Black Gaze chega à Gulbenkian para mostrar o cinema português visto de outro lugar

November 6, 2025
Black Gaze Gulbenkian
Imagens de Nha Mila (2020), de Denise Fernandes

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Entre os dias 8, 9, 15 e 16 de novembro, o Centro de Arte Moderna da Gulbenkian recebe a mostra Black Gaze – Mostra de Cinema Negro em Portugal, com curadoria de Ana Cristina Pereira (Kitty Furtado), um convite que convoca o olhar de realizadores afrodescendentes para repensar a representação e o lugar das perspetivas negras no cinema português.


Durante décadas, o cinema português construiu-se a partir de um olhar homogéneo que definiu não apenas o que era mostrado, mas também o que podia ser imaginado. A ausência de corpos negros, de perspetivas femininas e de histórias fora do centro é encarada por alguns como uma forma de perpetuar a narrativa dominante de uma nação que raramente se pensou a partir da diferença. Nas imagens, como nas instituições, a diversidade que compõe o país permaneceu invisível ou representada sob o olhar do outro. E mesmo quando se aproxima da ideia de inclusão, o cinema português ainda tende a enquadrar a presença negra como exceção ou adorno, raramente como centro narrativo.

É neste território de lacunas que o conceito de Black Gaze encontra o seu sentido. O termo surge como resposta à estrutura visual hegemónica que organizou o cinema ocidental e que, na sua forma mais visível, Laura Mulvey descreveu nos anos 1970 como male gaze, o olhar masculino que transforma o feminino em objeto de contemplação. O Black Gaze propõe o contrário, um olhar negro sobre o mundo, não enquanto categoria identitária, mas como gesto político e epistemológico. É um modo de ver e de narrar que recusa a neutralidade do olhar dominante, porque reconhece que a neutralidade, em si, é uma construção de poder.

Em Portugal, o termo ganha agora uma expressão concreta com a mostra Black Gaze – Mostra de Cinema Negro em Portugal, que decorre nos dias 8, 9, 15 e 16 de novembro, no Estúdio do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, em Lisboa. A curadoria é de Ana Cristina Pereira, também conhecida como Kitty Furtado - investigadora, crítica e uma das vozes que mais têm refletido sobre o modo como o cinema português representa (ou omite) as suas periferias.

“O termo gaze é intraduzível”, explica. “Não é apenas olhar, é um discurso, e o discurso nunca é neutro”, afirma, deixando claro que o ponto de partida do projeto passa por analisar de que forma o cinema negro produzido em Portugal e nas suas diásporas devolve à imagem o que durante muito tempo lhe foi retirado: a pluralidade de perspetivas e de sujeitos.

A mostra é, assim, a materialização de uma pesquisa de vários anos sobre o cinema negro produzido em Portugal e nas suas margens, filmes que revelam uma outra história, construída fora dos circuitos centrais e, muitas vezes, à margem das estruturas institucionais. Kitty descreve-os como o resultado de uma “contra-esfera pública”, formada por realizadores afrodescendentes e africanos que, partilhando o português como língua comum, criam espaços alternativos de expressão. “Esses sujeitos não têm a mesma possibilidade de afirmação na esfera dominante”, observa. “Por isso, constroem lugares próprios, onde as suas identidades e memórias podem circular.”

A Black Gaze organiza-se em quatro eixos – entre-lugar, memória e ancestralidade, feminismo e ecologia, e anti-racismo – que sintetizam as linhas mais consistentes do cinema negro contemporâneo. O primeiro, o entre-lugar, reflete a condição diaspórica de quem vive entre geografias e pertenças culturais. É a realidade de muitos cineastas afrodescendentes e de personagens que se movem entre África, Europa e o espaço simbólico da memória. O filme Nha Mila, de Denise Fernandes, ilustra essa travessia ao retratar a história de uma mulher que parte da Suíça para Cabo Verde e faz escala em Lisboa, aproveitando as horas de espera para reencontrar familiares na Cova da Moura. A curta distância entre aeroporto e bairro condensa o deslocamento maior que atravessa a sua vida, o de viver entre mundos, pertencendo a ambos e a nenhum.

No eixo da memória e ancestralidade, a curadoria dá corpo à urgência de revisitar a história portuguesa e os seus silêncios. “Trata-se de iluminar o que foi invisibilizado, de resgatar fragmentos que ficaram fora do arquivo”, diz. Filmes como Memória, de Welket Bungué, dialogam com a história da libertação africana e com a transmissão intergeracional da experiência colonial. São obras que aproximam o passado do presente, mostrando que o tempo histórico não é linear, mas espiralar e que o passado, mesmo reprimido, continua a moldar o agora.

O terceiro bloco, feminismo e ecologia, reflete uma das dimensões mais marcantes do cinema negro em Portugal: a sua matriz feminina e, em muitos casos, feminista. Ao contrário do cinema nacional, tradicionalmente dominado por homens brancos, esta esfera criativa é ocupada maioritariamente por mulheres e pessoas não binárias. Filmes como A Ilha, de Mónica de Miranda, ou Hanami, de Denise Fernandes, articulam narrativas de resistência com imaginários de reconciliação entre o humano e a natureza. A ideia de tempo surge aqui como metáfora e remete para o tempo espiralar africano, que se opõe à linearidade ocidental, dá espaço à coexistência do passado e do futuro, e à possibilidade de reinventar o presente.

O último eixo, o anti-racismo, é inevitável num país onde a dificuldade de “se olhar ao espelho” ainda persiste. Para a curadora, o cinema é sempre político, mesmo quando disfarçado de entretenimento. “Dizer que um filme é só entretenimento já é uma afirmação política”, recorda. Ao consumir imagens sem questionar o que nelas está naturalizado, o espectador reproduz ideologias que permanecem invisíveis precisamente por se confundirem com o senso comum. O cinema negro, pelo contrário, desafia esse automatismo e torna visível o que foi normalizado, propondo um outro modo de ver.

Ao longo da conversa, regressa várias vezes à ideia de reparação simbólica. Reescrever a história não é apenas incluir o que ficou de fora, mas reconfigurar o modo como a realidade é percecionada. “Reparar é ver melhor, é voltar a ver o que não foi visto antes”, afirma. Essa revisão do olhar não beneficia apenas as comunidades racializadas, é, acima de tudo, um gesto de restauro coletivo. Ao incluir o que foi excluído, o cinema negro amplia o campo da experiência nacional e devolve complexidade à imagem de Portugal.

Mas essa transformação ainda enfrenta obstáculos estruturais e Furtado não esconde que a produção negra continua a ser marginalizada pelos circuitos de exibição e pelas lógicas de financiamento. “A parte mais difícil é seduzir o público”, admite. “Há desconfiança em relação ao que é percecionado como ‘cinema do outro’. Mas quem o vê, gosta. São histórias humanas, belas, intensas como qualquer outra.” O problema, diz, não é de qualidade nem de interesse, mas de acesso e de oportunidade.

A mostra Black Gaze procura precisamente abrir esse espaço de diálogo. Ao levar o cinema negro para o coração da Gulbenkian, Kitty propõe uma deslocação simbólica de trazer para o centro da cultura portuguesa as histórias, vozes e olhares que têm sido mantidos nas margens. “Não se trata de criar um gueto dentro das instituições, mas de complexificar o discurso nacional”, sublinha. “Não é apagar ninguém; é fazer com que mais vozes sejam ouvidas.”

No final da conversa, o futuro surge com a serenidade de quem sabe o caminho que está a ser traçado. “O cinema negro em Portugal tem um grande futuro, aliás, é o próprio futuro do cinema português”, diz. Há mais filmes a ser produzidos, mais autoras, mais experimentação e, sobretudo, mais consciência do poder do olhar. “Nem tudo o que é feito por cineastas negros é cinema negro”, adverte, “mas quando a questão racial é estrutural na criação, quando há um posicionamento político e estético claro, então estamos perante um cinema que repara, questiona e transforma”, conclui. 

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