exclusão, paternalismo e silenciamento. Em Síncopes, essas barreiras foram não apenas nomeadas, mas desmontadas pelo gesto colaborativo, pela troca de saberes entre gerações e pela consciência crítica partilhada.


Apesar do reconhecimento crescente, o percurso de XEXA não se fez sem fraturas. Ao lado da criação e do aprofundamento artístico, houve também experiências de desrespeito e descrédito, fruto de um sistema onde o género e a idade ainda operam como filtros de validação. Relata episódios em que promotores fugiram com pagamentos de atuações e situações de bastidores em que foi questionada quanto à sua capacidade técnica, simplesmente por ser uma jovem mulher negra num ambiente ainda dominado por homens. Essas experiências, longe de a travarem, conduziram-na a desenvolver uma postura mais controlada e cautelosa nos contextos profissionais. "Desenvolves uma persona na música que é um bocado mais fria."


Esse registo de autopreservação, que afirma servir também como uma espécie de blindagem emocional, não é incomum entre mulheres no meio artístico. XEXA reconhece que é uma estratégia de sobrevivência, "se uma mulher se rir muito num estúdio, mesmo que seja artístico, aproveitam-se. Seja o promotor, seja o Uber driver, seja o segurança". Daí a importância do foco, da seriedade e do trabalho rigoroso como armas contra o desmerecimento sistemático. "Não aparecer muito, mas aparecer quando é preciso. Mas quando aparece, está séria e focada."

"A nós [artistas, produtores e agentes culturais] , cabe-nos criar"

XEXA

Num momento em que Portugal se confronta com o encerramento de espaços, vide a recente polémica com a possibilidade de encerramento do Espaço Manas, a possibilidade de esvaziamento do financiamento público e uma retórica política onde a cultura ocupa cada vez menos espaço, XEXA alerta para a urgência de construir estruturas próprias; arquivos, plataformas, redes, que assegurem a continuidade e a autonomia da arte negra, sem dependência dos centros de poder institucional. Para a artista, a validação externa, ainda que desejável em certas circunstâncias, não pode ser o motor nem o critério de legitimação de uma prática cultural. "A nós [artistas, produtores e agentes culturais] cabe-nos criar mesmo. Criar", afirma, convicta de que a produção artística pode e deve operar como forma de resistência e de construção de imaginários alternativos.


Nesse sentido, a crítica estende-se também ao papel insidioso da tecnologia contemporânea e da sua capacidade de mediar e distorcer o acesso ao real. "Tu não vês a realidade das coisas. Vês um feed criado para te manter contente e preso lá", observa, numa reflexão que denuncia o isolamento algorítmico a que os indivíduos são sujeitos nas redes sociais, onde as bolhas de opinião e os filtros de confirmação impedem o confronto com a complexidade do mundo. O problema, segundo a artista, não reside apenas na superficialidade da informação, mas na forma como a tecnologia reconfigura a atenção, a memória e a própria capacidade de pensar criticamente. A arte, nesse contexto, torna-se um dos poucos espaços possíveis para restituir densidade à experiência e para interromper o automatismo do consumo passivo de conteúdo.


A crítica sobre o estado da cultura, a erosão da atenção e o papel das redes sociais como molduras enviesadas da realidade não encerram a entrevista num tom de lamento, antes servem de impulso para o que XEXA delineie o próximo ciclo do seu percurso artístico. Com o álbum "Many Blessings" em fase de finalização e uma participação na compilação da editora Príncipe, intitulada "Não Estragou Nada", a artista prepara um período de lançamentos que promete consolidar a coerência estética e política que tem caracterizado o seu trabalho. "Agora é só partilhar", diz com a serenidade de quem sabe que o gesto criativo se completa no encontro com o outro.

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