A casa, o corpo e o tempo. Carlos Bunga transformou o efémero em território de criação

November 25, 2025
Carlos Bunga Habite a Contradição
Carlos Bunga | Habite a Contradição

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Na exposição Habitar a Contradição, patente no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian de 08 de novembro a 30 de março de 2026, Carlos Bunga transforma o espaço museológico num território de escuta e de presença. Entre o efémero e o político, o artista propõe uma reflexão sobre a vulnerabilidade como estrutura e sobre a impermanência como linguagem.


Num tempo em que as crises - económicas, sociais, ambientais ou políticas - se sobrepõem, Carlos Bunga entende a arte como um “dispositivo crítico e sensível” capaz de interrogar o presente e restituir à experiência humana o direito à dúvida. Na sua visão, a prática artística não é um espelho da realidade, mas “um espaço de questionamento” que substitui as respostas pelas perguntas e as certezas pelas tensões produtivas. É nesse terreno instável que o artista situa a possibilidade de reconstruir o laço social, fazendo da empatia e da imaginação instrumentos de resistência e de invenção.

Em entrevista, o artista reforça a ideia de que a arte deve escapar à função decorativa e assumir-se como “campo de produção de sentido”, onde é possível tensionar normas, questionar estruturas de poder e convocar novas formas de perceção e convivência. Nessa perspetiva, a criação artística torna-se um espaço ético, habitável e vulnerável, que “acolhe a instabilidade como condição da existência” e reconhece nas contradições humanas uma potência criadora. Bunga lembra que, em sociedades fragmentadas e marcadas pelo medo do outro, é precisamente a fragilidade que pode abrir caminho a novas formas de empatia e de imaginação coletiva.

A consciência da impermanência atravessa toda a sua obra e o artista visual reconhece que a efemeridade não é uma escolha, mas uma condição que espelha a própria natureza da vida: “A única permanência real é a transformação contínua provocada pela passagem do tempo.” O gesto de criar, nesse contexto, é inseparável do gesto de deixar desaparecer e o efémero torna-se metáfora de deslocação, não como fuga, mas como fluxo de aprendizagem e escuta. As suas obras, construídas com materiais orgânicos como cartão, fita adesiva ou tecidos frágeis, aceitam a vulnerabilidade como matéria e como forma de pensamento. Ao fazê-lo, propõe uma ética de instabilidade, recusando a ilusão da permanência e da completude.

Essa conceção é também o eixo da sua biografia criativa e de um percurso que descreve como “um trajeto nómada”, em que a prática se afirma como “gesto poético orientado pela escuta do presente”. A transitoriedade, diz, tornou-se a sua forma de estar no mundo. Desde cedo, percebeu que o essencial não era o destino, mas a permanência no percurso, mais precisamente “na escuta, no desvio, no inacabamento”. Trabalha a partir de gestos frágeis e transitórios, que procuram inscrever-se no tempo sem o pretender dominar. Os materiais orgânicos e instáveis que utiliza são, ao mesmo tempo, matéria e metáfora: revelam a impermanência da existência e a fluidez das relações humanas.

Filho de uma mulher que fugiu de Angola para Portugal em 1975, Bunga reconhece que a migração o marcou desde o ventre. “Migrámos antes do meu primeiro choro”, recorda. A infância, mais do que uma cronologia, é para ele “uma geografia íntima”, território de memórias em suspensão que molda a perceção do espaço. Por isso, nunca o entendeu como algo fixo ou estável, mas como “uma tensão entre o dentro e o fora, entre o que se habita e o que se perde”. A travessia da mãe converte-se, assim, na matriz simbólica de uma prática que interroga constantemente o que significa pertencer.


A passagem da pintura à arquitetura surgiu como consequência natural dessa inquietação. “As convenções da bidimensionalidade já não respondiam às minhas urgências expressivas”, explica. O impulso de romper a tela e de incorporar o corpo levou-o a descobrir, nas ruínas e nos vazios urbanos, uma espécie de espelhamento da sua própria experiência. A arquitetura deixou então de ser cenário para se tornar “meio, linguagem e matéria-prima”. A transição consolidou a sua compreensão da obra como território a ser habitado, um espaço onde corpo, gesto e matéria coexistem sem hierarquias.

Para Bunga, desmontar uma instalação é tão significativo quanto erguê-la. Longe de simbolizar o fim, o gesto é “uma afirmação da impermanência como condição essencial da existência”. No momento em que a obra se desfaz, o artista acelera o ciclo natural da transformação e afirma a recusa do objeto imutável. “Não busco o eterno. Busco o sensível, e no efémero encontro o mais profundo espelho da condição humana.” Ao desmontar, reitera a sua recusa da autoridade simbólica e questiona as noções de estabilidade e de valor. As instalações são, nas suas palavras, “protótipos de um mundo ainda em construção”, abertos à apropriação e à escuta.

A exposição “Habitar a Contradição”, patente no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian de 08 de novembro a 30 de março de 2026, nasce dessa mesma lógica de transbordamento. Ao ocupar simultaneamente as galerias interiores e o jardim exterior, concebe um percurso físico e simbólico, íntimo e coletivo. “A contradição é, para mim, uma matéria essencial”, afirma. A instalação Bosque (2025), criada especialmente para o museu, constitui o ponto culminante dessa proposta, convidando o visitante a entrar, a demorar-se e a sentir. A mostra articula ausência, impermanência e fragmentação não como conceitos abstratos, mas como modos de escavar o invisível e de expor o que resiste.

O ponto de partida é a obra A minha primeira casa foi uma mulher, evocação direta do ventre materno como primeira morada. “Esse lugar originário não é apenas abrigo biológico, mas um primeiro gesto simbólico de inscrição no mundo”, explica. A metáfora da “casa-corpo” atravessa a exposição como uma reflexão sobre origem e pertença, propondo uma visão do sujeito como ser migrante, poroso, em trânsito constante. A criação, nesse sentido, é um modo de “transfigurar a dor em potência e a ruptura em reconfiguração”. O artista identifica-se com a figura do nómada, como quem “recusa as fronteiras rígidas da identidade” e habita as passagens entre o visível e o inominável.

No diálogo com o acervo do CAM, procurou obras que “habitam uma zona liminar entre o documento e a obra de arte”, peças pouco expostas, fragmentárias, onde reconhece a potência do que resiste fora da narrativa dominante. Ao articular essas presenças com as suas próprias instalações efémeras, o artista propõe uma leitura crítica da história institucional, “um exercício de pensamento e de corporeidade, onde o gesto se posiciona como mediação entre o passado e o presente, o visível e o invisível”.

Em Habitar a Contradição, o museu deixa de ser lugar de contemplação distante para se tornar “casa pública, inclusiva e empática”. Bunga introduz objetos domésticos, cadeiras e formas cilíndricas inspiradas nas árvores do jardim Gulbenkian, dissolvendo as fronteiras entre interior e exterior, arte e vida. O objetivo, explica, é que o visitante queira permanecer. Que o museu funcione como um refúgio partilhado, capaz de “atuar como antídoto contra a polarização e as tensões que marcam a nossa contemporaneidade”.

Ao fazer da vulnerabilidade um princípio e do efémero uma linguagem, Carlos Bunga revela a arte como exercício de consciência onde a fragilidade é estrutura e não falha, e onde o inacabado se transforma em método de pensamento. As suas obras recusam a estabilidade como valor e convidam o olhar a permanecer diante do transitório como quem participa no processo de transformação. Nesse gesto, o artista dissolve a fronteira entre obra e vida, convertendo o ato de desmontar em prolongamento do gesto criador. A sua prática oferece a responsabilidade de reconhecer o que é instável e, ainda assim, escolher permanecer. É nesse lugar de escuta e de presença - onde o efémero se converte em forma de pensamento e o tempo ganha corpo - que se define a permanência possível da arte.

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