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Mais de uma década após a sua morte, o nome de Cesária Évora continua a ocupar um lugar central na projeção internacional da música cabo-verdiana. Reconhecida mundialmente como a “diva dos pés descalços”, tornou-se um ícone da morna e da coladeira, tendo levado o crioulo aos palcos mais prestigiados do mundo. O seu repertório permanece vivo não só nas gravações e no imaginário coletivo, mas também em iniciativas que procuram dar continuidade ao seu legado, como é o caso da Cesária Évora Orchestra, criada em 2014 por músicos que a acompanharam ao longo da carreira.
O projeto nasceu com o objetivo de manter viva a herança musical de Cesária, através de concertos que reúnem antigos colaboradores e novas vozes da cena cabo-verdiana. A direção musical está a cargo de Humberto Ramos, pianista e figura de longa data da banda da cantora. Desde a estreia no Festival da Gamboa, na cidade da Praia, a orquestra tem circulado por várias cidades europeias e americanas, reinterpretando temas como Sodade, Petit Pays ou Besame Mucho, com arranjos fiéis ao espírito original. Em palco, artistas têm assumido a missão de dar continuidade à música que projetou Cabo Verde no mapa cultural global.
No concerto mais recente da Cesária Évora Orchestra, realizado a 27 de junho no Festival MED, Lucibela, Elida Almeida, Ceuzany Pires e Teófilo Chantre subiram ao palco para revisitar o repertório da cantora, num espetáculo que combinou fidelidade à obra original com interpretações pessoais marcadas pela identidade artística de cada um. O alinhamento do concerto foi estruturado de forma a apresentar cada intérprete em registo solo: Lucibela abriu o espetáculo, seguindo-se Ceuzany, depois Teófilo Chantre e, por fim, Elida Almeida. Individualmente, cada um dos músicos revisitou temas que marcaram a carreira de Cesária, mas foi no momento coletivo da interpretação de Sodade, tema mais conhecido da cantora, que a emoção atingiu o seu ponto mais alto, com o público a cantar em uníssono e o palco preenchido por uma energia partilhada.
Cada artista encontrou uma forma própria de prestar homenagem sem perder a sua individualidade. Ceuzany trouxe uma presença marcada por uma interação constante com o público e por uma entrega que fez do palco um espaço lúdico e expansivo. Lucibela, em contraste, apresentou-se com um registo sereno, em que a contenção não excluiu o envolvimento com a plateia, e onde ficou claro que, para a morna e para Cesária, as palmas nunca serão tardias, tampouco suficientes. Elida Almeida demonstrou um equilíbrio entre a cumplicidade com os músicos da orquestra e a ligação com o público, gerindo bem a transição entre o legado que interpreta e a voz que afirma. Teófilo Chantre, o único dos quatro com uma ligação direta e histórica a Cesária, foi o rosto de uma geração que sente a música a cada acorde e a transmite com a profundidade de quem a viveu por dentro.
A BANTUMEN teve oportunidade de falar com três dos quatro artistas, que refletiram sobre a experiência e sobre a herança deixada por Cesária Évora. Lucibela sublinhou que cantar o repertório da cantora é uma extensão da forma como aprendeu a interpretar a morna. “A Cesária foi uma escola. A maneira como ela sentia e transmitia a morna marcou profundamente a minha forma de cantar”, afirmou, recordando que começou a dar concertos em 2018 e, desde então, tem sido constantemente comparada à intérprete de Miss Perfumado. “Até hoje, todos os jornalistas me perguntam se serei a próxima Cesária. Mas ninguém vai ser igual à Cesária. A sua história, a sua presença, a forma como subia ao palco, era tudo isso que a tornava única.”
Elida Almeida, por sua vez, assume uma relação diferente com a figura da diva. Cresceu em Santiago, rodeada de géneros como o batuku, a tabanca e o funaná, e só mais tarde descobriu o universo de Cesária Évora. Essa aproximação fez-se, sobretudo, através da equipa que hoje trabalha consigo e que, durante anos, trabalhou também com Cesária. “Fui-me conectando aos poucos com tudo o que ela fez”, contou. “Ela é, sem dúvida, uma referência, sobretudo para nós, mulheres. Mostrou-nos que é possível uma mulher cabo-verdiana ter uma carreira, viajar, fazer digressões, voltar para casa e manter o equilíbrio entre a vida artística e pessoal.” Elida classificou Cesária como “uma feminista silenciosa” e reconheceu que a sua influência teve impacto também no processo criativo: “hoje componho mais coladeiras, arrisquei escrever em sampadjudo. Há uma mudança que veio dessa convivência com o repertório da Cesária e com os músicos que a acompanharam.”
Já Teófilo Chantre fala de uma relação direta, construída ao longo de anos de colaboração. Foi com Cesária Évora que deu os primeiros passos na música profissional, depois de concluir os estudos universitários. “Tive a sorte de ela me perguntar se tinha músicas. Eu tinha algumas guardadas e três delas entraram no disco Miss Perfumado.” A partir daí, participou em várias gravações e digressões, como músico e como corista. O compositor descreve Cesária como uma artista que conseguiu sintetizar a identidade cabo-verdiana na morna, tornando-se inseparável do género.
Para o grupo, a interpretação de Sodade, um dos temas mais emblemáticos da cantora, continua a ser um dos momentos mais intensos dos concertos da orquestra. “O público canta connosco, em toda a parte do mundo. É sempre uma alegria, nunca nos cansamos de a cantar”, referiu Lucibela. Elida destacou a dimensão simbólica da canção, que considera representar o clímax do espetáculo: “É o momento em que estamos todos em palco, há sorrisos, cumplicidade, e o orgulho de estarmos ali a representar Cabo Verde.”
O reencontro dos artistas em torno da obra de Cesária acontece num ano particularmente simbólico para Cabo Verde, que assinala 50 anos de independência. A questão do papel da cultura no processo de emancipação surge naturalmente na conversa. Para Lucibela, “a música foi uma das armas da luta”. Através das composições, os artistas conseguiam comunicar o que não era permitido dizer de forma direta. Teófilo recorda a repressão de certos géneros musicais durante o período colonial, como o funaná ou a tabanca, e recupera um episódio da infância: “lembro-me de um disco do Bertona que era proibido. Escutávamo-lo em segredo, nalgum lugar distante, porque a carga de resistência era tão forte que não podia ser ouvida abertamente.”
Hoje, a música continua a ser um dos maiores instrumentos de projeção de Cabo Verde no exterior. “Há muita gente que só conhece Cabo Verde por causa da nossa música”, afirmou Elida, que também aproveitou para sublinhar a importância do crioulo como elemento identitário e de resistência. “Posso explicar a música noutra língua, mas a emoção está na língua que é minha.” Essa projeção global da música cabo-verdiana, sustentada pela força da língua e pela autenticidade das vozes que a transportam, implica também um compromisso. Para os artistas que sobem ao palco em nome dessa tradição, o reconhecimento internacional é simultaneamente um motivo de orgulho e exigência constante. “Queremos fazer tudo bem, queremos fazer as coisas certas. E daí surge essa grande responsabilidade”, afirmou Lucibela. “Mas é também um orgulho. A música é a nossa vida e o que fazemos é o que amamos.”
Elida Almeida reforça essa consciência, voltando a sublinhar a centralidade do crioulo como fio de ligação entre identidade e expressão artística. “Mesmo que amanhã o crioulo não venha a ser oficializado, é uma das coisas que mais me mantém viva.” Teófilo Chantre acrescentou que o crioulo, em todas as suas variações, deve continuar a ser defendido como ponto de encontro entre as ilhas e entre gerações. “É a nossa união.”
Ao longo dos anos, a Cesária Évora Orchestra tem-se estabelecido como uma das iniciativas mais consistentes de preservação e projeção do património musical do país. Ao reunir músicos de diferentes gerações e trajetórias, o projeto assegura a continuidade do repertório de Cesária Évora, sem perder de vista a diversidade de vozes que hoje representam Cabo Verde nos palcos internacionais. A herança deixada pela artista é abordada com respeito e rigor, mas também com consciência crítica sobre o papel que a música continua a desempenhar na afirmação cultural do país.
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