Academia Bantumen #1: A história das vozes da juventude PALOP na Guarda

July 15, 2025
Academia Bantumen juventude PALOP

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Na cidade mais fria e alta de Portugal, a juventude africana se movimenta com resistência, união e construção coletiva. Este primeiro episódio da rubrica Academia BANTUMEN mergulha na história da AEPALOPG, a Associação de Estudantes dos Países de Língua Oficial Portuguesa na Guarda, criada em 2002 com o propósito de representar e apoiar a comunidade académica PALOP num território muitas vezes esquecido.

Além de uma estrutura associativa, a AEPALOPG é um espelho das inquietações, conquistas e desafios de quem decide estudar fora do seu país, num contexto onde a cor da pele, a origem e o sotaque ainda definem barreiras de pertença. Ao longo dos anos, e com diferentes lideranças, a associação tem sido palco de lutas internas, momentos de ruptura e renascimentos. Mas também tem sido espaço de aprendizagem, crescimento pessoal e afirmação coletiva.



Nas palavras dos seus membros - antigos e atuais - ecoam temas como liderança, identidade, superação, representatividade, pertença e escuta comunitária. António Cardoso fala de reconstrução e resiliência; Luís Cunha de visão colaborativa; Rafaela Lourenço de autoestima e integração; Didier Baldé de missão comunitária; e a psicóloga Odília Cavaco acrescenta a visão institucional, reconhecendo o papel simbólico e prático da associação como elo de ligação entre estudantes e cidade.

Este é um retrato íntimo e político da experiência de ser jovem, africano e estudante numa cidade do interior de Portugal. Uma reflexão coletiva sobre o impacto que o associativismo tem  e pode continuar a ter na construção de uma academia mais diversa, justa e inclusiva.

António Cardoso é são-tomense, finalista do curso de Gestão de Recursos Humanos e ex-presidente da AEPALOPG. Chegou à Guarda em 2021 com o objetivo de se licenciar, conciliando trabalho e estudo. O seu mandato ficou marcado por reconstrução estrutural, reposicionamento da associação e gestão de um cenário adverso: a desistência de membros da sua lista, falta de apoio financeiro e dívidas herdadas da direção anterior. Apesar das dificuldades, destaca-se pela capacidade de reagrupar forças e garantir a continuidade da associação.

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Como descreves os desafios que a associação enfrentou durante o teu mandato?


Mesmo após duas décadas, a associação ainda enfrentava desafios estruturais, como a falta de financiamento, a descontinuidade das equipas e o pouco reconhecimento formal. Não foi fácil, mas conseguimos levar a associação até uma nova candidatura. Como muitos da minha lista desistiram, chamei os candidatos da lista perdedora e recomeçamos.


Como foi o teu percurso pessoal enquanto presidente?


 Aprendi a ser resiliente, perseverante, a não desistir mesmo com os obstáculos. Como estudante, tive o sonho de ir de Erasmus, mas antes de ir para o Brasil tratei de toda a documentação da associação e, com a ajuda da Federação, foi possível pagar as dívidas deixadas pela anterior direção.


Se pudesses voltar atrás, farias algo diferente?


“Escolheria pessoas que estivessem comigo de corpo e alma, pois essa falta de liderança descredibiliza a imagem da associação.


Que impacto teve a AEPALOPG na tua vida?


Teve impacto porque, a nível pessoal, deu-me uma visibilidade muito grande no meu país (São Tomé e Príncipe), pois alguns políticos começaram a procurar saber quem sou, e até mesmo na Guarda. A associação levou-me a lugares que eu sozinho talvez nunca teria acesso.


Qual é o balanço que fazes da associação? Positivo ou negativo?


Hoje, considero que o balanço da associação é positivo, porque esta ganhou notoriedade dentro da comunidade académica PALOP e não só. “O trabalho da AEPALOPG é reconhecido em toda a cidade da Guarda.


Luís Tomás Cunha, guineense, é licenciado em Comunicação e Relações Públicas e atual mestrando em Gestão. Foi vice-presidente durante o mandato de António Cardoso e assumiu várias vezes o papel de liderança. A sua entrevista destaca-se pela ênfase na importância da escuta da comunidade estudantil PALOP, na criação de eventos que resgatassem o sentimento de pertença, e na ação colaborativa como ferramenta de reestruturação. O seu legado é marcado pela visão coletiva e pelo esforço em devolver à associação a sua relevância social e simbólica. O ex-vice-presidente que integrou a direção de António Cardoso e assumiu funções de liderança na sua ausência, afirma que um dos marcos alcançados foi reerguer a associação.


Que papel teve na Associação e quais foram os principais marcos?


 Em colaboração com as pessoas com quem tive a oportunidade de trabalhar, conseguimos desenvolver diferentes atividades em prol da comunidade de estudantes PALOP na Guarda, incluindo reerguer a associação, que se encontrava num período de decadência devido ao desânimo dos membros.


De que forma as vossas iniciativas contribuíram para a comunidade estudantil?


 Para reaproximar a associação dos estudantes PALOP, tivemos de organizar várias atividades, com destaque para a receção inicial, onde ouvimos os estudantes para definir ações de acordo com os seus interesses. Promovemos também o Mês da Partilha, com inúmeras sessões de palestras e tertúlias, para nos inteirarmos mais sobre a comunidade e abordar temas de grande relevância.


E pessoalmente, que impacto teve este envolvimento?


Ao relacionar-me com pessoas de diferentes culturas, aprendi a respeitar os outros, a compreendê-los e a saber como lidam com diferentes aspetos. Podemos dizer que somos todos africanos, mas o ser africano sobrepõe o facto de termos algumas semelhanças e diferenças, e isso enriqueceu o meu percurso como líder.


Porque decidiste juntar-te a outra lista?


Mais vale a comunidade em si do que a lista.



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Rafaela Lourenço

Rafaela Graciane do Nascimento Lourenço é estudante angolana da licenciatura em Comunicação e Relações Públicas e atual tesoureira da associação. A sua história é um testemunho íntimo sobre a experiência de crescer entre culturas, enfrentando desafios identitários enquanto jovem negra em Portugal. Rafaela resgata a importância da autoestima apoiada na base familiar, bem como o papel da associação na promoção da integração e do bem-estar estudantil. A sua presença na atual direção representa um esforço para profissionalizar e dar continuidade a uma agenda mais estruturada e sensível às questões de comunidade e acolhimento. 


Como foi a tua vinda para Portugal e o processo de integração?


Vim de Angola com 11 anos. A decisão de ficar em Portugal foi inesperada, mas tive uma base familiar que facilitou a minha adaptação, tanto na escola como na vida em geral. Estávamos de férias e ao sair da igreja a minha mãe perguntou-me se não queria ficar cá a estudar. Eu respondi que sim, até porque já tinha a minha tia a viver em Lisboa. Acho que isso tudo depende da base familiar que nós temos, porque senti que conseguiram guiar-me, facilitando a minha convivência na escola.”


Sentiste desafios enquanto jovem negra num ambiente diferente?


A convivência com as minhas colegas de turma interferiu muito na maneira que me via e comecei a fazer comparações. Estranhei o ser diferente, porque em Angola éramos todos negros, sem distinção e quando percebi das coisas à minha volta tudo era distinto: o cabelo, o tom de pele. O que me fez alisar o cabelo no 7.º ano.

O que te ajudou a recuperar a autoestima?


Ressalto novamente a base familiar, que foi de extrema importância na elevação da minha autoestima enquanto mulher negra.


Quais são os principais objetivos da associação atualmente?


Estes passam pela integração dos alunos, desde a adaptação à faculdade até aos alojamentos. Relativamente às nossas atuais prioridades, acredito que seja a calendarização de novas atividades, que no fundo promovam o bem-estar e a união da nossa comunidade.


Como têm se comunicado com os estudantes?


Mantemos um grupo com todos os estudantes PALOP na Guarda e páginas nas redes sociais, onde divulgamos o nosso cronograma e as parcerias estabelecidas com a Câmara Municipal da Guarda, bem como com o Gabinete de Apoio Psicológico do Politécnico.



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Atual presidente Didier Baldé 

Didier Quebalinho Baldé é guineense e atual presidente da AEPALOPG. Estudante de Comunicação Multimédia, chegou a Portugal em 2022 e começou por integrar o departamento de comunicação da associação. A sua entrevista revela uma abordagem estratégica e determinada: a vontade de dar mais visibilidade à associação, torná-la um instrumento de transformação, e melhorar o diálogo com a comunidade académica e local. É um dos raros testemunhos onde se observa claramente a associação como “missão comunitária".


Como foi a tua adaptação? Foi difícil?


A minha adaptação não foi tão difícil, como eu pensava, porque quando cheguei, conheci colegas que foram muito bons para mim.


Quem é o Didier como presidente e estudante?


Didier é um estudante guineense, que está no politécnico a servir os estudantes PALOP na Guarda. Fazer parte da associação é, para mim, um desafio e uma obrigação enquanto pessoa da comunidade. É fazer parte de uma associação que contribui com mudanças significativas na vida destes estudantes


Como foi a tua trajetória nos dois eixos?


Comecei a estudar no politécnico e soube da associação, da qual convidaram-me para fazer parte do departamento de comunicação, onde dei a minha contribuição enquanto membro. Quando chegou a época das eleições, decidi candidatar-me para que pudesse mostrar os objetivos e a missão que a AEPALOPG precisava num novo panorama.


Porque é que te candidataste?


Por querer fazer uma mudança no panorama estudantil. A associação precisava de mais visibilidade dentro da comunidade PALOP, logo o que mais me motivou foi dar reconhecimento extra a ela.


Qual o balanço que faz do trabalho da atual direção?


Podemos fazer um balanço positivo, apesar dos desafios. Certos objetivos foram alcançados, outros não, porque o mandato é apenas de um ano e não dá margem para fazer muita coisa, mas acredito que conseguimos atingir alguns e que a nova direção possa dar continuidade aos processos.


Que panorama esperas ver no contexto do ensino superior em Portugal, relativamente aos estudantes africanos?


Espero ver um ensino mais acolhedor para os estudantes africanos, porque ainda falta. Além disso,  que as associações possam trabalhar mais em colaboração com eles.


Que mensagem deixas aos estudantes que pretendem ingressar no ensino superior português? 


O desafio é maior, mas não há nada impossível com foco e determinação. Com o empenho conseguimos chegar lá e cada um de nós tem essa responsabilidade, conforme os seus objetivos, de contribuir para o seu país.


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Odília Cavaco

Odília Cavaco é psicóloga e atual Provedora do Estudante do Politécnico da Guarda. O seu testemunho institucional é crucial para compreender a perceção externa da AEPALOPG. Avalia positivamente o papel da associação, destacando a sua importância simbólica, representativa e prática, tanto na integração académica como no apoio a projetos de saúde mental, inclusão e cidadania. Destaca ainda os desafios históricos da realidade associativa da Guarda e o caminho que a AEPALOPG tem vindo a percorrer para alcançar o reconhecimento institucional.


Como avalia o papel da AEPALOPG na integração dos estudantes africanos no contexto académico e social da Guarda?


Diria que avalio o papel da AEPALOP como muito positivo e extremamente importante, quer na vertente interna de ligação entre os estudantes PALOP e os vários serviços e gabinetes da instituição, e entre os estudantes e a comunidade académica em geral, quer na sua vertente externa de ligação à comunidade e às várias instituições da cidade. Haver uma Associação de colegas que os representam é fundamental, de um ponto de vista prático (de ajuda na resolução de dificuldades de ordem informativa, legal, social, académica), mas também de um ponto de vista simbólico, o que significa ter existência enquanto comunidade, com um sentir comum, e não apenas enquanto indivíduos isolados. Estou certa que os primeiros estudantes a chegarem à Guarda ter-se-ão sentido muito mais “estranhos” do que os que chegam hoje, pelo número e porque há uma Associação que lhes dá visibilidade, antes mesmo de chegarem.


Quais têm sido, na sua opinião, os contributos mais significativos da associação para a comunidade estudantil?


Essa questão será melhor respondida pela própria AEPALOP, mas tanto quanto tenho conhecimento, alguns dos contributos mais significativos são a criação de um “espaço de inclusão” para todos conviverem; a representação dos estudantes PALOP na Associação Académica através de um membro da AEPALOP; também a criação de um grupo whatsapp através do qual todos podem partilhar as suas dúvidas e necessidades, e ser informado, de modo a que ‘ninguém fique para trás’.


Acha que a AEPALOPG tem recebido o reconhecimento institucional que merece? Porquê?


A realidade associativa dos estudantes do IPG é, por motivos históricos, múltipla; o que não constitui à partida um factor de coesão e de integração académica entre os vários grupos de estudantes. A designada Associação Académica da Guarda (AAG) tem feito um grande esforço, nos últimos anos, para aproximar as várias Associações, incluindo a AEPALOP. No caso particular da AEPALOP, além de um dos seus membros em representação na AAG, a AEPALOP tem um espaço físico próprio na AAG. A instituição em geral reconhece a importância dos estudantes PALOP e de se auto-representarem através de uma associação estudantil.


De que forma a provedoria tem colaborado ou pretende colaborar com a associação?


A Provedoria do Estudante (PE) tem procurado estar presente na vida da AEPALOP e dos estudantes PALOP, dando resposta às suas solicitações individuais e de grupo, reunindo com a AEPALOP e os seus departamentos, convidando-os a colaborarem em projetos da instituição, nomeadamente projectos de saúde mental no ensino superior. Mais especificamente, nos últimos anos, no Projecto Deseja-Comunicar-Agir, financiado pela Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e o Projecto “Passo a Passo…”, financiado pela DGES. Trata-se de projectos que incluem actividades extra-curriculares de promoção da saúde mental e nas quais os estudantes podem colaborar na dupla vertente organizacional e participativa. Atividades como dança, representação, artes plásticas, escrita, voluntariado, entre outras. São formas privilegiadas de aprender e/ou desenvolver vários tipos de competências, de descobrir os próprios talentos e de comunicar/interagir com novos colegas. Também, procurando conhecer melhor as necessidades dos estudantes imigrantes (PALOP e outros), através de um inquérito anónimo, por forma a chegar ao maior número de estudantes.


Que impacto acredita que o trabalho da AEPALOPG pode ter a longo prazo na construção de uma academia mais diversa e inclusiva?


Uma academia cada vez mais diversa e inclusiva, dependerá, no longo prazo, do trabalho que a AEPALOP for fazendo em termos de criar cada vez mais proximidade entre os estudantes PALOP, os nacionais e os de outras nacionalidades, mas também entre os estudantes das várias nacionalidades PALOP. E como em qualquer interacção, trata-se de INTER-acção (significa “acção entre”)pelo que há sempre, no mínimo, dois lados na situação. É preciso também que todos os estudantes, cada estudante, se permita ser implicado no processo. Quanto mais os estudantes procurarem a AEPALOP, mas esta se sentirá desafiada, e quanto mais isso acontecer, mais iniciativas fará sentido levar a cabo para apoiar e unir a comunidade académica – de que todos são parte.


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Odília Cavaco

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