Abracemo-nos na ignorância ou avancemos rumo à integração de povos negros na “lusofonia”

September 17, 2025
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Texto escrito originalmente em português do Brasil.

A relação do Brasil com os países africanos de língua oficial portuguesa não é de agora, tem uma história de pelo menos 50 anos (considerando a relação entre Estados independentes), certamente essa relação não tem uma só direção, tem nuances, camadas. Essa conversa é muito importante por vários motivos, mas não é sobre isso exatamente que gostaria de conversar, até porque as “relações” do Brasil com esses países em nível de diplomacia, cooperação e reconhecimento foram construídas, a maior parte da sua história, em prejuízo da população negra brasileira. Mas esse é um papo chato que podemos conversar mais tarde, ou talvez outro momento em qualquer lugar por aí. O que me chamou atenção outro dia (08/09/2025) foi um texto de Jamila Pereira na BANTUMEN sobre sua experiência de estar no Brasil e se deparar com um Brasil com enorme ignorância sobre questões básicas das realidades africanas na contemporaneidade.

O texto de Jamila me chama a atenção por causa dessa particularidade da experiência dela, que tem esse caráter de conexão entre povos, que como ela diz que temos “um laço além do trauma, entre nações outrora colonizadas que compartilham história, sangue, cultura e, acima de tudo, uma língua.” Para mim, ela está falando reconhecimento da existência e da identidade cultural de povos negros. Achei um barato. Fiquei empolgado. Me identifico quando ela diz que partilhava de um sonho idealista de integração entre a população brasileira e as populações africanas de África dita lusófona. Eu continuo ainda compartilhando. Acho que minha trajetória, mesmo com toda a crítica, me inclina a continuar alimentando esse sonho idealista. Ah, mas com muitas ressalvas. Muitas ressalvas.

Fundamental aqui pontuar que, além de ter tido o privilégio de estar em Cabo Verde enquanto pesquisador, eu sou um jovem afro-brasileiro que tenho uma formação específica sobre relação Brasil e PALOP,  tenho sido formado pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), uma universidade que resulta da cooperação entre Brasil e países da CPLP, em particular os PALOP, portanto, nos últimos anos fui educado em uma instituição a qual sua missão específica é promover a integração lusófona, também tenho relações de amizade, parceria e admiração com dezenas de pessoas de quase todos os PALOP.

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Universal - Soraia Ramos

“Que Brasil a juventude dos PALOP conhece? Acho que essa pergunta é fundamental porque revela que, na realidade, na ignorância de um sobre o outro, a gente se abraça”

Macaulay Pereira Bandeira

Então, em diálogo com esse texto de Jamila Pereira que instiga, convida para pensar a necessidade de reconhecimento mútuo, um olhar necessário sobre a visão estereotipada do continente africano que circula no Brasil, que mesmo  já existindo uma lei (10.639/2003) que obriga as escolas incluírem em seus currículos e programas a história e cultura afro-brasileira e africana, continua a invisibilizar todo um continente africano, dentro da sua rica diversidade. Em particular, os PALOPs, como Jamila aponta na sua experiência, são realmente quase que “invisíveis no imaginário social” no Brasil, com exceção de Angola. Mas essa exceção é também cheia de imagens negativas condensadas de fome, miséria e subdesenvolvimento, mesmo sua capital, Luanda, sendo uma das cidades mais caras em todo o continente africano. Mesmo que Angola seja não só reverenciada em composições de Mateus Aleluia ou Martinho da Vila, como também foi central para a formação da população e das culturas negras brasileiras.

Se é verdade que o Brasil é um país hospitaleiro, isso vai depender de quais latitudes alguém provém. No geral, pessoas africanas se deparam com essa curiosidade que Jamila relata que é um misto de violência, com ignorância, proximidade e afastamento. Ainda assim, fico feliz que ela sentiu hospitalidade no Brasil. Mas acho que precisamos ampliar essa conversa, e com todo respeito, deixarei aqui algumas perguntas que podem nos ajudar.  

Quando ela percebe que o brasileiro comum não está acostumado a escutar sotaques de outros países lusófonos, que não Portugal, e que muitos acham que o português europeu é superior ao português brasileiro ela se depara com uma das feições da ignorância brasileira sobre os PALOP. O preconceito linguístico por aqui vai do Sudeste ao Nordeste, perpassando pelo Norte e extrapolando as fronteiras nacionais. Mas não é que nós compartilhamos algo aqui também? Embora a produção cultural brasileira seja latente nos PALOP, não é verdade que nos PALOP também há essa visão de que o português de Portugal é o mais correto e sofisticado em relação a todos os outros? Inclusive, idiomas nativos e nacionais são considerados dialetos?  Não é verdade que muitas pessoas acham que sequer existe uma variação do português guineense ou cabo-verdiano por causa da influência das línguas nacionais, especialmente do "criolo" na forma de falar o português? Não ser visto ou ser visto como inferior? Talvez um dia descubramos que o problema é a lusofonia em si. Vai saber....

É bom saber que a juventude guineense, cabo-verdiana, são-tomense ou angolana está a olhar para o Brasil com admiração e identificação. E não há dúvidas que nos PALOP se conhece muito mais sobre o Brasil do que ao contrário. Gostaria que a juventude afro-brasileira pudesse também olhar com a mesma admiração para a riqueza artística e cultural dos PALOP. Nessa equação, a gente só perde. Mas a pergunta é: que Brasil a juventude dos PALOP conhece? Acho que essa pergunta é fundamental porque revela que, na realidade, na ignorância de um sobre o outro, a gente se abraça

“A imagem internacional do Brasil não é uma narrativa de afro-brasileiros. Pelo contrário, historicamente, ela tem instrumentalizado negros brasileiros para justificar ‘laços culturais e históricos’ ”

Macaulay Pereira Bandeira

O Brasil da Record e das novelas da Globo não é exatamente a população brasileira, quem dirá a população negra. Pelo contrário, a maior parte da história da teledramaturgia, negros são pano de fundo, abjetos, legados a funções de subalternidade. O cartão postal do Brasil não é o Brasil em sua diversidade, a população negra nisso, passa longe. Então fico me perguntando que Brasil é esse? Que população negra é essa? Eu não queria trazer esse papo chato de relações internacionais, mas acho que é incontornável. A imagem internacional do Brasil não é uma narrativa de afro-brasileiros. Pelo contrário, historicamente, ela tem instrumentalizado negros brasileiros para justificar “laços culturais e históricos” o continente africano, em particular com os PALOP. Portanto, que Brasil é esse? A quem interessa o “Brasil” veiculado em países lusófonos?  

Lembrei que esses dias, vi também um vídeo de Karen Pacheco, cabo-verdiana residente no Brasil a mais de uma década, fazendo apontamentos importantes sobre essa relação entre negros brasileiros e as juventudes dos PALOP. Ela ressalta, tal como Jamila, a ignorância do Brasil sobre países africanos. Certo momento do vídeo, ela comenta que acaba por acontecer uma chateação por muitas pessoas dos países dos PALOP pelo povo brasileiro não estar muito antenado sobre as realidades africanas. Eu compreendo essa chateação. Também a tenho. Mas acredito que as juventudes africanas antes de chegar ao Brasil não conhecem propriamente a população negra ou o Brasil. Pelo contrário, no geral se relacionam com a construção de uma imagem internacional brasileira para os PALOP e o que o Brasil exporta não é a verdade sobre a realidade social, política e econômica em sua complexidade. E esse desconhecimento acontece pelo mesmo motivo do desconhecimento das realidades africanas. Racismo. Colonialismo. Neocolonialismo. Os ismos que batem por aqui são os mesmos que batem por lá. Os jovens dos PALOP, no geral, chegam ao Brasil sabendo sobre o racismo? Não. E muitos descobrem que ser africano ou aparentar africano tem consequências sociais perversas por aqui. Isto porque ser africano nos países africanos não é a mesma coisa que ser negro no Brasil. Muitos tornam-se negros no Brasil. O Brasil da novela não cobre essa parte da realidade nacional, não é mesmo? Desconhecemo-nos, tudo bem, mas vamos melhorar. 

No vídeo, Karen diz que os negros brasileiros buscam uma africanização e suas raízes. Quem? Grupo de negros militantes? Negros de religião de matriz africana? Negros de manifestações culturais da cultura negra? Que negros brasileiros estão buscando por Wakanda? Pois bem, que critiquem as bolhas, aliás eu também acho brega Wakanda. Mas não tirem as bolhas como um todo. ¿África Mítica? Seria um sonho se a população negra de maneira geral tivesse essa inclinação para buscar a África ancestral, mítica, utópica, mitológica ou qualquer uma que fosse.  Não está. Talvez estejam olhando para os Estados Unidos como sugere Jamila, ou talvez para si mesmos. Eu acho um pouco engraçado essa tendência bem demode de achar que negros brasileiros copiam mimeticamente negros americanos. A gente não existe? Não temos nossa própria negritude? Não teríamos também nossa própria africanidade? Vai saber...

Quando Jamila questiona “como se explica, então, o afrocentrismo e pan-africanismo que tanto se enfatizam mundialmente como símbolos de identidade no Brasil?”, Como? Como se explica o afrocentrismo ou pan-africanismo? O que quer que esses conceitos representam, nenhuma dessas correntes de pensamento ou prática política é majoritária entre a população negra como um todo no Brasil. Faça você o teste. Vá a um território majoritariamente negro no Brasil e pergunte aleatoriamente para as pessoas, “o que é o panafricanismo ou afrocentrismo?” Ou seja, talvez essa imagem do brasileiro negro pan-africanista em busca da África seja bem particular. E com isso, não estou dizendo que não existam essas pessoas mas não é uma imagem representativa do negro no Brasil. Quem me dera se o pan-africanismo fosse uma tendência política majoritária entre a população negra, se fosse, talvez nossa conversa estaria sendo outra.

“Os jovens dos PALOP, no geral, chegam ao Brasil sabendo sobre o racismo? Não. E muitos descobrem que ser africano ou aparentar africano tem consequências sociais perversas por aqui”

Macaulay Pereira Bandeira

Quero dizer para irmãos e irmãs dos PALOP, que a imagem dos países africanos que temos é ocidentalizada, estereotipada e reduzida. A imagem que vocês têm do Brasil é igualmente ocidentalizada. O Brasil das novelas, dos trópicos e das “mulatas” exportação é uma construção racista e sexista, inclusive impactando a forma como muitos pensam sobre a sexualidade da mulher (negra) brasileira, não é mesmo?  Estereótipos. São poderosos, e têm desdobramentos nefastos. Ou não é verdade que muitos pensam, mundialmente, que mulheres brasileiras especialmente negras de pele mais clara são altamente sexuais? Pensa-se diferente em países da lusofonia? É, ok. Desconhecemo-nos mas vamos melhorar. 

Tal como a invisibilização de países africanos não é promovida em benefício de suas populações, a imagem do Brasil no exterior também não é bem construída em benefício do conjunto da sua população. Pois bem, ou como coloca Jamila, tomemos a responsabilidade de formar, transformar as visões limitadas que temos uns sobre os outros. Ou, senão abracemo-nos na ignorância. Com isso, estou com Jamila e com Karen, precisamos disseminar não só as realidades contemporâneas dos PALOP mas também das relações históricas (pós escravidão; pós colonialismo) que construímos ao longo de décadas. Exemplos: O primeiro ministro da Justiça de Guiné Bissau independente, Fidelis Castro, estudou no Brasil. Thereza Santos, militante histórica do movimento negro no Brasil participou de uma série de atividades de cunho artístico e de formação política nos primeiros anos de Guiné-Bissau e Angola independentes, ela inclusive falava guineense. Como eles, há outras inúmeras figuras. Talvez tenhamos que recuperar essas figuras históricas em conexão com o presente que nos aproxima cada vez mais.

E o sonho idealista de integração de povos negros da lusofonia ainda carrego firmemente comigo, aliás, como eu disse antes minha formação me incutiu esse ideal. Por isso, aponto que a UNILAB, e em especial o Campus dos Malês, localizado em São Francisco do Conde (Recôncavo da Bahia) uma das regiões que consolidou culturas negras nesse território, onde há pelo menos 300 jovens dos PALOP produzindo um rico conhecimento científico, artístico, afetivo e efetivo no sentido da integração seja um dos caminhos. É preciso disseminar a existência dos Malês na lusofonia de maneira geral. Trata-se de um lugar que contribui para dirimir a falta de reciprocidade no reconhecimento mútuo. Jamila tem toda razão, só nós poderemos transformar esse vácuo entre nós e com diálogo contínuo, por isso, escrevo este texto. 

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