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Embora Bissau já tenha solidificado o seu lugar no meu coração como a mais verdadeira definição de “lar” - e agora até como um dos códigos postais da minha lista de residência -, posso afirmar, com toda a sinceridade, que aterrei lá este ano com um paraquedas carregado de dúvidas e sonhos. Fui com a intenção clara de perceber se todas as minhas esperanças e projeções de uma mudança definitiva seriam ou não confirmadas para o futuro próximo.
Como alguém da diáspora que viaja frequentemente pelo continente, já não havia grande espaço para dúvidas: este é o lugar onde quero viver a longo prazo. Mas como qualquer pessoa minimamente consciente, decidi fazer o que muitos evitam - ficar para além das típicas férias de duas semanas e mergulhar a fundo na realidade da terra-mãe. Queria perceber, sem romantizações, se esta escolha era mesmo minha e se a estava a fazer com responsabilidade. E, pela primeira vez, levei na bagagem paciência, cuidado e empatia, deixando de lado as percepções ocidentais sobre como o mundo deve funcionar.
Chegar a Bissau como uma espécie de imigrante na minha própria terra foi uma experiência transformadora. Ninguém me preparou para os três meses de singularidade e amor genuíno que se desenrolaram. Ver Bissau com outros olhos, sem pressas, sem filtro, foi como recomeçar.
Entre semanas de trabalho remoto, banhos de sol, degustação nada sensata de mangas e cajú e reencontros com os rostos e lugares que só vejo uma ou duas vezes por ano, tive a sorte de me deparar com uma publicação sobre a Bienal Moac Biss. Uma plataforma recém-criada, com o propósito de lançar o primeiro evento do género no país: um marco artístico e cultural que, ao longo do mês de Maio, exploraria o tema “Mandjuandadi: Identidades em Liberdade”. E cada forma de arte dentro da bienal tinha uma curadoria dedicada, e o cuidado com que cada detalhe foi pensado era notável.
Como coordenador geral, estava o inconfundível Miguel de Barros, um nome que dispensa apresentações pelo impacto inegável do seu trabalho em prol da Guiné-Bissau, dentro e fora das fronteiras. Ao lado dele, uma equipa curatorial de luxo: Zaida Pereira (Literatura), Welket Bungué (Artes Performativas e da Imagem em Movimento), Karyna Gomes (Música), Nú Barreto (Artes Plásticas e Visuais) e António Spencer Embaló (Conferências e Políticas Públicas). Todos nomes de peso, reconhecidos tanto no país como na diáspora, com percursos marcados por contribuições relevantes e duradouras na revalorização da imagem e essência guineense no mundo.
Apesar da excitação por participar e visitar todos os eventos do programa, uma pergunta não me saía da cabeça: como poderia a Guiné-Bissau - um país onde quase não existem galerias e escolas arte ou financiamento governamental para o sector - realizar uma bienal de arte?
Foi aí que a dúvida se transformou em curiosidade e depois em ação. Decidi contactar o Miguel diretamente para saber de que forma poderia contribuir para aquela que, desde o início, parecia ser uma jornada ambiciosa, para não dizer insana. Após alguma troca de ideias, o Miguel encaminhou-me para o António, responsável pela gestão de voluntários.
O encontro com o António foi quase terapêutico, entre partilhas de traumas vividos em solo português, um carinho pelo Wilds Gomes e reafirmações do amor pela Guiné-Bissau, percebemos que partilhávamos o mesmo sonho: transformar o nosso país sem perder o senso crítico do que ainda precisa ser feito. A partir daí, tudo ficou claro. Tinha acabado de embarcar numa aventura sem igual.
Ao meu lado, uma equipa de pessoas tão “loucas” quanto eu, que se voluntariam, determinadas em montar a melhor equipa entre media e a fundação MoAC Biss com os recursos limitados que tínhamos: Lara Pereira, Samantha Sisa, Samba Baldé, Mamadu Alimo Djaló, Andetni Có e Ruben Aziz. Juntos, puxámos os cordões, improvisámos, adaptámos e fizemos acontecer.
Foi aí que nos apercebemos que, da Guiné-Bissau a Timor, do Japão ao Brasil, a bienal reuniu pessoas de vários cantos do mundo, todas com a mesma missão: mostrar o quanto este país é brilhante e repleto de potencial. E mesmo para muitos que estavam a visitar Bissau pela primeira vez, a conclusão era unânime: esta não seria, de forma alguma, a última vez.
“O nosso governo e o nosso povo precisam urgentemente de alargar os horizontes, de se reintegrarem com profundidade na nossa cultura, na nossa história e no nosso legado coletivo.”
Jamila Pereira
A Bienal Moac Biss transformou Bissau num verdadeiro epicentro de efervescência cultural. Foi uma afirmação, uma celebração de resistência, memória, e reinvenção. Uma plataforma viva onde cultura, política e arte se cruzaram com a vivência quotidiana da Guiné-Bissau. E sim, aprendi muito. Sobre nós, sobre os outros, e sobre o poder que a cultura tem de reunir, provocar e curar. Aqui estão os momentos que mais me marcaram.
Começo pelo painel “Vidas duma Bienal em contextos desafiantes”, com Miguel de Barros e Ousseynou Wade. Uma conversa sólida, com reflexões urgentes sobre o fazer cultural num país que vive entre crises cíclicas e resistência criativa. Foi uma aula sobre a tenacidade dos fazedores de cultura guineenses - e africanos - que insistem em criar, mesmo sem chão firme.
Outro momento que me marcou foi o painel “Mulher, maternidade e carreira musical”, com as poderosas Karyna Gomes e Selma Uamusse. Falaram sem rodeios sobre a difícil gestão entre palco e fraldas, criação artística e criação de filhos, num mundo que ainda tenta empurrar mulheres artistas para a margem. Trouxeram verdade, vulnerabilidade e força.
Os palcos da Bienal também foram testemunhas de momentos históricos. A actuação dos Furkuntunda, que voltaram aos palcos depois de anos de ausência, foi pura emoção. Uma volta ao passado com os pés no presente. E quando Selma Uamusse subiu ao palco, já depois de nos arrepiar no painel, trouxe um concerto vibrante, ritualístico, quase transcendental que nos conectou ao verdadeiro significado do que é ser PALOP. Também destaco a energia jovem e poderosa de Alana Sinke e o concerto político e culturalmente desafiante da brasileira Bia Ferreira, cuja voz firme em defesa das vidas LGBT ecoou como um grito necessário num mundo que ainda as demoniza.
A Mostra de Cinema Mandjuandadi foi um laboratório visual e político. O documentário “Mama Guiné” teve estreia especial e emocionou. Também nos lembrámos de quem somos com os filmes “Xime”, “Nha Fala” e “Sumara Maré”, de realizadores como Flora Gomes, Samira Vera-Cruz e outros nomes fundamentais do cinema guineense. Os debates seguintes, especialmente o painel “Os desafios contemporâneos do cinema africano e guineense” com Sana Na N’Hada, Flora Gomes, Moussa Sene Absa e Filipa César, também colocaram o dedo na ferida: como fazer cinema com tão poucos recursos e ainda assim resistir e reinventar linguagens?
O painel “Kriol – Língua oficial e património nacional” foi um momento alto. Augusta Henriques, Odete Semedo e outros convidados desafiaram-nos a olhar para o crioulo não apenas como língua do povo, mas como ferramenta de resistência e criação. Já no painel “Em torno da literatura: construindo pontes”, nomes como Ondjaki e Wellington Marçal de Carvalho falaram sobre a força da palavra escrita como forma de criar novas cartografias emocionais e políticas no mundo lusófono.
O lançamento do livro “Itinerários de Amílcar Cabral”, foi mais do que simbólico, foi um reencontro com a história que ainda nos molda e com uma versão carinhosa, quente e nunca vista de Cabral. Este foi um dos momentos que mais me ensinou: não se constrói futuro sem mergulhar nas camadas complexas do nosso passado.
A exposição fotográfica “Mandjuandadi: Identidades em liberdade”, de Samba Baldé e Quintino Ramalho, foi uma lufada de ar fresco. Imagens que falam sem precisar de legenda, retratando a mulher guineense fora dos estereótipos, em liberdade, com dignidade. O mural de Vhils, “Mandjua”, uma dedicatória ao grande Jose Carlos Schwarz, inaugurado durante o evento, trouxe arte urbana de alto calibre para o centro da cidade – uma intervenção visual que ficou na retina e com certeza parasempre nas nossas lembranças.
O teatro também teve seu lugar com espectáculos como “As Águas Também Choram”, de Joãozinho da Costa, e “Arus Femia”, da Zia Soares, que tocaram em feridas abertas da sociedade guineense, com coragem e beleza bruta.
No entanto, nenhum evento com a ambição e a envergadura da Bienal Moac Biss acontece sem fricções. E é justamente entre os bastidores e os brilhos que se entendeu a verdadeira força de uma iniciativa cultural como esta. Foi uma bienal que me mostrou tanto o que é possível fazer quando se trabalha com amor, como também os obstáculos muito reais que continuam a marcar a paisagem cultural guineense.
Um dos grandes desafios foi garantir que a população local se sentisse parte da bienal – e não apenas como espectadores distantes. Houve momentos em que ficou claro que muita gente em Bissau nem sabia que o evento estava a acontecer. E isso dói. Porque uma bienal feita aqui, com artistas de cá e da diáspora, precisa também ser vivida por quem cá está todos os dias. Não basta fazer, é preciso comunicar, envolver, convidar abertamente.
Houve também um esforço constante (e necessário) para desmitificar a ideia de que este era um evento “só para alguns”. Aquela ideia sussurrada de que para ir à bienal era preciso vestir-se de certa forma, falar com um certo sotaque, ter um certo estatuto ou ser "conhecido". Nada disso era verdade, e mesmo assim, o mito pairava. Quebrar essa barreira simbólica foi tão importante quanto organizar qualquer painel ou concerto. Porque cultura não é para elite, é para todos.
Os clássicos desafios de logística e financiamento também estiveram presentes. Não é segredo que eventos desta dimensão, em contextos como o nosso, são quase milagres organizativos. E, infelizmente, a falta de apoio governamental direto foi sentida. Um evento que honra e exporta a alma cultural do país merecia mais reconhecimento institucional. Mais do que palmas no fim, merecia presença, suporte e continuidade.
E, claro, os bastidores também nos lembraram uma lição crua: neste meio, o que é teu – ideia, espaço, trabalho, visão – só se mantém teu se for bem cuidado, protegido e defendido. A política por trás da cultura nem sempre é leve, e por vezes o que parecia colaboração revela-se competição ou um complexo de mártir.
Mas seria injusto falar dos espinhos sem celebrar o jardim. Porque a Bienal Moac Biss também foi um lugar de encontros mágicos. Um dos pontos altos foi o intercâmbio com a diáspora, uma fusão intensa de experiências, referências e afetos. Gente que vive fora, mas não se desligou da raiz, como eu, e que trouxe perspectivas novas, frescas, e ao mesmo tempo profundamente enraizadas.
Culturalmente, a bienal operou em outro nível. Foi como mergulhar fundo, para além da superfície exótica que às vezes nos vendem de nós próprios. O programa foi absolutamente brilhante: intenso, provocador, transformador. Cada painel, cada concerto, cada mostra de cinema teve camadas que nos desafiaram a pensar, a sentir e a interrogar as nossas próprias certezas. Uma reflexão viva.
O mais bonito? A bienal soube honrar a Guiné-Bissau. Mostrou o país de uma forma que raramente se vê: completo, complexo, belo. Cada atividade carregava um pedacinho da alma nacional, e foi com orgulho que vi estrangeiros e guineenses a redescobrirem o nosso país com olhos limpos, incluindo eu.
Nos bastidores, a força das equipas também foi notável. Houve um espírito de colaboração genuína, um trabalho conjunto onde o ego ficou (quase sempre) em segundo plano. E disso nasceram amizades para a vida. Ver jovens, artistas, técnicos, produtores e voluntários a puxar todos para o mesmo lado foi das coisas mais inspiradoras que presenciei. Um lembrete poderoso de que, mesmo com todos os obstáculos, a cultura feita com coração e entre mãos unidas, move montanhas.
Ninguém poderia ter-me preparado para a viagem em que me meti - nem o Miguel, nem a Zaida, nem a Lara. Foram cinco semanas que desmontaram por completo a ideia que eu tinha da Guiné-Bissau e, peça por peça, reconstruíram uma imagem muito mais rica, profunda e transformadora. Hoje, carrego essa experiência no corpo e no espírito, e só penso em continuar. Em mostrar ao mundo, com orgulho, do que o meu país é realmente feito.
Ao longo da Bienal, percebi que a terra dos meus antepassados é infinitamente maior do que alguma vez imaginei. Não apenas por causa do cinema, da música ou das artes, embora esses elementos tenham tido um papel crucial, mas porque há aqui um verdadeiro reino escondido, repleto de tesouros que ainda não foram completamente descobertos. Um lugar onde vivem culturas, histórias, vidas e heranças que, com um simples toque, podem arrancar o chão debaixo dos pés de qualquer um. Chorei, ri e apaixonei-me, mais uma vez, pela Guiné-Bissau.
Mas com essa paixão veio também uma urgência: a de alertar para o quanto precisamos despertar como nação. O nosso governo e o nosso povo precisam urgentemente de alargar os horizontes, de se reintegrarem com profundidade na nossa cultura, na nossa história e no nosso legado coletivo. Estamos a viver numa terra que já foi berço de reinos e governantes poderosos. Precisamos de nos comportar à altura dessa memória com ambição, dignidade e estratégia. Porque se não estamos a investir nas nossas pessoas, na nossa identidade e no nosso património, como esperamos sobreviver ou triunfar num mundo que constantemente nos desafia através das dinâmicas do capitalismo e da supremacia branca? Como? A resposta é simples: precisamos de estruturas sólidas. Espaços seguros para artistas. Salários dignos. Programas de residência. Plataformas educativas que garantam qualidade, continuidade e representatividade. E precisamos de investimento a sério, não só de alguns doadores privados ou do sacrifício dos próprios curadores. Só assim conseguimos garantir que cada comunidade, cada grupo étnico e cada cidadão tenha acesso e um senso de pertença dentro destes espaços. Precisamos desconstruir, de uma vez por todas, a ideia de que a cultura é coisa de elite, quando, na verdade, é o povo que a sustenta e a mantém viva.
Queremos e precisamos de ser vistos, ouvidos e apoiados. Precisamos das ferramentas certas para colocar a Guiné-Bissau no mapa continental e global como um polo de cultura e património, um país que acompanha os outros 53 do continente com cabeça erguida e identidade afirmada.
Espero sinceramente que tudo o que foi vivido na Bienal Moac Biss 2025 permaneça. Que toque consciências. E que nos leve a agir com firmeza para que a edição de 2027 seja ainda maior, mais estruturada e mais influente - um verdadeiro símbolo dentro e fora das nossas fronteiras.
Porque a Bienal Moac Biss deste ano foi tudo o que uma bienal deve ser: confronto, catarse, celebração e construção. Saí de lá diferente. Mais rica, mais crítica, mais conectada com as camadas da cultura guineense e com a produção africana como um todo. E em 2027 sei que haverá muito mais.
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