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Zamba N'Kuku Mpetelo Messami, à partida, parece um nome desconhecido, mas é o que mais caracteriza o C4 Pedro nos dias de hoje: é o seu alter ego e significa o que foi em busca da sua ancestralidade, que outrora parecia perdida. É um resgatar da sua própria pessoa, da sua existência, do zamba (elefante) e do encontro com Ngana Zambi — que significa "Deus" em Kimbundu —, língua falada nas províncias de Luanda, Bengo, Cuanza Norte e em partes de Malanje.
Mpetelo Messami apresenta-se como um africano que teve um despertar da consciência e não quer continuar sozinho nesse caminho. Ancestralidade é o seu quinto álbum e a sonoridade foi pensada para que todos possam lembrar-se de quem são. E, mais do que dizer quem Mpetelo Messami é, o artista quer que as pessoas, principalmente africanas, saibam quem são por meio do seu discurso.
Ancestralidade foi lançado em outubro deste ano e é um álbum feito sem pressões, com calma, à maneira e ao jeito do cantor, tal qual a forma como se foi descobrindo nestes últimos anos. O artista, que começou como C4 Pedro, que significa Cry 4 (for) People, foi agora ao encontro de Mpetelo.
"Quanto mais despertas, mais sentes pelo teu povo"
C4 Pedro

©️ Stepahn Neto | Eyeconic
"Na verdade, o Mpetelo Messami é uma consequência do Cry 4 People. Porque, imagina, quanto mais despertas, mais sentes pelo teu povo. Só que eu não quero limitar-me a chorar pelo meu povo; quero resolver os problemas do meu povo. Por isso é que, desde o princípio deste projeto [Ancestralidade], eu comecei logo a colocar todas as bandeiras para que a mensagem fosse clara: que não é só para Angola; é para que todos percebam. Quer seja na língua, como na frequência das melodias. Então, o Mpetelo Messami é quase uma profecia do 'Cry for People'”, começou por explicar-nos.
Nos últimos concertos, o artista tem se apresentado com uma indumentária que remete à forma como os sobas – que, em Angola, são os guardiões e a autoridade máxima de uma aldeia ou comunidade – tipicamente se vestiam, incluindo tecidos coloridos, adornos com miçangas e, por vezes, elementos simbólicos, como máscaras ou joias artesanais. É a sua forma de expressão artística e com o zamba, que significa elefante, como imagem.
Para C4 Pedro, o elefante tem um significado espiritual, ancorado na metáfora de que, tal como o animal é demasiado grande para caber numa sala, também o conhecimento ancestral não pode ser contido nem limitado. O álbum parte dessa ideia para refletir sobre as origens: o elefante nunca se esquece de onde vem, assim como os africanos, em geral, deveriam fazer. O “zamba”, explica, representa esse animal sábio, o ancião da selva, símbolo de sabedoria e de memória. Na tradição espiritual e ancestral, o elefante tem a missão de mensageiro. E "N'kunku", que adotou, entretanto, significa mensageiro, o que reforça a ligação entre o animal e a dimensão espiritual da sua obra.
“Mpetelo” é a tradução de “Pedro” em kikongo (língua falada no norte de Angola) e “Messami” é o nome da sua linhagem de Manga Grande, herdado do seu bisavô e do seu avô. Quando se apresenta como Mpetelo Messami, o músico afirma a pertença à ancestralidade, reivindicando a continuidade da sua raiz familiar e espiritual. A reflexão centra-se na importância de reservar tempo para o autoconhecimento e o reencontro com as próprias raízes. O processo de olhar para dentro e perceber em que fase da vida se está é considerado essencial, sobretudo entre os homens africanos, que muitas vezes só na idade adulta se reconectam com a sua ancestralidade.
"Acho que não podia ter acontecido mais cedo porque eu precisava experimentar tudo. Hoje estou a refazer tudo o que já fiz"
C4 Pedro

©️ Stephan Neto | Eyeconic
Num contexto marcado por novas responsabilidades e pela consciência do tempo, surge a questão do momento em que encontrou esse equilíbrio interior e decidiu abordar a ancestralidade como tema central da sua vida e da sua obra.
"Eu acho que antes não tinha bagagem suficiente, nem de vida, nem de intelecto, nem de calma. A calma vem com o tempo, quando tu percebes que já correste demais e que, afinal de contas, a meta és tu. Quem eu sou, onde eu estou e para onde eu vou? O que é que eu quero fazer, como é que eu quero ser lembrado? Qual é o meu propósito nessa terra? Isso é o que aconteceu comigo este ano. Acho que não podia ter acontecido mais cedo porque eu precisava experimentar tudo. Hoje eu estou a refazer tudo o que já fiz; estou a passar pelas mesmas ruas, só que estou a olhar de forma diferente. Antes de eu querer mudar o mundo, eu primeiro mudei a minha forma de olhar para ele e, quando eu fiz isso, vi que o mundo, afinal de contas, não é como eu pensava que fosse."
Mais do que impor ideias ou vencer debates, o músico destaca que esta nova fase é marcada pela empatia e pela capacidade de compreender o outro. O despertar da consciência, explica, é o reconhecimento de que todos fazem parte do mesmo todo. Já não se preocupa com a forma como cada um chama o seu Deus, mas sim com a “frequência” com que cada pessoa vibra, com a energia que transmite e atrai, sendo essa vibração o que define quem somos e as pessoas que escolhemos ter à nossa volta.
Embora o seu novo álbum pareça profundamente pessoal, é, na verdade, um reflexo coletivo. Acredita que a essência das suas músicas toca as pessoas porque nasce de algo universal: emoções, vivências e sentimentos partilhados. Ao falar de si, explica, está também a falar dos outros. É como se se observasse na terceira pessoa, transformando a experiência individual numa ponte para o que é comum a todos.
O artista usa a metáfora da comida para descrever o seu papel: ele coloca o alimento – a sua música e as suas mensagens sobre a mesa –, mas cabe a cada um decidir quando está preparado para nutrir-se delas. Admite que o processo pode ser doloroso, sobretudo quando vê resistência em quem mais precisa de ouvir o que partilha. Ainda assim, diz que o amor pelas pessoas o obriga a compreender, lembrando que também o seu próprio despertar de consciência foi gradual.
“Aceitar a dor é o princípio da luta que depois tu vais vencer. Não precisas ser o Robocop. É isso que vai tornar-se na tua verdadeira força"
C4 Pedro

©️ Stephan Neto | Eyeconic
Hoje, C4 Pedro procura respeitar o tempo e a evolução de cada indivíduo, entendendo que nem todos estão prontos para receber certas verdades no mesmo momento, e defende que o tempo é um elemento a ser respeitado, sobretudo no processo de evolução pessoal e espiritual. Para o artista, o mais importante é deixar o exemplo, mostrar que é possível fazer um caminho diferente, mesmo num mundo que muitas vezes parece resistente à mudança. O objetivo, esclarece, não é convencer ninguém a seguir o seu percurso, mas inspirar por meio da sua própria experiência. “Eu estou a fazer e estou feliz”, afirma.
A comparação entre o novo álbum e Lágrimas, um dos seus trabalhos mais conhecidos, revela um fio emocional que atravessa décadas. A escuta atenta de ambos permite perceber que Mpetelo revisita sentimentos antigos com o peso de uma consciência renovada. “Quando eu cantei Lágrimas, eu não chorava. Essa é a grande diferença”, reconhece. Durante muito tempo evitou mostrar vulnerabilidade, mas descobriu que sentir é, afinal, a sua força maior.
Ancestralidade surge como continuidade emocional desse projeto, mas com uma maturidade distinta: se o primeiro era para ser ouvido na solidão, este convida à celebração. O artista transformou a dor em movimento; as lágrimas tornaram-se ritmo, energia, libertação. A ideia de dançar com a dor, de aceitá-la como parte do processo, é central. “Aceitar a dor é o princípio da luta que depois tu vais vencer. Tu não precisas ser o Robocop. É isso que vai tornar-se na tua verdadeira força. E foi o que eu fiz, mano”, descreve.
A descoberta de que, quando deitado, as lágrimas escorriam para fora e não para dentro, como sempre imaginara, tornou-se símbolo dessa libertação. Vencer o medo e a culpa — frequências baixas, como lhes chama — marcou o início de uma nova fase, em que aceitar as emoções surge como parte essencial da cura. “Como é que tu vais ser grato se não aceitas sentir tudo?”, questiona, defendendo que desligar a tristeza também impede a perceção do que é belo.
Ao longo da conversa, também emergiu a reflexão sobre a relação dos homens africanos com a vulnerabilidade emocional. Muitos foram ensinados a conter as lágrimas, a associar sensibilidade à fraqueza. Permitir-se chorar foi, por isso, transformador e tornou-se gesto de paz interior e de reencontro com a humanidade tantas vezes reprimida. A ideia de renascimento surge ao falar da alegria de dançar, independentemente da idade ou da técnica. Aos 42 anos, considera-se livre para se mexer, vibrar com a africanidade e conectar-se com os ancestrais, num gesto simples de felicidade.
“Como é que tu vais ser grato se não aceitas sentir tudo?”
C4 Pedro

©️ Stephan Neto | Eyeconic
Apesar de Ancestralidade recorrer a expressões e palavras em línguas como o kimbundu, nenhuma faixa é inteiramente cantada em línguas nativas. O objetivo, explica, não é afastar-se das raízes, mas chegar a quem se distanciou delas. Quem fala kikongo ou kimbundu já está, segundo o artista, na frequência da tradição; é a quem perdeu essa ligação que pretende estender a mão. Por isso, pede a quem domina essas línguas que traduza as letras e ajude a espalhar a mensagem, enquanto ele comunica com quem está mais afastado.
A escolha do português permite-lhe também chegar a um público lusófono mais amplo, de Cabo Verde ao Brasil, passando por Moçambique e Portugal. “Não quero cantar só para angolanos”, afirma. A música, para si, ultrapassa a linguagem falada e constrói-se em vibrações, emoções e energia, numa frequência que une quem a escuta.
Nesse mesmo processo de consciência, reconhece que o dinheiro pertence ao homem, enquanto a saúde pertence à natureza. O artista afirma que já testemunhou a saúde vencer o dinheiro, mas nunca o inverso. A verdadeira abundância, acredita, vem da vida, o resto é criação humana.
Entre as verdades que transmite no álbum, a mais profunda talvez esteja em “Rosita”, homenagem à sua mãe. Conta, com humor e carinho, que o seu nome é Rosa, mas Rosita guarda o afeto da sua personalidade. Recorda um episódio em que ela o repreendeu por usar panos que considerava “cópias”, lembrando-lhe a importância dos tecidos verdadeiros, pintados à mão, com história. Mesmo à distância, enviou-lhe panos autênticos, num gesto que simboliza a identidade e a ligação familiar.
“Mãe é como um Nzambi na terra”, afirma. A referência ao sagrado alarga a conversa ao tema da saudade, inspirada na terceira faixa do álbum. Quando questionado sobre o que mais sentiu falta, responde: de si mesmo. “Eu vi o Pedro do Lágrimas”, diz. A saudade que canta não é ausência, mas reencontro. É perceber que o jovem que fazia música sem pensar na receção pública ainda existe, agora recuperado.
A sua jornada, acredita, é guiada por algo maior do que a fama ou o reconhecimento imediato. “Não há ninguém que manda mesmo, a não ser o Nzambi”, afirma. As mensagens chegam quando têm de chegar e serão compreendidas apenas quando o ouvinte estiver preparado. A música funciona como um instrumento de despertar; mesmo que muitos ainda não entendam tudo o que diz, no momento certo, cada um encontrará sentido. É essa confiança na verdade e na transformação interior que sustenta o caminho de Mpetelo Messami.
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